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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Nov-2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/190g-i1ey 

Homenagem

Maria Odette Santos Ferreira

Dulce Salzedas1 

1i Jornalista.


Lembro-me muitas vezes daquele dia. Um dos últimos almoços a duas. Tinha tudo para ter sido menos agradável. Começou com um enorme aborrecimento que quase me levou a alterar os planos conjuntos de almoçar à beira do Tejo.

A professora estava com algumas dificuldades de mobilidade e por isso tentei encontrar estacionamento perto do restaurante, para que não tivéssemos de andar muito a pé. Sem sucesso, acabei por arranjar lugar do outro lado da avenida, junto ao jardim do Mosteiro dos Jerónimos. Na minha cabeça o percurso era fácil: atravessáramos a avenida através do túnel do jardim que tem um elevador. Ela achou ótima a ideia. Só que o elevador estava avariado. Mas só disso nos apercebemos quando já tínhamos descido as perto de quarenta escadas e nos preparávamos para subir até à superfície pelo elevador.

Eu fiquei lívida, sem saber o que fazer ou pensar. A professora também estava preocupada e cansada sentou-se nos degraus da escada. Olhou para mim e disse: “Acho que não consigo sair daqui. A minha perna não o permite”. Fiquei sem palavras. Sem saber o que fazer. Surgiu-me até a ideia de chamar os bombeiros. Ficámos as duas ali paradas uns bons minutos. Eu de pé. Ela sentada cortava todos os meus inícios de conversa. De repente levantou-se olhou para mim e disse: “Anda, vamos subir”. E foi! Num instante subiu os 40 e muitos degraus. Quando chegou ao cimo deu uma sonora e jovial gargalhada e soltou um “nem eu imaginava que seria capaz de fazer o que fiz”.

Entrámos no restaurante a rir. O almoçou demorou quase três horas: comida italiana e um enorme e suculento gelado como sobremesa. E Coca-cola. Nesse dia, como aliás quase sempre o fazia, surpreendeu-me com o sorriso nos olhos e a felicidade por me ver feliz; a atenção com que me ouvia falar do meu dia a dia, do meu trabalho, da minha família. E a generosidade. Sempre a generosidade nos gestos, nas palavras.

Era como se pudesse ficar ali a vida toda a ouvir-me e a falar. Como se não houvesse mais nada na sua vida. Foi sempre assim. A professora Odette sempre nos fez sentir únicos. Mesmo se fôssemos nós a sentir o contrário. Sábia, conhecedora da alma dos outros. Divertida, muito. Surpreendente. Ao ponto de um dia, nos preâmbulos da nossa amizade me ter colocado dentro da Assembleia Nacional francesa, sob a promessa de que tudo o que ali ouviria seria apenas para meu conhecimento (eu tinha ido a Paris fazer a cobertura do primeiro encontro de governantes europeus sobre sida). Acho que foi também por causa desse episódio que a nossa relação começou. Depois vieram outros encontros, outras conversas. Começámos a ir almoçar de vez em quando. Depois a jantar. E a conversar muito.

A nossa amizade converteu-se numa relação familiar. Nunca se esqueceu de um aniversário meu (e ela sabia o quanto eu gostava do meu dia de anos), do aniversário da minha filha. Num dos meus aniversários, amigas organizaram-me uma festa-surpresa jantar/dançante num restaurante com música africana. A professora foi das últimas a sair. Já passava das duas da manhã. E dançou muito. No dia seguinte telefonou-me a agradecer a festa. Que se tinha divertido imenso.

Tínhamos em comum a paixão por África e a comida de sabores africanos. Quando fui à Guiné-Bissau - ela já estava menos bem -, telefonou-me duas vezes. No meu regresso combinámos que tínhamos de lá ir: eu queria conhecer Bolama, a cidade onde a professora viveu.

Perdi a conta às vezes que lhe telefonei - dia e noite - pedindo ajuda para reportagens e notícias. Foi ela quem me ensinou o bê-á-bá á da imunologia, da infeciologia, do laboratório. Passava horas a explicar-me como funcionavam os vírus, as bactérias. Perdi também a conta às vezes em que lhe telefonei para pedir conselhos. E ela esteve lá sempre.

Eu, que nunca a tive como professora, fui, durante todos os anos em que privei com ela, sua aluna. No sentido mais estrito e, ao mesmo tempo, lato da palavra: alimentou o meu conhecimento; sustentou a minha vontade de saber mais; fez crescer em mim o sentido de partilha. Aliás a professora Odette Santos Ferreira era professora por excelência. Era feliz a partilhar conhecimento. Emocionava-se com o crescimento dos outros. Identificava-se com todos e qualquer um. Sobretudo com os mais necessitados. E era solidária. Ah, esse era o seu maior atributo, quase dom.

AFORTUNADA. Sim, é o que sou e fui por tê-la comigo.

Dulce Salzedas. Jornalista. Email: dulcesalzedas@sic.impresa.pt

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