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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Nov-2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/921f-okbh 

Homenagem

Homenagem Professora Odette Santos Ferreira


A Ciência ensina que nós somos mais influenciados pelo meio em que nos desenvolvemos, crescemos, trabalhamos ou vivemos do que pela determinação genética de que somos portadores.

Senti bem como essa realidade pode ser positiva no convívio que ao longo de muitos anos tive o privilégio de manter com a Professora Odette Ferreira pelo que com ela aprendi.

A epidemia da sida que eclodiu no mundo nos princípios dos anos 80 do século passado teve uma expansão relativamente lenta, comparada com o que aconteceu com a COVID-19.

Os tempos eram outros, a globalização não tinha os contornos que hoje são conhecidos, a deslocação de pessoas fazia-se a um ritmo completamente diferente e, em consequência, o conhecimento alargado de que existia essa ameaça demorou algum tempo a acontecer. A acrescer a isso, a doença era rodeada por algum secretismo na medida em que a sua transmissão era atribuída a comportamentos sexuais criminalizados em muitos países ou, mesmo naqueles onde isso não acontecia, condenados socialmente.

Neste contexto, a identificação dos pacientes tinha de ser salvaguardada sob pena de risco efectivo de discriminação em várias dimensões da sua vida, desde o acesso ao trabalho, ou sua manutenção, à possibilidade de circulação ou convívio social sem serem apontados a dedo.

O que verdadeiramente estava em causa era a capacidade de exercício de direitos fundamentais.

Sendo, à época, uma doença fatal e existindo um enorme desconhecimento sobre a mesma, no que se referia, designadamente, às suas formas de transmissão e de tratamento, havia uma enorme insegurança sobre quais as medidas a tomar, mesmo em termos de políticas de saúde.

Acompanhei bem este processo logo no seu início em Portugal pois, à época, era Chefe de Gabinete do Ministro da Saúde Maldonado Gonelha. O primeiro caso de morte oficialmente diagnosticada em Portugal como tendo sido causada por sida ocorreu em 1985.

Estava, então, já em formação um Grupo de Trabalho que reunia os responsáveis máximos das Instituições do Ministério que tinham competência sobre a matéria, bem como os peritos médicos identificados como tendo maior conhecimento sobre a doença. Por força das funções que desempenhava, dada a sensibilidade política e social da doença, e a insegurança e incerteza que a rodeavam em termos provisionais de expansão e conhecimento científico sobre a mesma, fui eu a pessoa designada para a coordenação desse Grupo.

Fiquei, naturalmente, sempre muito ligada a esta problemática e com uma sensibilidade especial em relação a ela porque o olhar da área da Saúde sobre qualquer doente só pode/deve ser o de o tratar, de tentar cuidar dele aplicando o melhor conhecimento científico disponível, de o proteger e minorar o seu sofrimento, sem fazer qualquer tipo de juízo de valor sobre o que determinou a situação. E essa obrigação é ainda mais premente se se estiver, como se estava naquela altura, perante uma doença fatal e, para além disso, estigmatizante de acordo com os padrões vigentes na sociedade de então.

Recordo-me, com saudade, do Doutor Luís Champalimaud, médico do Hospital Egas Moniz, precoce e abruptamente desaparecido, com quem foram inúmeras as conversas e os pedidos de aconselhamento que troquei, personalidade com quem a Professora Odette Ferreira desenvolvia uma intensa investigação precisamente sobre o VIH, e com quem já não pôde partilhar a descoberta do VIH2, pela qual ficou internacionalmente conhecida e respeitada. Foi, aliás, homenageada por França antes de ser reconhecida em Portugal, como tão frequentemente acontece em circunstâncias semelhantes.

O gabinete ministerial que integrei terminou em Novembro de 1985 e, com ele, a oportunidade de, até então, ter conhecido a Professora Odette Ferreira.

Para presidir à Comissão, cujo desaparecimento seria impensável, foi nomeada a também saudosa Professora Laura Ayres. Neste contexto, não posso deixar de assinalar que candidatos - homens - ao lugar, havia vários, pelo que a escolha de Laura Ayres não foi isenta de críticas. Mas o prestígio de que gozava obrigou a que fosse respeitada. Só não era costume nomear mulheres para funções desta natureza que davam um enorme protagonismo mediático.

Nos cargos públicos que posteriormente vim a ocupar em Portugal, quer como Vice-Provedora da Misericórdia de Lisboa, quer como Administradora-Delegada do IPO de Lisboa, fui sempre acompanhando a evolução da epidemia da sida e desenvolvendo as acções que considerava adequadas e necessárias.

Na Misericórdia, promovi a introdução dos procedimentos de segurança na prevenção da infecção nos seus estabelecimentos e a segurança dos profissionais. Convidei o Professor Machado Caetano, ao tempo membro da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, para nos apoiar nesse objectivo, o que fez graciosamente.

Promovi também a abertura de um estabelecimento inovador em instalações cedidas pela Câmara Municipal de Lisboa com as condições óptimas, a “Casa Amarela”, magistralmente gerida pela Enfermeira Campos Reis e colegas, para acolhimento de doentes desinseridos de contexto familiar e que só esporadicamente necessitavam de tratamento ou internamento hospitalar.

A ligação ao Hospital de Santa Maria e ao então Director do Serviço de Doenças Infecciosas, Professor Francisco Antunes, era facilitada pela vontade e sensibilidade do mesmo e pela proximidade geográfica ao local onde se situava.

Mais tarde, a Professora Odette Santos Ferreira, já como Presidente da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida (CNLCS), veio a ser uma grande apoiante deste estabelecimento e mantinha, quer com as pessoas que o habitavam, quer com os profissionais que o geriam, uma relação de enorme proximidade, diria mesmo, de amizade e interesse demonstrado que todos lhe retribuíam com enorme consideração, respeito e carinho. Era verdadeiramente uma “Madrinha” da instituição.

Para além destas acções, foram acolhidas nos estabelecimentos adequados da Santa Casa as crianças portadoras da doença que tinham sido abandonadas na Maternidade Alfredo da Costa (MAC).

Maria José Nogueira Pinto tinha sido minha colega na Mesa Administrativa da Santa Casa; seguidamente, em funções à frente da Administração da MAC, deparou-se com essa situação trágica de abandono de crianças que viviam, há anos, num estabelecimento hospitalar porque aí tinham sido deixadas, ninguém as queria nem sabia como acolhê-las.

Imediatamente abri as portas da Santa Casa para que essas crianças pudessem ter um ambiente mais adequado ao seu seguimento e crescimento em segurança.

Também no IPO de Lisboa entendi avaliar os procedimentos de segurança a adoptar para protecção dos profissionais e dos doentes nas intervenções aí realizadas, novamente com a colaboração generosa do Professor Machado Caetano.

Compreendemos bem, na situação pandémica que estamos a viver, como a ameaça de uma doença infecciosa, à época inexoravelmente fatal, em relação à qual quase tudo se desconhecia, se transforma num problema altamente perturbador e gerador de insegurança, designadamente para os profissionais de saúde, os mais expostos a riscos em circunstâncias desta natureza.

E foi já quando me encontrava em funções no IPO que tomei conhecimento de que a Professora Odette Ferreira tinha sido nomeada Presidente da CNLCS pelo Ministro da Saúde Arlindo de Carvalho. Não a conhecendo pessoalmente nem ao seu percurso, confesso que estranhei. Na verdade, num ambiente e em funções até aí sempre liderados por médicos - com excepção apenas para o seu período inicial de vida -, não deixava de ser contra a corrente a nomeação de uma Professora/Investigadora da Faculdade de Farmácia.

Mas não podia ter sido mais certeira a nomeação!

A Professora Odette, como mais afectivamente lhe chamávamos, agarrou a missão com ambas as mãos, com uma dedicação empenhada e desinteressada, pois não recebia qualquer remuneração, e trabalhava 24 sobre 24 horas com um afinco inexcedível e cansando todos os seus colaboradores.

Para além das múltiplas acções que empreendeu, merece especial destaque o pioneiro e arrojado Programa de “Troca de Seringas - Diz Não a uma Seringa em Segunda Mão”. Iniciado em 1993 e muito avançado para a época, teve um sucesso estrondoso e foi internacionalmente elogiado e distinguido. E a realidade é que só poderia ter sido concebido por ela, enquanto farmacêutica.

Este programa de âmbito nacional, desenvolvido através de uma parceria entre o Ministério da Saúde e a Associação Nacional de Farmácias e, mais tarde, alargado à participação de outras estruturas, permitia que de forma discreta e segura as pessoas dependentes de drogas injectáveis trocassem nas farmácias comunitárias com total discrição as seringas usadas por um kit que continha material de desinfecção e seringas novas. Deixava-se de partilhar seringas por falta de dinheiro para as comprar, interrompendo-se, assim a transmissão de doenças infecciosas de que fossem portadoras.

Dava-se, então, início a uma profunda transformação na abordagem na luta contra a epidemia, investindo corajosamente numa política de redução de riscos e de minimização de danos que veio a ter um impacto muito positivo, quer na diminuição da transmissão da infecção de VIH e de outras doenças oportunistas como as hepatites, quer na abordagem da toxicodependência como doença.

É preciso recordar que até ao fim dos anos 90 o número anual de novas infecções rondava ainda os dois milhares e, cerca de duas décadas depois, passou a ser de escassas duas dezenas.

Isto sustenta a constatação de que este Programa, depois do Programa Nacional de Vacinação, foi das mais estruturadas e eficazes intervenções em Saúde Pública no país. E de como é importante não interromper programas consolidados neste domínio - o da Saúde Pública - porque os seus efeitos só podem ter impacto a prazo muito longo que está muito para além dos ciclos eleitorais.

E este de que falo não foi fácil!

Fazer intervenções disruptivas em Portugal é sempre visto com muito maus olhos e condenado a violentas críticas sociais, as mais das vezes assentes no preconceito e na ignorância.

Era mais fácil olhar para os toxicodependentes e para as pessoas portadoras de doenças transmitidas por comportamentos de risco como anti-sociais e tratá-las como párias. Olhar para elas como seres humanos vulneráveis, como pessoas doentes que precisavam de ajuda, não cabia nos cânones da época.

Para conseguir uma alteração cultural no sentido da abordagem deste problema como uma questão de Saúde Pública, a Professora Odette Ferreira não se poupou a esforços.

Perseverança, coragem e determinação foram as suas palavras de ordem.

Sabia o que estava a fazer e qual o objectivo que pretendia atingir. Sabia que o caminho só poderia ser aquele. Sabia que para o percorrer encontraria muitas pedras .

Mas afinal o que é que ela tinha encontrado ao longo da sua vida senão pedras duras e difíceis de contornar? Sempre! Na vida pessoal, assim foi; no desenvolvimento de uma carreira científica, assim foi também.

E, portanto, o que havia a fazer seria o que sempre tinha feito: ir em frente sem esmorecer e conquistar para a causa todos os que poderiam ser seus aliados. O espírito científico de que era dotada tinha-lhe incutido a importância da perseverança e da não-desistência.

Como por vezes confidenciava, teve de realizar acções impensáveis para a educação social de que era portadora como, por exemplo, uma senhora falar em público sobre comportamentos sexuais ou apelar à distribuição gratuita de preservativos. Mas fê-lo porque tinha de ser feito e, com isso, foi conquistando cada vez mais adesões à sua batalha, bem como o respeito e admiração dos vários agentes de saúde e dos doentes e suas famílias.

A própria Igreja foi aos poucos abandonando a sua intransigência relativamente ao uso de preservativo. Odette Ferreira era profundamente crente, mas tinha a sua própria forma de pensar e de agir assente em convicções que aliavam a razão à emoção, e desafiava qualquer um no sentido de o convencer das suas verdades. Era uma cientista!

Podemos dizer que milhares de vidas foram salvas e todos compreenderão o valor social e cultural de uma intervenção desta natureza. Se atentarmos no impacto económico da doença, basta dizer que a maior percentagem de pessoas atingidas pela epidemia estava em idade activa, o que significa que o número de anos de vida produtiva perdidos era muito expressivo e pesado.

A Professora Odette Ferreira já tinha colocado o reconhecimento da Ciência realizada em Portugal num lugar de topo. Agora, vinha colocar o respeito pelos direitos humanos num prisma de realização concreta e como prioridade. A Doutrina dos Direitos Humanos não pode ser apenas uma proclamação. Ela tem de ser vertida em acções concretas.

Pelo respeito conquistado, era convidada e distinguida em todos os Congressos e Conferências internacionais organizados para discutir as problemáticas da doença e dos avanços do conhecimento científico sobre a mesma.

Na minha leitura, este Programa e o seu sucesso tiveram o valor acrescido de criar o espaço político para a aprovação na Assembleia da República, no início deste século, da descriminalização do uso da droga para consumo. Foi o reconhecimento da toxicodependência como doença, o que significa que as pessoas doentes primeiro têm de ser ajudadas a não adoecer e depois procurar curá-las da sua dependência. Assim se troca o estigma pelo respeito e o preconceito pela empatia.

A abordagem em vigor em Portugal tem sido estudada e elogiada por organizações estrangeiras e internacionais de prestígio insuspeito. É corrente apontar o exemplo de Portugal como extremamente positivo e de adoptar em todos os países. Importante seria, depois de todos os elogios que tem merecido, designadamente no âmbito das Nações Unidas, que pudesse haver um instrumento de Direito Internacional Público a subscrever pelos Estados influenciadores das grandes mudanças que comungasse desta doutrina. Estou convencida de que a grande criminalidade associada ao tráfico poderia ser mais fácil e eficazmente combatida.

De pioneira na luta contra a infecção hospitalar por meio da realização dos primeiros estudos seroepidemiológicos feitos em Portugal através das técnicas aprendidas no Instituto Pasteur, em Paris, Odette Ferreira torna-se também pioneira da luta eficaz contra a sida.

Enquanto Ministra da Saúde, tive a felicidade de continuar a contar com Odette Ferreira como Presidente da CNLCS.

No que está a ser bem feito, não se mexe, quando muito, aprofunda-se, vai-se mais além.

E assim foi com a Professora Odette.

Com todo o apoio político e com os meios que foi possível afectar para além daqueles que a Presidente da Comissão conseguia obter dos diversos parceiros da Saúde, desenvolveram-se múltiplas acções, desde campanhas comunicacionais de prevenção a sensibilizações em Escolas e Universidades. Odette Ferreira idealizou cursos e participou em reuniões e congressos para divulgação e actualização do conhecimento sobre os resultados da investigação relativa à patogénese do vírus e das novas terapêuticas. Para além disso, os hospitais de referência começaram a ser dotados de quartos de pressão negativa que garantiam as condições de isolamento adequadas para tratamento dos doentes e apoiou-se o desenvolvimento dos hospitais de dia para diminuir a sobrecarga em internamentos desnecessários. Somos, ainda hoje, beneficiários desses investimentos. Entretanto, a investigação começou a dar alguns frutos e surgiram terapêuticas inovadoras, extremamente onerosas, mas muito mais eficazes e menos duras e agressivas para os doentes. Para garantir a estes o acesso às mesmas, afectaram-se as verbas que, através dos jogos sociais, eram destinadas ao Ministério da Saúde.

Era um tempo de “vacas magras” para o Ministério. Anos houve em que as verbas afectas pelo Orçamento de Estado eram inferiores às realizadas no ano anterior.

Por isso era tão necessário ter colaboradores de excelência, visionários e com bom senso, que olhassem para as despesas em saúde como um investimento e que, perante a escassez de recursos, os empregassem bem, no respeito pelo princípio da equidade.

Por isso acolhia sempre com ambas as mãos as acções que Odette Ferreira me apresentava, normalmente já em adiantado estado de operacionalização.

Trabalhava directamente com as pessoas do meu gabinete, todas escolhidas a dedo e com qualidades raras de competência, boa educação e capacidade de trabalho.

No despacho comigo, discutíamos as orientações gerais, eu assinava o que havia a assinar e não perdíamos tempo. Eu sabia que tudo o que tinha sido decidido apareceria feito, sem complicações e no rumo certo.

Um dos projectos a que, então, mais gostei de dar luz verde - e que infelizmente foi depois abandonado, como muitos outros - foi o das carrinhas móveis que circulavam nos locais de prostituição e que davam apoio e sensibilização às prostitutas para que se protegessem e exigissem sempre o uso de preservativo. Para isso era-lhes oferecido todo o material de protecção e procurava-se sensibilizá-las no sentido de as capacitar, prevenindo a exploração e a violência de que eram alvo, abrindo-lhes a porta ao abandono dessa actividade se tal fosse o seu desejo. Sensibilização sem pressão, respeitando a sua autonomia.

Por isso, dizia muitas vezes a Professora Odette que tinha penetrado em mundos para ela até então desconhecidos e empenhava-se em melhorar as condições de vida daquelas e daqueles que considerava mais desprotegidos.

Faz sentido aqui falar ainda da política de cooperação desenvolvida nessa altura com os países da CPLP, organização criada em 1996, e em que a Professora Odette Ferreira, mais uma vez, deu provas da sua capacidade de fazer acontecer. Tinha vivido a sua infância em África, na Guiné-Bissau1, e sentia um enorme amor pela Região e vontade de lutar pelo desenvolvimento das suas gentes.

Ajudava em tudo quanto podia, mesmo que não tivesse a ver especificamente com as funções que desempenhava. E quando existia confiança total num colaborador, esse espírito sempre foi por mim muito bem acolhido. A Professora Odette tinha carta branca!

Lembro-me bem das viagens a países lusófonos em que me acompanhou. Numa delas, tinha conseguido arranjar, por doação de uma empresa, duas incubadoras. Sempre preocupada com a saúde materno-infantil nesses países, propôs que a sua entrega e inauguração fizesse parte do programa da viagem, o que foi considerado adequado.

Chegados ao país de destino, e com um período de tempo muito curto para cumprir um programa de trabalho muito preenchido e exigente, a Professora Odette meteu mãos à obra a desencaixotar as incubadoras e a orientar a sua montagem no hospital público identificado para o efeito. Sucede que se apercebeu de que alguém local pretendia desviá-las para parte incerta, pelo que ficou toda a noite, acompanhada por uma colaboradora do meu Gabinete, a guardar as incubadoras para que eu pudesse fazer a doação oficial das mesmas e inaugurar o seu funcionamento na manhã seguinte.

Não há palavras para classificar uma personalidade assim. Apenas saudar a sua força, a sua determinação, a sua frontalidade, a sua lealdade e estar grata por a ter tido ao meu lado a lutar pela dignificação dos mais vulneráveis.

Depois de tudo o que ficou dito, imaginar-se-á o choque que senti quando soube que a Professora Odette Ferreira, depois de eu ter saído do Ministério da Saúde e abraçado a pasta da Igualdade, tinha decidido abandonar a Presidência da CNLCS.

Telefonei-lhe para perguntar o que se tinha passado e ela transmitiu-me que, depois de uma troca acesa de palavras com a minha sucessora, que ela considerou injustas e num tom que não a respeitava na consideração que entendia merecer, perante a ameaça da demissão, exclamou que quem se demitia era ela própria.

E assim foi, para espanto e preocupação de muitos que lhe devotavam um carinho e um respeito incomensuráveis.

Por isso, antigos alunos, antigos dirigentes que com ela tinham trabalhado, doentes, colaboradores, jornalistas, enfim, um sem-número de pessoas decidiram organizar um jantar de homenagem, e eu tive conhecimento dessa iniciativa. A grande dúvida que pairava era se eu compareceria, membro que era do Governo que tinha decidido prescindir da sua colaboração.

Foi questão que não se me colocou. Com certeza que teria de estar presente. Há tempo para a acção política e há tempo para exprimir reconhecimento e admiração. E eu sentia-me devedora perante a Professora Odette Ferreira. Teria, aliás, feito o mesmo por qualquer colaborador meu que considerasse ter tanto a dar ao país e esse país o desperdiçasse.

Eu tinha programado para o dia uma acção bastante longe de Lisboa e lembro-me do mau tempo que se fazia sentir. Receei não conseguir chegar a tempo, tal a tempestade que se abateu, e o meu atraso fez pensar que eu não teria coragem para aparecer. Seria o normal, naquelas circunstâncias. Por isso, quando finalmente entrei na sala, fez-se sentir um enorme silêncio seguido de um burburinho próprio destas situações.

Claro que esta minha atitude suscitou perplexidade no Governo que eu integrava. A ela eu respondi no sentido de que sentia um enorme respeito por todos os que tinham colaborado comigo no Governo com lealdade, competência e brilhantismo e que nunca os desconsideraria nem deixaria de dar provas da consideração que me mereciam.

O episódio passou, mas deixou marcas, naturalmente. Positivas umas e outras negativas. Só me interessam as positivas, até porque são suficientemente intensas para que se sobreponham a tudo o resto. As negativas correspondem a formas de estar que eu não aprecio e, consequentemente, tenho-as por não existentes. E assim continuo a estar de bem comigo própria.

Para melhor compreender o percurso de vida da Professora Odette Ferreira, cuja riqueza corre o risco de se perder por ter ocorrido em tempos em que ainda não havia a memória digital que nunca se apaga, vale a pena ler uma biografia intitulada Uma Luta, uma Vida, nem Precisava de Tanto, da autoria de Sandra Nobre, publicada em 2014 e cujo prefácio me solicitaram que escrevesse.

Passo a transcrevê-lo:

Em boa hora se concretizou a iniciativa de elaborar uma biografia da Professora Odette Ferreira, e só posso estar grata pelo convite que me foi endereçado para prefaciar a obra. Esta publicação vem colmatar uma necessidade que existia, em nome da verdade, da justiça e da gratidão, de dar ampla visibilidade à vida de uma Mulher - uma Senhora - que deve constituir um exemplo, uma semente de outras vidas que, ancoradas na disciplina, na honestidade, no trabalho dedicado à causa pública, no rigor e na generosidade, contribuam para o avanço da Humanidade. E a Professora Odette Ferreira foi isso e bastante mais, porque acrescentou às suas qualidades e à forma como as pôs ao serviço do interesse colectivo uma simplicidade e uma facilidade na relação pessoal que é raríssima em pessoas de grande craveira e com carreiras de sucesso e reconhecimento nacional e internacional. Sou testemunha presencial daquilo que afirmo, pois tive o privilégio de trabalhar com a Professora Odette Ferreira durante o meu mandato como Ministra da Saúde. Nomeada como Presidente da Comissão Nacional de Luta contra a SIDA (CNLCS) por um antecessor meu - o Dr. Arlindo de Carvalho, foi naturalmente mantida no cargo, embora me tivesse posto elegantemente o lugar à disposição, pois entendi que o Ministério da Saúde não poderia deixar partir uma colaboradora qualificadíssima do ponto de vista científico que, pro bono, punha os seus talentos a render não só para minorar o sofrimento dos atingidos por doença tão ameaçadora, mas também para evitar que muitos outros viessem a cair nas suas malhas. A sua vida de docente universitária e de investigadora permitiu-lhe construir uma rede de relações com as diferentes profissões da saúde, que lhe facilitava a sua acção. Admirada pelos seus colegas e pelos seus alunos da Faculdade de Farmácia, bem como pelos médicos e equipas de profissionais de saúde em conjunto com os quais desenvolvia trabalhos de investigação, pôde transpor para a CNLCS todo esse capital, com o objectivo de desenvolver uma acção meritória de combate a uma doença para cujo alastramento as debilidades e fragilidades sociais do país criavam ambiente propício. É altura para recordar também a excelente e proveitosa colaboração científica que manteve com o Professor José Luís Champalimaud, precocemente desaparecido e que tantas saudades deixou nos seus colegas, nos doentes, e nas pessoas, entre as quais me conto, que muito apreciavam as suas qualidades científicas e humanas. O imaginativo e competente trabalho conduzido pela Professora Odette Ferreira à frente da CNLCS não podia ser interrompido. Isso significaria sempre um retrocesso que custaria caro e não teria qualquer proveito compensatório. Designadamente, o programa de troca de seringas que corajosamente a Professora Odette Ferreira tinha montado e que, articulado com a Associação Nacional de Farmácias, conseguiu a adesão da rede de farmácias em todo o país, foi pioneiro obteve as mais encomiásticas referências internacionais e, sobretudo, conseguiu uma cobertura nacional que preveniu assimetrias regionais tão frequentes neste tipo de medidas, mesmo nas de redução de riscos. Total confiança e apoio da minha parte, fácil articulação com o meu gabinete para prevenir demoras burocráticas não justificadas e uma dedicação sem limite de tempo por parte de Odette Ferreira permitiram um impulso e uma diversificação de actividade de que ainda hoje o país é feliz beneficiário. Na verdade, não só as novas terapêuticas para a SIDA, financiadas pelas verbas dos jogos sociais afectas ao Ministério da Saúde, foram introduzidas, com evidentes benefícios para os doentes, como também a construção nos hospitais de referência de quartos de isolamento, apetrechados de acordo com o mais elevado nível de exigência, permitem-nos, hoje em dia, com muita tranquilidade enfrentar ameaças globais ao nível das doenças transmissíveis, de que a epidemia do ébola é um claro e recente exemplo. Isto para não falar da cultura de transversalidade nas acções de prevenção, que sistematicamente inculcava, e que contrariam a clássica intervenção vertical, tão redutora em termos de resultados. Mas o que é mais surpreendente na personalidade de Odette Ferreira é a conciliação rara entre as qualidades de exigência, que lhe permitiram reconhecimento e distinções internacionais prestigiantes, pelo seu trabalho no domínio da investigação científica e a capacidade de realização prática. Tudo isto fica demonstrado ao longo deste livro, que revela imensas petites histoires que nos contam o outro lado das pessoas e das coisas, que nos permitem perceber melhor o que aconteceu, o que se realizou, o que ficou por fazer e porquê. A Professora Odette Ferreira foi, e continua a ser, uma trabalhadora infatigável, capaz de mover obstáculos, que actualmente e à luz do que passou a ser aceitável para a sociedade, parecem simples, mas que correspondiam a autênticas montanhas. Por exemplo, aquilo sobre o qual era adequado uma senhora falar em público. Sendo a SIDA uma doença sexualmente transmissível, é fácil avaliar os tabus que existiam, quer sociais, quer religiosos, para que sobre ela, de forma a preveni-la, se pudesse falar abertamente. De todos estes desafios a Professora Odette Ferreira saiu incólume e vencedora e, mesmo sem ter sido essa a sua intenção, conseguiu desconstruir hipocrisias e falsos moralistas que, do ponto de vista da saúde pública, são verdadeiros aliados da doença. Neste caso, a SIDA, uma doença social e economicamente muito pesada pois atingia, essencialmente, pessoas em idade activa, na força e na flor da vida. Mas - faceta do meu ponto de vista assinalável - tudo o que fez foi sem agressividade e sem nunca abandonar uma certa coquetterie que lhe permitia estar sempre bonita - bem penteada, bem maquilhada e bem vestida -, fosse ter despacho com a Ministra ou fosse visitar doentes ao hospital ou às suas casas, nos ambientes socialmente mais pesados e adversos. E uma pessoa esteticamente atraente e educada, desde que sem sobranceria, abre imensas portas e recolhe muito mais aceitação na mensagem que pretende fazer passar, sobretudo em ambientes em que a agressividade da vida deixou marcas negativas muito profundas. Por tudo isto, a Professora Odette arranjava as colaborações mais improváveis e punha-as ao serviço da eficácia da sua acção: conquistou doentes, profissionais de saúde, comunicação social, o reconhecimento permanente e a admiração para a vida de responsáveis políticos, como é o meu caso. Fazem-nos falta mais pessoas como a Professora Odette. E, por isso, eu dizia acima que, além de uma homenagem, esta obra pode e deve ter também uma enorme valia pedagógica para as gerações mais jovens: se nos esforçarmos afincadamente e com generosidade, tirando partido das nossas circunstâncias propícias para atenuar as más circunstâncias da vida “do outro”, então talvez a nossa efemeridade tenha servido para algo mais profundo e duradouro do que apenas pensarmos em nós próprios e naquilo que egoisticamente nos interesse. Pensando em Edmund Burke, que, no século XVIII, nos ensinou que “para que o mal triunfe basta o silêncio das pessoas boas”, considero que, se mais pessoas houvesse como a Professora Odette Ferreira, que não hesitou em envolver-se de viva voz e através de acção empenhada, num activismo ao serviço de alguns dos mais estigmatizados, o nosso mundo poderia certamente ser bastante melhor e mais frequentável do que aquilo que é. Obrigada, Professora Odette Ferreira, por ser como é e por continuar a ensinar-nos tanto, a todos.

Esta biografia foi apresentada ainda em vida da Professora Odette Ferreira, numa sessão presidida pelo então Ministro da Saúde Paulo Macedo, que, manifestando grande cortesia democrática, me convidou para fazer a alocução principal.

A sessão teve lugar no auditório principal da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, que hoje ostenta o seu nome. O auditório estava repleto. Mas repleto de personalidades da mais diversa origem e idade e das mais variadas profissões de saúde. Tive ocasião de então proferir algumas palavras em que sublinhei essa qualidade distintiva da Professora Odette: a de receber aplauso unânime numa área em que frequentemente eram tão profundas as divisões e a falta de colaboração. Com a sua maneira de ser e com a forma desinteressada, empenhada e esclarecida como investia no alcance de objectivos, recolhia a colaboração de todos os de boa vontade e conseguia construir equipas improváveis e realizar acções vanguardistas na prossecução do bem comum.

Acabou por dar razão a Einstein quando disse que “o impossível só existe até que alguém duvide dele e acabe por provar o contrário”!

A sida é hoje uma doença crónica. Nunca se conseguiu, até hoje, a descoberta de uma vacina. Em entrevista concedida em 1 de Dezembro de 20162 à APECS3, de quem foi a primeira sócia honorária não médica, Odette Ferreira, “questionada sobre o ponto de situação da investigação na área do VIH/SIDA, menciona que, apesar de ainda não se ter conseguido encontrar um medicamento para eliminar o VIH, conseguiu-se que este parasse de se replicar”. “Inicialmente, a investigação era mais sobre o vírus e as consequências da infeção. Hoje em dia, centra-se em encontrar um medicamento que elimine o vírus, que não produza efeitos secundários e a um preço que permita a sustentabilidade terapêutica em todos os países. Este é o objetivo principal da Indústria Farmacêutica.”

“Relativamente à possibilidade de descoberta de uma vacina, afirma não acreditar que isso venha a acontecer, uma vez que ‘o vírus apresenta uma grande variabilidade e formas de atacar originando diversidade de subtipos e recombinantes dominantes diferentes em vários continentes e os anticorpos [são] pouco ou nada neutralizantes, o que tem tido como consequência a não obtenção de uma vacina após 30 anos de investigação com uma tecnologia de ponta’.

Odette Ferreira defende que, atualmente, ‘a única arma que pode eliminar a infeção é a prevenção, sendo, por isso, necessário apostar mais na informação à população, principalmente na juventude’”.4

Lúcida, inteligente, credora de respeitabilidade e interventora até ao fim, a Professora Odette Ferreira, infelizmente, já não está fisicamente entre nós. Mas o seu exemplo e os seus ensinamentos perdurarão porque investiu sempre no que estava certo e conseguiu transmitir as suas mensagens às várias gerações que conduziu, formou e capacitou.

Ainda hoje, apenas com o pequeno intervalo a que a pandemia da COVID-19 obrigou, um grupo dos amigos que ela escolheu para festejar o seu aniversário continua a reunir-se nesse dia. É um jantar carregado de emoção e de sentimentos de reconhecimento, de saudade e de gratidão.

Foi a forma que escolhemos para dar sentido ao que tantas vezes a ouvimos repetir: não há anos, há vida! E é essa vida cheia, vibrante e plenamente vivida por quem considerava que não precisava de tanto que vale a pena celebrar, recordar e difundir.

Obrigada à Faces de Eva por ter querido ser parte deste reconhecimento!

Colares, 25 de Abril de 2021

1De lá saiu para frequentar como interna o Colégio Moderno, tendo ficado grande amiga do casal Soares.

2Dia Mundial de Luta Contra a Sida.

3Associação Portuguesa para o Estudo Clínico da Sida.

4https://justnews.pt/artigos/odette-ferreira-a-1a-socia-honoraria-nao-medica-da-apecs#.YMySG-hKhPY

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