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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Nov-2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/lrpl-cp8c 

Estudos

Figurações do feminino e da paisagem em Raul Brandão: Outras formas de habitar o mundo

Representations of women and landscape in Raul Brandão: Other ways of inhabiting the world

Anabela Galhardo Coutoi  ii  iii 
http://orcid.org/0000-0002-8862-7531

1i Universidade Aberta, Lisboa, Portugal

2ii CEMRI - Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Lisboa, Portugal

3iii Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM - Centro de Humanidades, Lisboa, Portugal


Resumo

O presente artigo pensa a articulação entre a representação das mulheres e da paisagem num conjunto de textos literários de Raul Brandão, a partir de um prisma que cruza os estudos de género, os estudos literários e os estudos da paisagem. Em páginas admiráveis, o autor traça retratos ora pungentes, ora luminosos das mulheres dos pescadores (Os Pescadores), das prostitutas (Os Pobres) e de outras figuras femininas (“O Mistério da Árvore”). Ver-se-á de que modo essas personagens femininas poderão ser lidas como um veículo privilegiado para repensar o humano na sua interconexão com o mundo, com a natureza e com a vida.

Palavras-chave: Raul Brandão; Representações do feminino; Paisagem; Repensar o humano

Abstract

From a perspective that crosses gender, literary and landscape studies, this paper considers the relation between women and landscape in a set of literary texts by Raul Brandão. The author draws portraits, sometimes poignant, sometimes luminous of the fishermen’s wives (Fishermen), prostitutes (The Poor), and other female figures (“The Mystery of the Tree”). It will be seen how these female characters are a privileged vehicle for rethinking the interconnection between the human, the world, nature and life.

Keywords: Raul Brandão; Representation of women; Landscape; Rethinking the human

Visa este artigo estabelecer um diálogo com alguns textos de Raul Brandão, deixar que eles venham ao nosso encontro no sentido deleuziano, trazendo para primeiro plano a questão das mulheres e do feminino, temática pouco explorada no conjunto da receção crítica do autor de Húmus. Mais especificamente, interessa pensar a articulação entre a representação das mulheres e da paisagem tal como se nos oferece num conjunto de textos brandonianos, em particular: os capítulos III e VII de Os Pobres (1906), intitulados respetivamente “As mulheres” e “A primavera”; o texto “Mulheres” de Os Pescadores (1923); e, finalmente, o conto “O Mistério da Árvore” inserido em A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore (1926).

Nestas páginas admiráveis o singular escritor traça retratos compassivos - ora pungentes, ora luminosos - das mulheres dos pescadores, das prostitutas ou de outras figuras femininas, de onde emerge uma união íntima com a paisagem e o ambiente que as envolve. Vale a pena interpelar esses textos de um ponto de vista tríplice que conjuga os estudos literários, os estudos de género e os estudos da paisagem.

Como se sabe, a paisagem literária implica uma certa visão do mundo intimamente ligada à sensibilidade e ao estilo de cada escritor (Richard, 1984). Mais do que enfatizar tal ou tal referente, o que está em causa na descrição de uma paisagem é uma construção literária, um processo de reelaboração dos lugares pelo imaginário e pela palavra (Collot, 2001, pp. 489-511).

Poder-se-á dizer que nas narrativas de Raul Brandão aflora um pensamento espacial, em que a memória ou a imaginação criadora surgem intimamente ligadas aos lugares, que são “mapas do solo mental” (Collot, 2014, p. 13) do autor.

Neste contexto, procurar-se-á refletir sobre a dimensão humana e sensível do espaço nos textos referidos anteriormente. Ver-se-á que naquelas obras a paisagem configura uma relação concreta, afetiva e simbólica do ser humano aos lugares. Nesse pensamento espacial algumas figuras femininas detêm um papel de destaque, participando de uma íntima ligação com a natureza e a paisagem. A nosso ver, o seu desenho convidará a eventuais aproximações a algumas das problemáticas que o “posthumanism” e o “postanthropocentrism” têm vindo a colocar. Reportamo-nos especificamente à cartografia intelectual da pensadora feminista Rosi Braidotti, apostada em repensar o humano na sua interconexão com esses outros não humanos (natureza, animais, máquinas, ambientes, sistemas, etc.), para além do quadro das limitações humanistas e antropocêntricas a que o pensamento hegemónico nos habituou (Braidotti, 2013)1. Para a autora de The Posthuman, o desafio da condição pós-humana estará na possibilidade de os indivíduos aceitarem tornar-se “other-than-human”, encontrarem novas formas de laços sociais e reavaliarem zoe como força vital positiva, o que a pensadora designa como ‘becoming-Earth’ (Braidotti, 2011, p. 267).

Vejamos então de que forma as figuras femininas brandonianas constituirão um estímulo para refletir sobre o humano na sua relação com o mundo, com a natureza e com a vida.

Atentemos nos diversos ângulos de perspetivação das personagens, tal como os textos em apreço nos oferecem, a partir da sequência de galerias: o mar, a luz, a noite, a natureza primeva.

As mulheres e o mar

Comece-se por Os Pescadores, obra que Manuel Mendes, no Prefácio à primeira edição, classificou como “cântico luminoso a uma faixa de terra e mar que corre toda a costa portuguesa” (Brandão, 1923).

Num registo híbrido, conjugando memórias, evocações, descrição de paisagens e registo de tipos sociais, o texto intitulado “Mulheres” retrata as vivências, os sentimentos e a situação das mulheres dos pescadores nas diferentes regiões da costa norte de Portugal nos alvores do século XX.

Contrariando uma das vertentes dominantes da representação literária tradicional do feminino apostada em reduzir as mulheres, ora a objeto de desejo masculino, ora ao outro do homem, tal como Beauvoir entreviu em O Segundo Sexo (1949), saliente-se desde já que, naquela obra, as mulheres surgem na condição plena de sujeitos, na plenitude da sua experiência humana, como “seres humanos integrais” (Henriques, 2010, p. 15). Efetivamente, é numa atitude de grande empatia e de solidariedade para com a condição feminina que se traça um retrato singularizado daquelas mulheres portuguesas, que o texto visibiliza e homenageia.

Tal como surgem na pintura que o autor nos oferece, as mulheres dos pescadores representam uma das faces mais martirizadas e simultaneamente mais dignas da condição humana. Com um misto de precisão, própria do registo documental, e de memória afetiva, onde sobressai o fragmento e a impressão difusa, mediada ora pelo tempo, ora pelo sonho, vai-se compondo aos poucos a densidade e a volumetria do retrato de grupo das mulheres dos pescadores: força anímica, espera, luto, trabalho, dimensão telúrica são os grandes traços que o animam.

Enquadradas numa paisagem rural e marítima, e em plena harmonia com ela, as mulheres dos pescadores são apresentadas numa íntima união com os espaços que as modelam, onde pontuam o mar, a praia, a fonte, o tanque, a luz marinha.

A abrir o texto “Mulheres” de Os Pescadores, impõe-se, dramático e sublime, o retrato da Velha da Foz do Douro:

Esta velha crestada pela desgraça e pelo tempo, com sulcos de velhice e de lágrimas na cara é que os [aos pescadores] impele para o mar. E o mar tem-lhos levado todos. (Brandão, 1995, p. 95)

A figura da Velha da Foz do Douro constrói-se em íntima simbiose com o mar tumultuoso, feroz e devorador, fonte de vida e sustento e, simultaneamente, origem de perigo e morte. É o mar onde se debatem homens e barcos açoitados pelas ondas e pelo vento numa luta sem fim. Identificada com o próprio oceano, essa figura encarna a força espiritual e anímica que atrai os pescadores para o seu destino, que não raro coincide com a morte:

Andou toda a vida de luto. Viu-os despedaçados nas pedras e deitou toda a ternura que tinha para deitar. Mas incita-os, pragueja, empurra-os, para que não haja fome em casa. (Brandão, 1995, p. 95)

As marcas dessa luta implacável estão bem impressas no corpo devastado da velha mulher que o autor expressa com mestria: “Dobra-se-lhe o corpo exausto, rodilha gasta pela vida!” (Brandão, 1995, p. 95). O seu corpo ressequido investido de solenidade telúrica é um misto de mar, barco, velas, praia. Queimado de sol e de salitre, verga-se como vela quebrada, “bebendo as lágrimas e o cuspo do mar e contendo o coração em farrapos, com as mãos negras apertadas sobre a tábua rasa do peito” (Brandão, 1995, p. 95). Esta figura trágica - lembrando as primitivas deidades Graiai2, velhas e funestas filhas do mar - funde-se no mar revolto que em contínua agitação empurra os barcos, cujo movimento ela procura acompanhar, numa vertiginosa ânsia, ora correndo ao longo da costa, ora acorrendo à praia, incansável:

Se os batéis estão em perigo, corre a costa, açoitada pelo vento [...]. E corre com as redes à cabeça, a cesta no braço e os soluços represados na garganta, levando o neto atrás de si a rasto para o barco. (Brandão, 1995, p. 95)

Sob esse fundo de mar, ora sombrio, ora luminoso, vão surgindo as mulheres dos pescadores, quais Penélopes, enquadradas nessa dimensão mítica da representação feminina que é o tema literário da espera3.

A espera confunde-se com o quotidiano que é a partida dos homens para o mar, cujo regresso as mulheres diariamente aguardam. Profundamente marcada pela incerteza, a condição da espera nestas mulheres tinge-se de uma coloração trágica, “pautada por um tempo épico que prolonga a dor psicológica” (Brito, 2013, p. 3). É que frequentemente a espera desemboca em morte, em luto. Outras vezes, traduz-se em morte adiada, quando o mar não chega a devolver o cadáver do filho ou do marido. Veja-se, a este propósito, o fragmento autobiográfico de Os Pescadores no texto “Foz do Douro - A Cantareira”:

Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó Margarida esperou-o desde os vinte anos até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés até aos cabelos brancos com que foi para o túmulo. (Brandão, 1995, p. 36)

Contudo, longe da ideia de passividade que o pensar canónico reserva à espera feminina, o aguardar destas mulheres é ativo, produtivo, indissociável do trabalho como valor. Esperando, estas mulheres trabalham, sofrem e vivem mais do que os homens” (Brandão, 1995, p. 98).

Em terra, as Penélopes marinhas tecem e consertam as redes, vendem o peixe pelas cidades, cuidam das ninhadas de filhos que transportam juntamente com as canastras de peixe, fazem o luto pelo marido que um dia não volta.

A este propósito, leia-se, por exemplo, o seguinte trecho sobre as mulheres da Afurada: “Andam léguas, são infatigáveis e já as vi lançar sozinhas as redes do sável, puxá-las para a terra e dividir o quinhão” (Brandão, 1995, p. 98). A esta sobrecarga laboral não escapa também, por exemplo, a mulher de Mira:

[...] lava as redes, puxa os cabos, carrega os gigos, cozinha no lar enfumado com dois tijolos e faz a lavoura - o prazo. Em resumo, a mulher trabalha mais do que o homem- trabalha o dobro do homem. (Brandão, 1995, p. 98)

Para além do mar, outros elementos aquáticos configuram o quotidiano destas mulheres.

A fonte e, por vezes, a praia representam o espaço luminoso e jovial que preside ao desabrochar do amor inicial. Tópico literário que remonta aos cantares de amigo medievais e à tradição oral dos cantos de mulheres4, a fonte tem no texto em apreço um lugar central: “Ao escurecer na Cantareira, passam da fonte as raparigas, com o cântaro à cabeça e as mãos na cinta. É a hora do namoro. Param a conversar com os rapazes, que as esperam nos varais” (Brandão, 1995, p. 96). Já em Mira, na praia, “elas sentadas, eles deitados de bruços, atiram-se de quando em quando punhados de areia”. Da pintura das mulheres na praia, sobressaem ainda traços de voluptuosidade juvenil, que se desprendem da alegria ruidosa dos “ranchos de raparigas que andam na maré à gravalha, de perna fina, curvadas e puxando para si restos de lenha”, ou de alguma outra jovem “de pele doirada e pique de maresia” (Brandão, 1995, p. 96).

Associado à fonte, enquanto lugar geográfico e literário feminino no seguimento de uma longa tradição ancestral, encontra-s(e o espaço das lavagens comunitárias, cuja feminilidade plena de vitalidade convulsa é magistralmente captada pelo narrador no excerto seguinte:

[…] vinte, trinta mulheres de saias arregaçadas lavam a roupa suja. Gritos, rixas, alarido. Um momento de silêncio e ouve-se o bater compassado da maré que vai, vem e lhe molha as pernas nuas. (Brandão, 1995, p. 97)

As mulheres e a luz

Além dos espaços marinhos e aquáticos, a luz é o outro elemento que marca presença na paisagem geográfica que configura as mulheres dos pescadores. Elementos fulcrais da paisagem, as mulheres fundem-se nela numa intimidade telúrica, unidas pelo mar e por essa luminosidade doce da beira-mar que lhes adoça os contornos. Será o caso da luminescência da ria de Aveiro - “doirada e viva sem ser forte”, assemelhando-se a “água azul trespassada de sol”, abrindo “como um sorriso” e morrendo “quase sempre enternecida” - a imprimir peculiares traços no perfil e no carácter das mulheres:

Todas as mulheres da beira marinha são postas em destaque pela luz carinhosa que as envolve e protege. Criam-se nesta esplêndida paisagem de água e cor, ao mesmo tempo pacífica e delicada. (Brandão, 1995, p. 100)

E mais adiante, conclui:

As mulheres desenvolvem neste ambiente uma alma serena e respondem ao sorriso da luz com um sorriso de ternura. São como certas flores criadas num momento feliz, que atingem a perfeição. (Brandão, 1995, p. 100)

Imbuídas desse “lirismo telúrico” de que fala Vítor Viçoso (2000, p. 42), nesta união de luz e mar emerge a força vital destas figuras, intimamente ligadas ao ciclo de vida, morte, renascimento.

As mulheres e a noite

Na obra de Raul Brandão algumas mulheres encarnam o rosto mais violento da miséria humana. Será o caso das mulheres dos pescadores a quem “cabe sempre o pior quinhão da vida negra” (Brandão, 1995, p. 102). Mas essa dimensão de pobreza e sofrimento associada a algumas mulheres é levada ao paroxismo em Os Pobres e especificamente no texto dedicado às prostitutas e intitulado “As mulheres” (Brandão, 1906, p. 15).

Mulheres sujeitos, erguendo-se a custo do infra-humano, numa plenitude de sujeito trágico, eis como se apresentam as prostitutas de Os Pobres. Criaturas deploráveis, marcadas pela abjeção, pela abnegação, pelo aniquilamento e pela espera, serão ainda capazes de redenção, pela sua capacidade de sofrimento, amor e dádiva, e por essa via ligadas à alma universal, ao substrato profundo do ciclo vital5.

Efetivamente, o capítulo intitulado “As mulheres” traça um retrato atroz das personagens que são as prostitutas, ainda assim pleno de simpatia, atento à dignidade que irrompe do ultraje que é a sua condição sofredora. Estes seres de descalabro, roçando o inumano, são figuras miseráveis, devastadas, sob o fundo de uma paisagem citadina noturna igualmente arruinada:

Ao vir a noite põem-se as prostitutas a cantar; entre as pedras ressequidas e o ruído humano põem-se as prostitutas a cantar. São pobres, tristes, seres de descalabro e piedade, lama que o homem gera de propósito para o gozo. (Brandão, 1906, p. 15)

Despojadas, abandonadas, doentes, de “fisionomia empedrada de mágoa”, estão em simbiose com uma paisagem não natural, degradada, noturna. Lúgubres, a cidade, as ruelas, a casa e o hospital constituem o pano de fundo onde circulam tais criaturas espectrais, o espaço onde avulta “ruído humano”, “pedras ressequidas”, “lama”, “treva” “noite”, “blocos negros”, “luz enfumaçada e oleosa”.

Paradigma desse espaço é o bordel, a casa das mulheres: casa trágica de tetos negros e corredores que encobrem soluços, situada junto do frio e decrépito hospital na “rua negra onde o enxurro humano sem cessar carreia detritos, lágrimas, sonho” (Brandão, 1906, p. 51).

Em íntima fusão com o espaço decrépito, com as sombras, o canto das prostitutas, essa “toada de farrapos”, de “flocos de tristeza”, identifica-se, não obstante, com o som mais profundo que será a voz do ser heideggeriana, ou esse “rugido de energia cósmica” no sentido de Braidotti6, ou a voz da noite que chora: a “aflição da noite a soluçar”. “Às vezes somem-se as bocas e da treva rompe aquela voz de tragédia, como se a treva falasse, ao que dum canto a escuridão responde” (Brandão, 1906, p. 16).

E, tal como as mulheres dos pescadores, também as prostitutas, essas outras Penélopes lúgubres, noturnas, estão confinadas à espera: “Especadas às esquinas, criaturas esperam... parecem pedaços de noite destacados da própria noite” (Brandão, 1906, p. 16). É uma espera marcada pelo martírio e pela entrega abnegada ao destino da sua condição: “Não há nada pior do que nascer mulher”, afirma uma delas. E mais adiante no Capítulo VII, “A Primavera”, diz o narrador reportando-se à casa das mulheres:

As mulheres cantam sempre na mesma toada triste e soluçante. [...] A história é idêntica, o eterno húmus amassado em lágrimas [...]. Elas sabem que nasceram para sofrer e resignam-se: o esgoto é necessário. (Brandão, 1906, p. 49)

Mergulhadas na humilhação, as prostitutas, porém, amam e nesse amor resplandece o universal. É um amor devastador: “Um dia a gente põe-se a gostar dum homem e inda é pior” (Brandão, 1906, p. 18).

Todavia, nesse amor despojado ecoa o ideal, o sonho:

Tudo na vida se alimenta de gritos, como as raízes na terra se sustentam d’água. Enganam-nas e não se queixam. É o Fado. Não têm ódio a quem as iludiu; ao contrário, não esquecem esse fio de sonho espezinhado, que ainda sentem correr na vida, longínquo e triste, quasi a sumir-se de todo. (Brandão, 1906, p. 49)

Assim como “no mais desprezível charco se espelha o sol”, assim também estas criaturas se elevam e o seu amor ascende à condição de sentimento primordial, a força motriz e vital que une seres e coisas:

Seres de ignomínia só amam idealmente. Assim será o amor das ervas, dos sapos, das nascentes, de tudo o que na natureza é pequenino ou disforme. (Brandão, 1906, p. 50)

Voz da noite, das trevas e do caos, “feitas do mesmo sonho e da mesma pedra de que é feita a vida” (p. 19), estas figuras femininas participam ainda da natureza primordial e do seu ciclo inelutável de sombra e luz. No seu amor devastado ressoa o amor cósmico, energia vital: “Ouvi: esta seiva dolorida fará nascer um dia alguma misteriosa Árvore” (p. 50).

Natureza primeva

Ao amor devastador, mas ainda assim redentor das prostitutas, opõe-se o amor esplêndido, palpitante e feliz da mendiga do belíssimo conto “O mistério da árvore”, e à paisagem citadina degradada, noturna, opõe-se a paisagem natural, bela, luminosa, primaveril.

Lembre-se que este conto nos fala de um reino estéril e lúgubre governado por um rei sinistro, que odiava o amor, a juventude e a alegria, onde pontua uma árvore que nunca floresce, “esgalhada e seca”: a árvore da forca. A ambiência fúnebre do reino vê-se perturbada pela aparição de um jovem e feliz casal de apaixonados que vêm “enlaçados com a primavera, cobrindo a terra erma que calcavam, de vida e de amor” (Brandão, 1926, pp. 251-252).

Mesmo após o enforcamento do par, o amor dos dois jovens mendigos comunica-se e ressoa na natureza idílica e erotizada: o amor “trespassava a terra e os bichos”, sentia-se no “palpitar das fragas”, nos montes como “seios duros”, nos “espinheiros túmidos”, nas “coisas que estremeciam”, na “noite magnética cheia de murmúrios”, no vento, nos “sapos extáticos”, estendendo-se, por fim, à própria árvore da forca, que, “aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o galho em que pendiam enforcados cheinho de flor (Brandão, 1926, p. 257).

Encarnação simbólica de uma natureza primeva, a amante do conto associa-se à flor e à primavera. Enquadrada numa paisagem natural, luminosa e feliz, encarna a potência da vida, a Mãe-natureza, a terra fértil geradora de vida e o amor cósmico e universal que tudo enlaça (Corrêa, 2008, p. 38).

É de acrescentar ainda que em Brandão, o conhecimento e o espanto perante a vida, na sua pujança fulgurante, essa “torrente esplêndida” tal como a “Filosofia do Gabiru” de Os Pobres a consagra, remonta à ligação da natureza com a infância e com o universo materno, esse mundo pré-logos, pré-linguagem, onde tudo surge numa unidade indistinta (Silva, 2000, p. 67)7. Esse saber primevo é o único que conta, conforme se refere no Capítulo XIV de Os Pobres:

Só em pequeno é que eu senti correr em mim a vida. [...] Ali as árvores eram minhas amigas, as coisas conheciam-me e eu vivia duma vida convencida, forte, bravia... Vieram depois as palavras, os mestres, os amigos, e eu nunca mais achei sabor à vida... (Brandão, 1906, p. 108)

Também no Prefácio ao volume I das Memórias, o autor invoca o quintal da casa materna e o tempo da infância, enquanto reduto de sabedoria una e primordial: “O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo...” (Brandão, 1918, p. 5).

Outras formas de habitar o mundo

Sant’Anna Dionísio destacou em Brandão o traço de “um singularíssimo pensador primitivo” que procura ver as coisas “na sua fisionomia primitiva”, servindo-se da paisagem como “objecto de perscrutação transcendente” (Dionísio, 1925). Por outro lado, Dalila Pereira da Costa, em Corografia Sagrada, salienta em Brandão uma visão do mundo de “cariz telúrico-cósmico” e a configuração de um mundo arcaico de arquétipos (Costa, 1993, p. 283). Ora, na interligação entre algumas figuras femininas e a paisagem, configura-se, em parte, essa procura, esse olhar primitivo, “adâmico” (Rosa, 2013), e essa visão cósmica e telúrica. No conjunto das figuras femininas que convocámos, assoma a simpatia de Brandão por essa potência misteriosa paradoxal e fulgurante que é a vida, na sua dimensão mais arquetípica e primordial. Nessas personagens se vislumbra a atração por aquilo que, “na sua simplicidade espontânea e pregnante, exprime o esplendor enigmático da alma universal” (Viçoso, 2000, p. 42). Na sua articulação íntima com a natureza e com o ciclo vital, pressente-se a presença do mistério e o sentimento poético do sagrado.

Pensamos ter deixado claro que os textos analisados configuram uma relação concreta, afetiva e simbólica das personagens aos lugares. Na representação das mulheres ecoa uma relação simbiótica com o mar, a água, a luz, a noite, a natureza, o amor e o ciclo vital. A partir do olhar contextualizado do presente, penso estar autorizada a articular o panteísmo difuso que envolve essas personagens femininas com a atitude de recetividade e abertura a esse outro não humano de que nos fala Braidotti (2013).

Harmonizando-se com o espírito do lugar, abrindo-se a esses “outros não humanos” com quem convivem em indistinta união, aquelas figuras apelam a uma interconexão entre o humano e a natureza, avessa às dicotomias hegemónicas8. Em íntima harmonia com a paisagem, com o genius loci, com o espírito do lugar, elas representam uma forma de resistência contra a relação instrumental, predadora e dessacralizada do ser humano com a natureza e com a vida. Face à massificação, à tecnicização e ao esvaziamento dominantes na atualidade, essas figuras femininas revelam-se como um veículo privilegiado para repensar o humano e imaginar um “horizonte de esperança” (Braidotti, 2011, p. 267) aberto a outras formas possíveis de habitar o mundo e a vida.

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1“Rethinking the human ‘with’ its nonhuman others (animals, machines, objects, systems, environments, etc.)” é um dos propósitos enunciados por Rosi Braidotti em The Posthuman (Braidotti, 2013, p. 133). Na sua crítica ao humanismo, a autora sublinha que o ideal de Protágoras do homem como medida de todas as coisas, para além de promover a excecionalidade dos humanos em relação a outros seres, fabricou o mito de uma humanidade baseada numa “natureza humana” envolvendo valores universais que excluíram alguns humanos a partir de critérios de género, raça, classe, cultura, nação, etc. Aponta para novas formas de neo-humanismo que emergem dos estudos pós-coloniais, raciais, de género e do ambientalismo.

2A este propósito, atente-se na clarividente comparação que em Corografia Sagrada Dalila Pereira da Costa faz entre algumas das figuras femininas do repertório de Brandão e algumas deusas primitivas.

3Sobre as múltiplas valências da figura de Penélope, ver Fontisi-Ducroux (2009).

4Vejam-se a este propósito, por exemplo, os estudos de Pierre Bec (2010) ou de Ria Lemaire (1988).

5Dalila Pereira Costa em “Raul Brandão e a terra-Mãe” (1993, pp. 283-290) viu na narrativa Os Pobres uma “visão do mundo de cariz telúrico-cósmico”. A ensaísta considera que a obra procede à representação de um mundo arcaico e arquetípico, condensando uma visão panteísta dinâmica, integrando a natureza e o homem num todo. Na sua perspetiva, que subscrevemos, a narrativa é animada por um dinamismo exultante, de amor e vida, como corrente que abraça o universo.

6Braidotti fala em “roar of cosmic energy” citando o excerto de Middlemarch de Eliot: “If we had a keen vision and feeling of all ordinary human life, it would be like hearing the grass grow and the squirrel’s heart beat, and we should die of that roar which lies on the other side of silence” (2013, p. 86).

7O estudo de Carlos Silva intitulado “O recorte do sensível e a categoria do espanto na estética de Raul Brandão” (2000, p. 60) sustenta que Brandão antecipa Alberto Caeiro ao propor um “sentir sem alma, sensível de um cosmos arquetípico sem centro de referência”. Essa sensação antes da voz, exprimir-se-á em “línguas vagas e silenciosas” (Os Pobres, 35).

8Parece-nos que esta visão panteísta de Brandão diverge da atitude própria do pensar hegemónico, tal como Cixous a enquadrou em Le Rire de la Méduse, ao estabelecer uma relação dicotómica e hierarquizada entre os pares cultura/natureza, homem/mulher, onde os polos mulher/natureza surgem associados numa posição de inferioridade.

Recebido: 13 de Janeiro de 2021; Aceito: 04 de Maio de 2021

Anabela Galhardo Couto. Professora Associada convidada, Universidade Aberta, Curso de Mestrado em Estudos sobre as Mulheres - Género, Cidadania e Desenvolvimento. Investigadora da Universidade Aberta - CEMRI - Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais. Colaboradora da Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM - Centro de Humanidades, Lisboa, Portugal. Email: anabgcouto@gmail.com

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