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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa June 2021  Epub Nov 30, 2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/lnvh-9akm 

Homenagem

Maria Odette Santos Ferreira: Uma mulher da Ciência que a Saúde Pública imortalizou

Ana Paula Martins1 

1i Universidade de Lisboa, Faculdade de Farmácia, Lisboa, Portugal.


Maria Odette Santos Ferreira foi uma das mais importantes cientistas portuguesas, pioneira na investigação sobre a infeção do VIH/sida em Portugal. Notabilizou-se pela descoberta do tipo 2 do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH-2), em 1986, em plena fase de expansão da epidemia por VIH/sida em Portugal e no mundo. Farmacêutica, investigadora e professora universitária, a sua vida foi uma missão ao serviço da Ciência, do Ensino e da Saúde Pública, com uma dedicação extraordinária à sua faculdade, a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL), e aos seus alunos, para quem estava sempre disponível, preocupada com o seu sucesso académico e profissional e ciente da elevada responsabilidade na formação de uma profissão em contacto próximo com a população, com elevada apetência para uma intervenção cívica e comunitária, em especial junto dos mais desfavorecidos e fragilizados.

Licenciou-se em Farmácia decorria o ano de 1970, e iniciou pouco depois uma profícua colaboração com o Institut Pasteur, em Paris. Com o Prof. Léon Le Minor, no Laboratório de Lisotipia Entérica, investigou as infeções hospitalares provocadas pelo bacilo piociânico observadas nos hospitais de Lisboa, identificando uma proporção bastante elevada (20%) de estirpes portuguesas que não eram tipificáveis pelo sistema de lisotipia de Lindberg. Este trabalho ajudou a definir os lisótipos das estirpes hospitalares portuguesas e a redefinir um novo lisótipo (lisótipo n.º 104). Também nesta altura isolou um novo bacteriófago ativo sobre uma estirpe portuguesa (fago acinetobacter 82-14), que foi referenciado no Advances Virus Research, numa descoberta que viria a ter importantes implicações filigenéticas e taxonómicas.

Lecionava na Faculdade de Farmácia enquanto preparava a sua dissertação de doutoramento, concluído na Université Paris-Sud, em França, em 1977.

Ficou viúva no ano seguinte, do homem que conheceu naquela mesma Faculdade, mas, mesmo muito abalada, não desistiu. A vida iria continuar. Para sempre diferente. Dedicou-se dia e noite ao trabalho. Avançou sempre, até ao fim. Viveu os desgostos e as alegrias que dizia lhe estarem reservadas, mas foi sempre uma mulher livre. Falava pouco, mas dizia sempre o que pensava. Preocupava-se em ser compreendida, mas tinha a maior indiferença por aquilo que pensavam dela ou das suas atitudes. Só lhe importava cumprir as suas missões, fazer cada vez melhor, ultrapassar os fracassos de forma digna e corajosa e conseguir, apesar de tudo aquilo que já representava, manter-se humilde, apoiando a sua equipa na faculdade, os seus amigos, os seus alunos, a sua família.

Ao longo de toda a década de 80, continuou a trabalhar com o Institut Pasteur, agora com a Unité d’Oncologie Virale, liderada pelo Prof. Luc Montaigner, onde desenvolveu treino nas técnicas de deteção do lymphadenopathy aids virus (LAV). É desta forma que consegue proceder, em 1986, ao isolamento do 2.º vírus da sida, o LAV-II/VIH-2, num doente guineense internado no Hospital Egas Moniz, com a equipa clínica liderada pelo Dr. José Luís Champalimaud. Esta descoberta deveu-se sobretudo à forte determinação de Maria Odette Santos Ferreira. Foi a sua persistência, a sua intuição e a sua teimosia que venceram o descrédito e ceticismo de alguns clínicos e cientistas sobre a possibilidade de um segundo vírus VIH. Apesar da falta de condições técnicas e de segurança para levar adiante o trabalho científico no seu laboratório, na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, estudou horas a fio, dias sem conta, as características dos doentes com o VIH-1, assim como dos que, tendo toda uma sintomatologia semelhante, mas não totalmente coincidente, apresentavam resultados negativos nos testes de confirmação do VIH-1, o que, no seu raciocínio dedutivo, só se justificava por uma infeção com um vírus em tudo semelhante, mas geneticamente diferente. A descoberta revolucionou o mundo do diagnóstico serológico e contribuiu para que Portugal e a Unidade de Retrovírus e Infeções Associadas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa se expandissem e concentrassem importantes linhas de investigação na área dos retrovírus.

A partir de então, centrou toda a sua atividade no estudo e prevenção da infeção pelo VIH/sida. Sabia que havia muito para fazer. Encontrar medicamentos, ou talvez uma vacina (que sempre lhe pareceu difícil de descobrir), apoiar estes doentes com cuidados de saúde adequados, melhorar as condições de tratamento e acesso às terapêuticas mais atuais, combater a fortíssima discriminação a que eram sujeitos e, sobretudo, investir na prevenção, na educação através do conhecimento. Só assim muitas vidas seriam salvas. De muitos jovens, de muitos adultos, de muitas crianças, cuja transmissão mãe-filho condenava.

Entre 1992 e 2000, Maria Odette Santos Ferreira assume a coordenação da Comissão Nacional de Luta contra a Sida, desenvolvendo inúmeros projetos e representando Portugal ao mais alto nível nas organizações de saúde internacionais. Em conjunto com médicos como António Sarmento, Fernando Maltez, Francisco Antunes, Kamal Mansinho, Lino Rosado, Jorge Torgal, entre outros, formou a equipa clínica que liderava a estratégia de combate a uma das maiores epidemias do século XX.

De valores e princípios sólidos, fundados na ética humanista e bonomia cristã, desafiou ministros e reitores, batendo-se, sem hesitar, em defesa dos doentes com VIH/sida. Sabia que era preciso um forte investimento para que os cidadãos que utilizavam drogas injetáveis não partilhassem seringas, não as deixassem abandonadas em jardins e parques onde as crianças se poderiam infetar. Sendo o sangue uma das vias de transmissão da doença, sabia que as transfusões sanguíneas requeriam uma atenção especial, com uma abordagem epidemiológica, clínica e laboratorial, que garantisse a segurança do recetor. Também a transmissão sexual exigia uma atenção e um cuidado redobrados na comunicação, nas mensagens de prevenção, na identificação e proteção de grupos mais expostos, na desmitificação de tabus sociais, como a homossexualidade, a prostituição ou outros comportamentos de risco para transmissão da infeção por VIH/sida.

Um ano depois de assumir funções, iniciou um programa estruturante para a prevenção da infeção pelo VIH/sida: o Programa de Troca de Seringas “Diz não a uma seringa em segunda mão”, que resultou de uma parceria entre o Ministério da Saúde e a Associação Nacional das Farmácias. Tinha como finalidade diminuir o risco de transmissão do VIH/sida e de outras doenças transmissíveis (hepatites B e C) entre a população toxicodependente, mas representou também uma luta contra a discriminação, garantindo aos cidadãos utilizadores de drogas injetáveis o acesso a um espaço de saúde diferenciado, seguro, com oportunidades de abordagens preventivas e assistenciais. A imensa determinação que Maria Odette Santos Ferreira colocou na concretização deste projeto, inovador na Europa, associada à coragem que os farmacêuticos nas suas farmácias lhe dedicaram, ajudou a salvar vidas, a mitigar o preconceito e a evidenciar que o investimento em prevenção e educação, feito na proximidade, pode contribuir de forma decisiva para o controlo de uma epidemia. O programa foi premiado internacionalmente como exemplo de boas práticas na prevenção da infeção e abordagem à toxicodependência. A Organização Mundial da Saúde reconheceu-o como um dos projetos com maior impacto em saúde pública e a Comissão Europeia considerou o melhor projeto apresentado por um país comunitário, não só pelo seu carácter inovador, mas por ter sido possível desenvolvê-lo, simultaneamente, em todo o território português, através da rede de farmácias comunitárias. Desde então, foram distribuídas e trocadas mais de 50 milhões de seringas, num programa de saúde pública com evidentes ganhos económicos e poupanças em recursos de saúde.

Maria Odette Santos Ferreira envolveu-se em outros projetos com impacto significativo na saúde pública, como a criação de centros de rastreio anónimos e gratuitos ou de um centro drop-in no Intendente, em Lisboa, dirigido às trabalhadoras do sexo, com serviços de aconselhamento, análises, consultas e proteção. Foi ainda responsável, em 1997, pela criação do Programa CRIA - Conhecer, Responsabilizar, Informar, Agir, que apoia projetos e ações integradas na luta contra a sida, através do conhecimento e informação sobre a doença e da participação efetiva da comunidade e dos grupos-alvo na definição e concretização de medidas que possibilitem a melhoria da qualidade de vida das pessoas infetadas. De destacar ainda a coordenação das Redes Comunitárias de Apoio, que Maria Odette operacionalizou a nível nacional, enquanto coordenadora da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, e que foram replicadas em todos os países comunitários. Promoveu igualmente a implementação de vários serviços de apoio domiciliário, coordenados pelo Projeto Solidariedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, bem como a construção de uma residência para apoio a doentes com sida em situação precária. Criou ainda a primeira unidade de cuidados paliativos para indivíduos com VIH/sida na cidade de Lisboa (Residência Madre Teresa de Calcutá) e impulsionou a criação das Comissões Distritais de Luta Contra a Sida, que integravam representantes dos sectores da Saúde, Segurança Social, Educação e Juventude, coordenados pelos presidentes das respetivas Administrações Regionais de Saúde. Promoveu também a reabertura da Linha SIDA e desenvolveu inúmeras atividades, de reconhecido mérito, com a finalidade de melhorar a qualidade de vida dos doentes hospitalizados infetados pelo VIH/sida, garantindo, simultaneamente, a proteção dos profissionais de saúde.

A sida tudo mudou. E Maria Odette Santos Ferreira sabia-o. Sabia que era uma luta longa e difícil. Sobretudo uma luta contra a discriminação, que exigiria décadas de esforço e empenho numa mudança cultural da sociedade. Felizmente essas décadas passaram e Maria Odette Santos Ferreira viu ainda em vida os resultados do seu trabalho, e de muitos outros que a acompanharam no combate ao VIH/sida, hoje considerada uma doença crónica e tratada como tal, embora subsistam metas importantes na deteção precoce, no tratamento, no aumento da sobrevivência e numa sociedade com “tolerância zero” contra a discriminação.

O feito científico e o trabalho na luta contra a epidemia são marcos na carreira de Maria Odette Santos Ferreira, mas a sua personalidade e carisma marcaram também a vida de centenas de alunos e colegas. Os testemunhos de quem com ela conviveu revelam-nos a vida, obra e carácter únicos de uma mulher extraordinária, para quem não havia barreiras nem impossíveis, totalmente dedicada às pessoas e ao País. Acreditou sempre que a educação era o caminho para a liberdade, e que só através da Educação e da Ciência se conseguiria construir um mundo mais justo, com menos desigualdades, mais fraterno.

Apesar de ter nascido na segunda década do século XX, conquistou a sua liberdade, que poucas mulheres tinham então. Pelo seu investimento numa formação de nível superior, pelo trabalho diferenciado, pela determinação inquestionável de se internacionalizar, para mais rapidamente progredir. Amava Paris e ficou para sempre grata aos franceses por a terem acolhido na comunidade científica, por tudo o que aprendeu e pelo impulso que isso lhe deu. Mas Portugal foi sempre a sua pátria e a sua missão contribuir para o desenvolvimento da Ciência, em especial da virologia. Neste trajeto, enquanto cientista era feliz, serena, focada na investigação, talvez até um pouco estrita e reservada nas emoções. Contudo, era como professora que encontrava o seu espaço de esperança e afeto. O seu prolongamento e continuidade. Sóbria, clara nos objetivos, minuciosa, disciplinada, pontual, muito disponível e sempre afirmativa. Como se cada aula fosse uma lição de vida. A influência da vivência no Colégio Moderno era evidente. Dizia sempre que lhe tinha marcado para a vida e todos sentíamos que era verdade. Os professores têm muita influência nos alunos.

Orientou inúmeros projetos de Doutoramento e Mestrado, realizou centenas de cursos de formação avançada e pós-graduada, participou como convidada em centenas de Congressos na área da Infeciologia, Microbiologia e Virologia. Era muito respeitada pelos seus pares, pelos médicos e pelas outras profissões ligadas à saúde. Tinha um vasto conjunto de amigos com quem partilhava muitos momentos de felicidade, com quem contava em todas as horas e a quem nunca falhava. Com ela, ninguém ficava para trás. Todos eram importantes e a cada um dedicava uma atenção especial e um carinho particular. Foi sempre uma mulher disposta a desempenhar papéis difíceis, sem nenhum tipo de expectativa de reconhecimento ou retribuição. Considerava que os alunos só poderiam ser bem-sucedidos e bons profissionais se a Faculdade tivesse uma estratégia ambiciosa, partilhada entre o Ensino e a Investigação. Esse alinhamento era fundamental para que a Ciência que se produzia na Faculdade tivesse impacto na vida das pessoas e gerasse progresso na sociedade.

Foi coordenadora e regente de vários cursos graduados e pós-graduados na área da Microbiologia e nunca hesitou quando chamada a assumir responsabilidades na gestão da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, fosse no Conselho Pedagógico, fosse no Conselho Diretivo, impulsionando a reorganização da Faculdade e das suas estruturas de gestão, linhas de investigação e modelos de ensino. Chegou a Professora Catedrática em 1987.

Como sempre dizia, “encaro todos os trabalhos, todos os cargos como uma missão, não como um emprego. Só assim faço o melhor que posso e sei”. Defensora da liberdade, lutou também contra alguns excessos pós-revolucionários, como os alunos não quererem fazer exames. Com a professora Maria Odette Santos Ferreira não havia passagens administrativas. Faziam-no obrigatoriamente. Por muito que reclamassem, cumpriam a avaliação. E dizia muitas vezes: “um dia ainda me vão agradecer por esta exigência”. Muitos a recordam pelos incentivos às suas equipas para que publicassem os seus trabalhos, procurassem oportunidades de desenvolvimento, concluíssem o doutoramento. Dando o necessário apoio, mas fazendo igualmente sentir que só com muito trabalho e sacrifício se faz uma carreira na Academia e na Investigação.

Era uma mulher muito exigente e liderava pelo exemplo. Enfrentava todas as lutas que fosse preciso para que vingasse a humanidade, a justiça, a verdade. Nunca teve medo. Nunca lhe vi hesitação.

Premiada com as mais altas distinções em Portugal e França, Maria Odette Santos Ferreira manteve sempre uma postura discreta, orientada para o bem comum. Ainda em vida, foi alvo de variadíssimas homenagens. Foi nomeada pelo governo francês “Chevalier dans l’Ordre des Palmes Academiques”, em 1975, pelo seu desempenho no fortalecimento da cooperação científica entre Portugal e França e “Chevalier de la Légion d’Honneur”, em 1987, pelo talento e mérito que a levaram a uma descoberta da maior relevância no quadro das investigações da sida.

Em Portugal, foi agraciada pela Presidência da República, em 1988, com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, pelo renome internacional granjeado que muito contribuiu para o prestígio de Portugal. Em 2006, recebeu o Prémio Universidade de Lisboa e, em 2012, o colar do Prémio Nacional de Saúde. Voltou a ser condecorada pelo Presidente da República, no início de 2018, com a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública, o mais alto grau desta Ordem de Mérito portuguesa, que se destina a galardoar serviços prestados à causa da Educação e do Ensino.

Também a Ordem dos Farmacêuticos reconheceu o seu vasto trabalho, prestígio e dedicação à profissão, atribuindo-lhe a sua Medalha de Honra, em 1989, e a Medalha de Ouro, em 2012. Com o propósito de contribuir para a promoção e dinamização da investigação em Saúde Pública por farmacêuticos em Portugal, criou também, em 2010, um prémio de investigação científica com o seu nome, designado Prémio de Investigação Científica Professora Doutora Maria Odette Santos Ferreira.

Avessa às demandas do tempo, nunca se despediu dos alunos nem da FFUL. Recusou sempre aposentar-se, proferir a sua “última aula” e a cerimónia de jubilação. Para ela, a última lição não se justificava porque a viveria naturalmente até ao fim dos seus dias, na FFUL, no seu gabinete, disponível para todos os professores e alunos que a procuravam. A faculdade, o seu grupo de investigação e os alunos fizeram parte da sua vida até ao fim. Vê-los diariamente dava-lhe vida e propósito. E a eles também.

Partiu a 7 de outubro de 2018, no Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, onde sentia perto o seu médico e amigo, Kamal Mansinho. Depois de uma luta incessante pelos valores humanos que a caracterizavam. Cumprindo todas as missões em que se envolveu, em prol do progresso que sonhou para o seu país e sob o conforto de uma vida digna e com propósito. Todos os dias a recordamos ao passar no Auditório da FFUL, a quem foi dado o seu nome por proposta do Conselho de Escola, em 2018. Passados mais de dois anos vivendo a sua ausência, sabemos que Maria Odette Santos Ferreira nunca partiu definitivamente, porque deixou parte de si connosco e levou consigo uma parte de cada um de nós.

Ana Paula Martins. Universidade de Lisboa, Faculdade de Farmácia, Lisboa, Portugal. Email: apmartins@ff.ulisboa.pt

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