SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue44Eradicating violence against women: a battle in constant movement.Mulheres e conflitos armados: As múltiplas discriminações author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.44 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.34619/p41x-sq29 

Estado da Questão

A Associação “Mulher Migrante”: Um trajeto de 25 anos1

Maria Manuela Aguiar1 

1 Associação “Mulher Migrante”, onlinemulhermigrante@gmail.com


Origens

A Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade (AMM) nasceu, indiretamente, do diálogo entre governo e movimento associativo, representado no Conselho da Comunidades Portuguesas (CCP), que, na década de 80 do século passado, foi o principal destinatário das políticas públicas designadas como “políticas de reencontro”.

No primeiro processo eleitoral, em 1981, os membros eleitos e os jornalistas que compunham o CCP, cerca de sessenta, eram todos homens. No segundo, em 1983, apenas duas mulheres, oriundas da quota de jornalistas, tiveram assento num órgão, o que espelhava a real desigualdade de sexo no universo comunitário. Bastou, porém, uma conselheira, a jornalista Maria Alice Ribeiro, do Canadá, para fazer a diferença, ao propor a convocação de um congresso de mulheres da diáspora, onde estas pudessem ter a presença e a voz que lhes faltava no CCP. A Secretaria de Estado da Emigração deu sequência à recomendação, através do “1.º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo”, que foi patrocinado pela UNESCO, e teve lugar em junho de 1985, na cidade de Viana do Castelo. Esse feito tornou Portugal país pioneiro na Europa e no mundo, “antecipando em dez anos os esforços das Nações Unidas para o empoderamento das mulheres na sociedade e na política” (Cunha Rego, cit. por Aguiar et al., 2015, p. 24). Desse 1.º Encontro, cheio de ensinamentos, ressaltaram duas conclusões: a intenção de criar uma organização transnacional que desse a essas mulheres força coletiva, e a proposta de institucionalização do diálogo com o governo, através de mecanismos de audição periódica. Em 1987, foi instituída, na órbita do CCP, com esse propósito, a “Conferência para a participação e promoção das mulheres portuguesas no estrangeiro”, que, contudo, viria a ser inviabilizada pela queda do governo. Do lado da sociedade civil, tardou a idealizada instância internacional. Só em 1993 seria fundada a Associação Mulher Migrante, que se apresentou como herdeira daquele projeto, contemporâneo da génese das políticas para a igualdade na emigração, em cujo relançamento seria chamada a cooperar, estreitamente, vinte anos depois.

Singularidades

A Associação tem por finalidades estatutárias aquelas que a sua própria designação sintetiza: o estudo da problemática das migrações femininas, a cooperação com mulheres profissionais e dirigentes de associações portuguesas no estrangeiro e imigrantes, o apoio à intervenção das mulheres nas sociedades de acolhimento, em todos os domínios, e o “combate a ideias e movimentos xenófobos” (Gomes, cit. por Aguiar et al., 2014, p. 46), objetivos a que dá especial destaque na sua divisa: “Nenhuma pessoa é estrangeira numa sociedade que vive os Direitos Humanos”.

No universo associativo feminino da diáspora, ao tempo quase exclusivamente dominado por preocupações sociais e culturais (beneficência, solidariedade, defesa da língua e das tradições), a AMM vinha colocar a ênfase em questões de cidadania, o que era, de per si, uma singularidade. E várias outras questões podia, à nascença, reclamar, como: estar sediada no país e voltada, fundamentalmente, para a diáspora feminina; ser partilhada por mulheres e homens feministas (no sentido em que Ana de Castro Osório falava de feminismo, como “humanismo integral”) e formada por emigrantes (integrando cerca de um terço do total de participantes no Encontro de 1985) e não emigrantes; ser mediadora de universos associativos heterogéneos, em especial, o feminino, o jovem e o sénior, bem como o meio académico, através dos quais combinava a vertente de estudo e de intervencionismo social.

Ao longo de 25 anos de atividade, a AMM tem sido um fórum interassociativo de reflexão e debate, e com esse perfil revelou as suas virtualidades logo num primeiro empreendimento, o congresso mundial de 1995, ao trazer a Espinho cerca de 400 participantes - mulheres líderes de comunidades dos cinco continentes, políticos, jornalistas, funcionários da administração pública, grandes nomes da comunidade científica. Um “encontro de mundos” que raramente se aproximam e dialogam, de igual para igual, paradigma de inúmeras reuniões em que prosseguiria o escopo de lançar sobre o fenómeno da emigração um olhar inclusivo da metade feminina, pela via de um “congressismo” capaz de repensar estratégias e desencadear dinâmicas de mobilização para a mudança.

No seu percurso, distinguiremos duas fases:

  • - A década 1995-2005, no seguimento do congresso de Espinho, é caracterizada pela expansão da rede de delegações e de congéneres no estrangeiro e pela militância no interior do país, em colaboração com a CIDM(Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres) e o Alto Comissariado para as Minorias Étnicas (e também com autarquias, paróquias, escolas), dividindo a atenção entre o evoluir da situação na diáspora e os problemas sociais da chamada “nova imigração” (do Leste europeu), não esquecendo o do regresso em massa de emigrantes, que, para as mulheres, significava quase sempre regressão, perda do estatuto de independência económica, ganho lá fora.

  • - A partir de 2005, numa “segunda vida”, a AMM alarga a sua ação fora de fronteiras, crescentemente envolvida na planificação de medidas destinadas a motivar mulheres e homens para as questões da igualdade, de motu proprio, em conjunto com outras ONG, ou sob patrocínio do Governo, num período que começava a dar cumprimento ao Plano Nacional para a Igualdade nas comunidades do estrangeiro.

Congressismo na diáspora

Promotora dos Encontros para a Cidadania e dos Congressos Mundiais de Mulheres Migrantes, e guardiã da memória do “1.º Encontro”, a Associação “Mulher Migrante” propôs ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, por ocasião do 20.º aniversário da associação, a comemoração da efeméride, com um novo congresso mundial. António Braga aceitou a ideia, integrando-a na execução do Plano Nacional para a Igualdade, com ações faseadas ao longo do mandato, patrocinando, não um evento isolado, mas um renascimento do congressismo e instando a AMM a converter-se em “parceiro privilegiado para o desenvolvimento de políticas de género” (Aguiar e Aguiar, 2009, p. 109). Entre 2005 e 2009, decorreram nas grandes regiões de emigração os “Encontros para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens”, articulados com as políticas transversais traçadas, neste domínio, para o país e, pela primeira vez, aplicadas a todas e todos os Portugueses, “independentemente de serem ou não residentes em Portugal” (Lacão, cit. por Aguiar e Aguiar, 2009, p. 11).

Com a Presidência de Honra de Maria Barroso, a presença do governo (Jorge Lacão e António Braga) e das dirigentes da Associação Mulher Migrante, a organização local foi confiada a associações femininas - a AMM da Argentina, na América do Sul; a Federação de Mulheres Lusófonas, na Europa; a Cônsul-Geral de Toronto, Maria Amélia Paiva, coadjuvada por uma comissão de associações femininas luso-canadianas, na costa Leste da América; Deolinda Adão, professora da universidade de Berkeley e representante da AMM, na costa Oeste; a Liga da Mulher, na África do Sul.

Em 2009, o Encontro dos Encontros, em Espinho, procedeu, a partir da explanação das relatoras de cada reunião regional, ao balanço global e à propositura de futuras iniciativas, que, com a coordenação da AMM, numa linha de continuidade e num crescendo de ritmo, seriam prosseguidas, entre 2011 e 2015, pelo novo Secretário de Estado, José Cesário. Em 2011, na Maia, o III Encontro Mundial traçou o panorama de um século de migrações femininas e as perspetivas do seu devir, começando por evocar os exemplos de Maria Archer e Maria Lamas, rostos do movimento feminista, que com elas sobrevivera no país e se exilara no Brasil e na França. No ano seguinte, a AMM dedicou um ciclo de colóquios, entre outras temáticas, ao associativismo da geração mais velha, com a divulgação da excelência do modelo português de “universidades” ou academias seniores, maioritariamente animadas por mulheres. Em 2013, o IV Encontro Mundial realizou-se no Palácio das Necessidades, sublinhando, em especial, novas expressões da cidadania, ou seja, aprofundando a ideia de que ao Estado incumbe a promoção da igualdade, e às pessoas a sua projeção no quotidiano. Em 2014, numa série de conferências e colóquios, em parceria com associações e universidades (e.g., Berkeley, San José da Califórnia, Toronto, Sorbonne, CEMRI/Universidade Aberta), olhou-se para “40 anos de migrações em liberdade” a partir da revolução de 1974, vista, neste campo, como a única revolução portadora de autêntica liberdade de emigrar e de um primeiro estatuto de cidadania dos expatriados, constitucionalmente consagrado para mulheres e homens, embora, de facto, não vivido ainda em plena igualdade.

Na última legislatura, apesar de ter sido adiado o V encontro mundial, nos habituais moldes de coparticipação com o governo, manteve-se a relação de trabalho em formas de “congressismo”, que atingiram novas audiências - conferências sobre personalidades inspiradoras como Maria Archer, Maria Lamas, Maria Barroso, Ruth Escobar, Natália Correia (figuras nacionais), assim como outras das próprias comunidades, casos das pioneiras do “Encontro de Viana”, Malice Ribeiro, Manuela Chaplin, Benvinda Maria, Mary Giglitto, Laura Bulger, Berta Madeira. Em simultâneo, foi relançada a programação dos “ateliers da memória” e das “narrativas de vida”, que visavam retratar trajetórias de mulheres de várias gerações, para além do círculo das notáveis. O mesmo se diga do ciclo de colóquios sobre “Ação e representação das mulheres nos média”, organizados nas Universidades de Dartmouth Massachusetts, Rutgers e Newark, e também em Toronto.

No seu constante esforço de concertação com múltiplas formas de associativismo, a AMM tem apostado na composição paritária das sessões, levando o debate sobre a reconfiguração dos papéis de género a cenários improváveis, onde, como a experiência comprova, tem perfeito cabimento - da agenda cultural dos festejos do 10 de Junho e dos Encontros dos Portugueses do Cone Sul da América às comemorações do Dia da Comunidades Luso-Brasileira e a Bienais de Artes Plásticas (e.g., as Bienais de Espinho e de Gaia, esta última considerada em 2019 “uma Bienal de causas”). A AMM valoriza quaisquer manifestações de ativismo feminino, trabalhando com diversas ONG (nas quais se incluem as suas delegações e associações filiadas, com autonomia e percursos próprios, de que a associação matriz muito se orgulha) ou movimentos com os quais tem somado colaborações. Levar o associativismo feminino da periferia, onde estava tradicionalmente deslocado nas comunidades, para o centro de influência e cooperação é um passo decisivo em direção à meta da igualdade. Nas últimas eleições para o CCP, a fraca proporção feminina, não obstante se lhe aplicar a Lei da Paridade, veio confirmar quão longe, na esfera do associativismo, estamos dessa meta! Contudo, neste quadro geral dececionante, a inesperada vitória eleitoral das dirigentes das Associações Mulher Migrante, na Argentina e na Venezuela, deu um sinal inequívoco da importância do congressismo de pendor cívico, que a AMM tem privilegiado.

Aqui deixamos o breve apontamento de momentos-chave de uma caminhada, do impulso que a move e do modo como lutou pelas suas causas nas circunstâncias que, em tempos irrepetíveis, se lhe ofereceram. Não procedemos à enumeração de um longo rol de publicações e realizações, nem individualizamos as associadas que foram construindo o seu pensamento. Salientaremos apenas o nome de Rita Gomes, que, por largos anos, encabeçou e sustentou o projeto e com ele se identificou. É um projeto onde cabem todas as mulheres migrantes, como verdadeiras construtoras de pontes entre nações e culturas - um todo feminino complexo e heterogéneo que a história da emigração, padronizada no masculino, sempre ocultou, mas que, na realidade, se tem emancipado pelo trabalho e pela abertura à modernidade em sociedades mais igualitárias.

Referências bibliográficas

Aguiar, M. M., & Aguiar, M. T. (Coord). (2009). Cidadãs da diáspora. Lisboa, Espinho: Ed. Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. [ Links ]

Aguiar, M. M., Guedes, G., & Santiago, A. (Coord). (2014). 1974-2014. 40 anos de migrações em liberdade. Lisboa, Espinho: Ed. Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade . [ Links ]

Aguiar, M. M., Guedes, G., & Santiago, A. (Coord). (2015). Entre portuguesas. Lisboa, Espinho: Ed. Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade . [ Links ]

1Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação E Solidariedade: Rua Maria Pia, Lote 4, Loja 1, 1350-206 Campo de Ourique - Lisboa.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons