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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.44 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.34619/qwbn-p729 

Diálogos

Mulheres e conflitos armados: As múltiplas discriminações

Emellin de Oliveira1  , Investigadora

Tiago Resende Botelho2  , Professor Assistente

1 Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Direito, CEDIS - Centro de Investigação & Desenvolvimento em Direito e Sociedade, 1099-032, Lisboa, Portugal. Investigadora. emellin.oliveira@cedis.fd.unl.pt

2 Universidade Federal da Grande Dourados, Faculdade de Direito e Relações Internacionais,79824-140, Dourados (MS), Brasil. Professor Assistente. tiagobotelho@ufgd.edu.br


Dialogar sobre mulheres e conflitos exige a relação entre diversas perspectivas, com base numa análise multi e interdisciplinar - sob pena de sempre falhar na abordagem e nos casos que tenham relevância para um estudo adequado. Vale ressaltar que o tema foi objeto de preocupação na IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres, de 1995, constando, portanto, na ação estratégica conhecida como Plataforma de Ação de Pequim, advinda dos resultados da Conferência de Pequim.

A Plataforma de Ação reconhece que as mulheres se deparam com obstáculos à igualdade e ao seu progresso devido a fatores como a raça, a idade, a língua, a origem étnica, a cultura, a religião ou a deficiência, a pertença a populações indígenas ou a posição social. Muitas mulheres enfrentam obstáculos específicos que resultam da sua situação familiar, particularmente no caso das mães sós e da sua situação socioeconómica, tais como as condições de vida em áreas rurais, isoladas ou empobrecidas. Obstáculos acrescidos impendem ainda sobre as mulheres refugiadas, deslocadas, incluindo as deslocadas no seu próprio país, bem como sobre as imigrantes e as migrantes, inclusive as trabalhadoras migrantes. Muitas mulheres são também particularmente afetadas por catástrofes ambientais, por doenças graves e infecciosas e pelas várias formas de violência contra as mulheres. (CIG, 2013, p. 37)

Assim, sem pretensão de esgotar o tema, mas com o intuito de providenciar uma análise - mesmo que ainda genérica - sobre a questão, partilhamos as nossas reflexões sobre as múltiplas discriminações e as relações que se podem traçar ao analisar-se o binômio mulheres-conflitos armados.

Por que é importante tratar especificamente das mulheres no âmbito dos conflitos armados?

Emellin de Oliveira (EO): Inicialmente, é importante notar que as mulheres exercem muitos “papéis” antes, durante e após os conflitos armados. No entanto, há uma relação mais sutil e perigosa que se reflete no lado feminino aquando de situações de conflitos: quando o próprio corpo de uma mulher se torna o campo de batalha. De há muito tempo é conhecido o intitulado “espólio de guerra”, em que os soldados - na sua maioria homens - tinham o direito de saquear as cidades e violar quantas meninas e mulheres conseguissem. E as violações não servem apenas para satisfazer os desejos mais sórdidos de homens guiados “por seus instintos sexuais”; serve sobretudo como uma importante arma de guerra, racionalizada e direcionada para extinguir a existência de um determinado grupo étnico e/ou social, para desonrar uma geração e para escravizar e humilhar, não apenas as mulheres, mas toda uma comunidade. Ademais, importa referir que, no âmbito dos conflitos, as mulheres podem atuar como combatentes, líderes comunitárias e oficiais de ligação e de estratégia, e até como perpetradoras de violência (Shekhawat & Pathak, 2015). Sharoni e Welland (2016, p. 01), ao estudarem a evolução do pensamento feminista no contexto dos conflitos armados, distinguem três fases do que nomeiam como gendered war, a citar:

  1. Dar visibilidade às mulheres nos debates sobre conflitos armados;

  2. Direcionar o debate para as questões de gênero, e não apenas de mulheres, e confrontar a associação imediata entre “homens e guerra” e “mulheres e paz”;

  3. Analisar o gênero em relação a outras identidades e desigualdades estruturais que transformam e são transformadas pelos conflitos.

É claro que se pode discutir que tratar conflitos em relação ao gênero poderia gerar um resultado diferente da análise em relação às mulheres; contudo, talvez seja importante, no âmbito das hostilidades, entender e analisar “mulheres” no seu sentido mais amplo, de modo a caracterizar, estudar, proteger e representar os mais variados tipos de mulheres, que sofrem as mais diversas violações e retaliações em cenários beligerantes. Outrossim, depreende-se a relevância da perspectiva de gênero no que toca à prevenção e resolução de conflitos armados, bem como nas operações de construção e manutenção da paz, cuja participação feminina ainda carece de maior impulso, o que passa não apenas pela formalidade (documental), mas também pela mudança de mentalidades no que toca à desconstrução dos supostos papéis de gênero (Santos, Roque & Moura, 2000).

Tiago Resende Botelho (TRB): O projeto de sociedade binário, patriarcal e racializado implementado nos séculos XVI e XVII, segue, no século XXI, impondo estruturas de dominação sobre os corpos das muitas formas de ser, fazer e viver de meninas e mulheres, em especial em conflitos armados. Se em supostos tempos de paz a sociedade mundial, com raras exceções, se move politicamente estruturada pelo patriarcado, em tempos de conflitos armados, a estratificação por gênero se avoluma e atos de violências sexuais, psicológicas, morais, patrimoniais e físicas passam a ser ainda mais constantes. Os conflitos armados apresentam-se como um dos muitos efeitos colaterais do Estado Moderno que, com a sua gana de homogeneizar o mundo, a terra e a natureza por meio da propriedade privada, individualista e econômica, vem estrangulando as pluralidades dos viveres e dos seres. Assim, o Capitalismo está para os conflitos armados como os conflitos armados estão para o Capitalismo.

Interseccionalidade e conflitos armados - que relações?

EO: Definitivamente, existem muitas relações que se podem traçar entre interseccionalidade e conflitos armados. A par da questão do gênero e do sexo, que por si sós são um diferencial - uma vez que gênero e sexo representam seções específicas de discriminação, que se podem aprofundar ao cruzar com outras seções, tais como idade, etnia/nacionalidade, etc. -, aquando dos estudos dos conflitos armados, sobretudo em matéria de violência sexual, há variáveis que se relacionam com a próprias motivações dos conflitos, tais como a luta por recursos (naturais ou não), discriminações contra grupos étnicos e minoritários, reconhecimento, secessão e incorporação de territórios, etc.

Gender is not the only tool for the maintenance of power, it often intersects with other identities that enable structural violence - for example, class, religion and race (Davis, 2208, p.71). these factors are mutually constitutive and cannot be separated (Davis 2008, p.71) Yuval-Davis, 2006, p.195). While one element may be more important at certain points in time (for example, gender may be more critical than race in a particular situation or time period), all elements are always presente. (Gentry, 2016, p. 147)

Neste sentido, quantos mais níveis de relação de poder - considerando que o termo interseccionalidade foi usado inicialmente “para designar a interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe” (Hirata, 2014, p. 2) - acumularem-se na figura de uma pessoa, provavelmente, esta estará mais vulnerável aos efeitos dos conflitos. A título de ilustração: uma menina (sexo e idade) de uma minoria (grupo étnico-cultural) economicamente desfavorecida (grupo social) num cenário beligerante tem grandes possibilidades de tornar-se um alvo de grupos maioritários, em especial quando estes utilizam táticas de subversão. Assim, tal como se encontra plasmado na Plataforma de Ação de Pequim, é importante relembrar que “[a]s violações de direitos humanos em situações de conflito armado e de ocupação militar são violações dos princípios fundamentais dos direitos humanos e do direito humanitário internacionais” (ONU, 1995, p. 99).

Nesta linha, os resultados dessas interseções, em geral, levam a dois extremos: o de vítima e o de opressor(a). E, por vezes, os extremos também se podem tocar, como acontece no caso das crianças-soldado, que são vítimas de sequestro/abdução e variados abusos e, ao mesmo tempo, tornam-se opressores de outras pessoas (sem entrar numa análise ético-moral do comportamento que lhe foi ensinado e que é uma forma de sobrevivência).

Para escapar de ambientes de conflitos armados e de perseguições, muitas pessoas deslocam-se das suas zonas de residência habitual para encontrar proteção numa outra região ou num outro país. E durante o percurso, essas pessoas ficam sujeitas a outras relações de poder, que se unem à sua condição de deslocado/migrante, o que pode - novamente - interferir nas suas condições de vida (Freedman, 2008; 2016). Portanto, não é apenas o conflito em si que poderá influenciar as manifestações de violência e hostilidades, mas tudo o que decorre dos conflitos pode resultar em novas dinâmicas de violência, que criam ou reforçam interseções de discriminação, insegurança e, quiçá, mais violência.

TRB: O patriarcado antecede o conflito armado; portanto, em tempos de guerra no século XXI, a utilização da violência contra meninas e mulheres ganha maior intensidade. O projeto de sociedade liberal e capitalista é violento, por si só, nas questões de gênero, mas tenta, de forma branda, utilizando o próprio direito estatal, criar uma falsa sensação formal de que “todos são iguais perante a lei”. Quando na verdade deveriam ser iguais, pois a sociedade mundial se apresenta de forma desigual frente às questões de gênero, raça e etnia. Neste espólio, os conflitos armados se multiplicam, encontrando terreno fértil num projeto de sociedade em que 1% da população mundial possui a mesma quantia de dinheiro líquido que 99% do restante (Oxfam, 2020). Entre os seres empobrecidos, estão as múltiplas mulheres com suas infinitas especificidades. Portanto, ao analisar os conflitos armados, é preciso ter uma lente interseccional, pois, como aduz Maria Lugones, gênero e raça são estruturas que estão no cerne do poder capitalista, eurocentrado e global.

Findas as hostilidades e no período pós-conflito, quais são/seriam os obstáculos que as mulheres podem/poderiam enfrentar?

EO: Para tentar prever os obstáculos que as mulheres venham a enfrentar no período pós-conflito, importa perceber quais foram as razões das hostilidades e qual era o papel das mulheres antes e durante o conflito, culminando por analisar como a força vencedora é composta. A partir deste quadro é que se conseguirá perceber se o que foi planeado como estratégia de reconstrução e manutenção da paz visa efetivamente resolver as questões que levaram ao conflito ou se outras relações de poder irão ser criadas, mas com a mesma base de discriminação.

Com base nisso, Megan MacKenzie (2016, p. 245) chama atenção ao facto de que muito se fala em aplicar uma perspectiva de gênero às operações e políticas planeadas após o período beligerante; no entanto, esta perspectiva não se deve limitar a “procurar por mulheres” nos planos e ações - como um mero fator numérico - mas, sobretudo, deve ser uma compreensão e reestruturação do conceito de segurança, que deve acompanhar uma revisão dos papéis e das identidades de gênero na construção e implementação de operações e políticas de prevenção de conflitos e construção e manutenção da paz.

Our notion of masculinity nostalgia builds on Megan MacKenzie’s (2012) work on conjugal order in post-conflict societies. MacKenzie argues that post-conflict literature and policies associate the ‘return to normal’ after war with a return to particular forms of patriarchal gendered order. She concludes that ‘the “order” that is implicit in notions of peace and stability depends upon multiple gender constructions’. (MacKenzie, 2012, p. 56)

The concept of conjugal order, then, captures how notions of peace often assume, or rely on, gender norms, rules and identities. MacKenzie argues that there are varying understandings of peace and order, and that some conceptions of peace are exclusive and gendered. In similar ways to conjugal order, masculinity nostalgia associates peace with a ‘return’ to an idealized patriarchal order. (Mackenzie & Foster, 2017, p. 03)

Nesta linha, a participação das mulheres deve ser efetiva e significativa, e não apenas calculada em termos percentuais; deve permitir que as mulheres consigam, nomeadamente, ser incorporadas em carreiras nas forças armadas, caso tenham combatido durante as hostilidades, que façam suas carreiras políticas ou como líderes comunitárias, que possam opinar e ter a sua opinião considerada substancialmente nas políticas e no planeamento de operações, e que não lhes seja imposta uma “normalidade” que as relegue a uma subalternidade e a novas relações de poder que voltam a representar uma ordem patriarcal. A perspetiva de gênero, também presente na Plataforma de Ação de Pequim (ONU, 1995, p. 58), é um caminho a seguir, mas ainda é o início de uma longa lista de ações que devem ser implementadas por Estados, organizações e, diria eu, pelos próprios indivíduos (como agentes de mudança).

TRB: O pós-conflito é duplamente violento, pois as meninas e mulheres que vivenciaram os horrores da beligerância estarão inseridas em sociedade em que o patriarcado é tão forte que se apresenta de forma estrutural e institucional. Assim, para além dos traumas do pós-conflito terão que lutar para serem inseridas, por políticas públicas, em espaços que já negam direitos àquelas que, muitas vezes, não viveram os horrores da guerra. Neste sentido, seguirão lutando pelos direitos que lhes foram retirados na beligerância e na pós-beligerância. Como afirma Lugones, na sociedade capitalista, o sistema de gênero se divide em um lado visível/claro e outro oculto/obscuro. O primeiro confere características de pureza e passividade às mulheres brancas, o que reforça sua reprodutibilidade sexual e também as exclui da esfera da autoridade coletiva, da produção de conhecimento e do controle sobre os meios de produção. O segundo é mais violento, pois reduz corpos negros e indígenas à animalidade, ao sexo forçado e a uma exploração tão profunda da sua mão de obra que muitas vezes as leva à morte.

EO, TRB: Em suma, no diálogo que travámos, buscamos analisar a interseção entre vários níveis de discriminação em relação às mulheres no contexto de conflitos armados, em que as questões ligadas ao próprio patriarcado e às desigualdades de gênero receberam especial relevo. Tal interseção aparece também como preocupação na intitulada Conferência de Pequim, sendo um tópico independente no Plano de Ação, o que demonstra que o debate sobre este tema não é recente - discute-se desde antes de 1995 -, mas continua sendo atual e necessário exatamente pela continuidade dos conflitos armados no mundo, bem como pelo tempo que perduram (como a Guerra da Síria, que já ultrapassa uma década). Falar de mulheres é falar de múltiplas discriminações, que se intensificam em cenários de conflitos armados, pelo que lutar pela igualdade é também lutar pela paz.

Referências bibliográficas

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