SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número45Mulher, o poder da sua voz como contestação ao poder estabelecido: Uma Leitura de O Meu Amante de Domingo (2020) de Alexandra Lucas CoelhoA determinação que faz acontecer índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Nov-2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/grzw-w0dh 

Estado da Questão

Instituto Patrícia Galvão: Duas décadas de ações de comunicação em defesa dos direitos das mulheres brasileiras

Marisa Sanematsui 

1i Instituto e Agência Patrícia Galvão, Brasil


"Chegou a hora de o feminismo encarar a mídia como espaço privilegiado de sua ação política."

Com essa frase na capa de seu folheto de apresentação, o Instituto Patrícia Galvão anunciava em 2001 a criação da primeira organização feminista brasileira focada na defesa dos direitos das mulheres por meio de ações na mídia. Uma iniciativa de cerca de 30 comunicadoras feministas que atuavam em diversas regiões do país e perceberam que os movimentos de mulheres no Brasil precisavam ampliar sua visão sobre o poder da comunicação e mudar suas estratégias. Era preciso ir além de um uso técnico e instrumental da mídia para divulgação de ações locais, passando a entendê-la como uma ferramenta política estratégica para a amplificação e qualificação do debate público sobre as demandas e direitos das brasileiras em áreas diversas, como discriminação e desigualdade em sua participação na política e no mercado de trabalho, violência doméstica e acesso a direitos sexuais e reprodutivos.

O nome do Instituto é uma homenagem à jornalista, escritora e ativista política e cultural Patrícia Rehder Galvão, a Pagu (1910-1962), pioneira e visionária brasileira que defendia que as mulheres deveriam ter um papel mais ativo na esfera pública.

Nestes vinte anos de atuação, são inúmeras as atividades exitosas de incidência no debate público sobre os temas da agenda de direitos das mulheres. A seguir, em uma viagem no tempo, algumas frentes de ação do Instituto Patrícia Galvão1.

Como tudo começou

Em 1997, um grupo de mulheres comunicadoras promoveu na cidade de São Paulo o Seminário Mulher e Mídia: Uma pauta desigual?, um encontro inédito entre jornalistas e feministas para debater a relevância da pauta mulher na agenda da imprensa e a relação das organizações de mulheres com a mídia. “Os movimentos de mulheres precisam se apresentar na mídia com cacife, e não através de folhetos inúteis”; “a gente tem cada vez menos tempo de ler qualquer coisa”; “não dá mais para ter espaço de mulheres na mídia só no dia 8 de março”; “é preciso educar o movimento para falar com a mídia”.

“Uma relação entre iguais, baseada em uma moeda de troca que é a informação”

Desse encontro saiu uma lista com 21 recomendações que tinham como pano de fundo a máxima: “Tenha sempre em mente que a relação é de troca. Os movimentos de mulheres querem colocar suas informações e opiniões. A mídia quer notícia atraente. Os temas tratados pelos movimentos de mulheres têm, em geral, um forte conteúdo polêmico e de conflito, que é sempre atraente para a mídia. Tire proveito, chame a atenção para isso”.

A semente havia sido plantada. Nos anos seguintes algumas das feministas presentes levaram adiante essa discussão e trabalharam para envolver outras ativistas, em especial comunicadoras de outras regiões do Brasil. Com apoio da Fundação Ford, foi possível realizar em 2001 um encontro presencial em São Paulo, em que durante dois dias mais de 20 comunicadoras debateram a relevância e a pertinência de se criar uma organização feminista com foco em ações de advocacy na mídia. As participantes foram unânimes em aplaudir e aderir à iniciativa.

No primeiro dia do encontro ouviram-se vários relatos sobre a insensibilidade dos jornalistas para os chamados “temas femininos” e também sobre a falta de visão estratégica do papel da comunicação dentro das organizações de mulheres. Quando procurados, a resposta dos jornalistas era: “Desculpe, mas o editor não vai deixar sair, isso não é uma notícia quente e não tem interesse para o nosso público”. Mas as comunicadoras lembravam que, quando esses mesmos profissionais tinham uma pauta sobre violência sexual, por exemplo, e precisavam de uma “personagem”, uma mulher que houvesse sido vítima e se dispusesse a fazer o relato da violência, sempre recorriam a elas, que se sentiam usadas e nunca parceiras nessa relação.

No segundo dia, foi debatida a missão e definidos os objetivos da nova organização, suas estratégias, dinâmica de funcionamento e fontes de recursos. Assim nasceu o Instituto Patrícia Galvão, com a missão de contribuir para a qualificação do debate público sobre questões críticas para as mulheres brasileiras e com o objetivo de demandar respostas do Estado e mudanças na sociedade e na própria mídia. Desde então, o Instituto tem produzido pesquisas de opinião, campanhas educativas e dossiês temáticos para subsidiar o trabalho de jornalistas, pesquisadores, ativistas e especialistas de diversas áreas, com o objetivo de alimentar o debate público e sensibilizar os formadores de opinião e a sociedade em geral.

Produzindo dados e indicando fontes como “moeda de troca”

Ainda sem sede, o Instituto Patrícia Galvão iniciou suas atividades com oficinas de media training para mulheres líderes, profissionais e especialistas de todo o país, e com pesquisas de opinião sobre a feminização da epidemia de HIV/AIDS e a violência contra as mulheres. A proposta era oferecer à imprensa dados inéditos sobre a percepção da sociedade acerca desses temas e, ao mesmo tempo, capacitar porta-vozes como fontes habilitadas para contextualizar os dados e analisar o problema a partir de uma perspectiva de gênero.

Pioneiro no Brasil na realização de pesquisas de opinião sobre violência baseada no gênero, o Instituto Patrícia Galvão orgulha-se de ter contribuído com dados para o debate e a sensibilização de parlamentares, gestores e especialistas sobre a necessidade e urgência de se criar um marco legal para proteger as mulheres da violência doméstica. Em 2004, 50% dos brasileiros já apontavam que a violência doméstica era o problema que mais preocupava as mulheres, à frente do câncer de mama/útero (39%) e HIV/AIDS (26%). Em 2006, 51% dos entrevistados declararam conhecer ao menos uma mulher que era ou havia sido agredida pelo companheiro; três em cada quatro consideravam que as penas aplicadas nos casos de violência contra a mulher eram irrelevantes e que a justiça tratava o assunto como pouco importante.

Depois dessas vieram mais duas dezenas de pesquisas que captaram a opinião da população brasileira sobre a participação das mulheres na política, a sobrecarga e tensão entre trabalho remunerado e trabalho doméstico, a demanda das mulheres por creches, a representação das mulheres na propaganda, o conhecimento e os medos das grávidas em face das epidemias de zika e da covid-19, a violência e o assédio no trabalho e nos transportes e o direito ao aborto.

Ao mesmo tempo, o Instituto Patrícia Galvão já realizou oficinas de media training por todo o Brasil, com profissionais de saúde e justiça e ativistas que lidam com temas complexos e que muitas vezes geram polêmicas, como os direitos sexuais e reprodutivos, o racismo, a violência contra as mulheres, a homofobia e outros.

Essa estratégia conjugada de oferecer dados inéditos e fontes credenciadas para o debate público foi bem-sucedida e continua a ser adotada até hoje, em uma demonstração de que o movimento feminista pode produzir ativos preciosos para essa relação de troca e parceria com a mídia.

Pensando grande para falar sobre violência doméstica na TV

Em 2004 o Instituto produziu sua primeira campanha sobre violência doméstica, que inovou ao ser pensada e produzida nos moldes de uma campanha publicitária de grande porte. Em outras palavras, o Instituto recorreu a profissionais da publicidade, realizou grupos de discussão e pré-testes e pós-testes das peças de comunicação com homens, agressores e não-agressores, produziu os spots em parceria com a O2 Filmes, uma grande produtora de filmes publicitários, e em diálogo com a TV Globo conseguiu que os dois vídeos de 30 segundos (Bar e Futebol) fossem veiculados gratuitamente em todo o país. Com o sucesso dessa ação, nos dois anos seguintes foram produzidas mais duas séries de vídeos: em 2005 a mensagem foi dirigida às mulheres, na campanha Chega de esconder, e em 2006 voltamos a falar com os homens, desta vez mostrando o impacto da violência doméstica sobre toda a família, em especial os filhos que a presenciam.

Hoje o Instituto prioriza a realização de campanhas nas redes sociais. O exemplo mais recente foi a campanha Armadas de informação, em parceria com diversas organizações e coletivos de mulheres, que se contrapõe à iniciativa do atual governo de liberar a posse de armas, chamando a atenção para o risco de aumento dos casos de feminicídio.

Monitorando a pauta das mulheres na imprensa

Para incidir no debate público, é fundamental acompanhar e compreender a dinâmica e as narrativas da cobertura da imprensa sobre as violações e os direitos das mulheres. Desde sua criação, o Instituto Patrícia Galvão monitora e analisa a cobertura jornalística sobre a agenda dos direitos das mulheres, com destaque para a violência baseada no gênero, a participação feminina na política e os direitos sexuais e reprodutivos. Em 2011 o Instituto produziu o relatório Imprensa e Agenda de Direitos das Mulheres: uma análise das tendências da cobertura jornalística, resultado de um amplo projeto coletivo de monitoramento e análise sobre política, violência e trabalho. E, em 2019, divulgou o relatório Imprensa e Direitos das Mulheres: papel social e desafios da cobertura sobre feminicídio e violência sexual.

Uma visão interseccional de gênero, raça/etnia e orientação sexual

Em 2003 o Instituto realizou seu primeiro media training com mulheres negras para capacitar ativistas como fontes para a imprensa no debate que se travava no Brasil pela implantação de ações afirmativas, entre as quais a garantia de cotas para negros nas universidades públicas era um dos pontos mais polêmicos.

Desde o início, o Instituto assumiu em suas ações uma perspectiva interseccional, priorizando a luta antirracista e a garantia dos direitos da população LGBTI, questões fundamentais em um país onde impera uma ideologia patriarcal que, além de misógina, é racista e homofóbica.

Agência Patrícia Galvão para atender antiga demanda estratégica

Ainda em 2004, o Instituto promoveu uma reunião sobre comunicação e violência contra mulheres, que reuniu durante dois dias ativistas, pesquisadoras e especialistas de todo o Brasil para definir prioridades comuns e desenhar uma estratégia de comunicação política, para atuação junto à mídia, ao Estado e à sociedade em geral. Como prioridades foram apontadas a criação de um observatório de mídia e de uma agência de notícias sobre direitos das mulheres.

Mas nem todas as prioridades se concretizam com a urgência necessária. Assim, passaram-se cinco anos até o lançamento da Agência Patrícia Galvão, que tem a ambição de ser uma referência nacional como agência de notícias e produtora de conteúdos multimídia sobre os direitos das mulheres e atuar com informações que contribuam para incidir sobre a abordagem e a narrativa do noticiário sobre problemas, propostas e prioridades que atingem 51% da população do país, as mulheres.

Uma andorinha só não faz verão

Ao encerrar este artigo no contexto de isolamento social imposto pela pandemia da covid-19, aproveito para prestar as homenagens do Instituto Patrícia Galvão a toda a nossa rede de parcerias - pessoais e institucionais - que tornaram possível o início e continuidade da organização, que segue atuando como mediadora para que os saberes e experiências de todas essas ativistas, especialistas, pesquisadoras, operadoras de justiça e pensadoras atinjam um público mais amplo, a ser informado, sensibilizado e educado para que sejamos um dia uma sociedade mais justa e igualitária.

1Todos os produtos e conteúdos mencionados neste artigo podem ser acessados em https://agenciapatriciagalvao.org.br/memoria-de-acoes-e-projetos/.

Marisa Sanematsu. Jornalista, diretora e editora, Instituto e Agência Patrícia Galvão. Email: marisa@patriciagalvao.org.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons