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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Nov-2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/xpfo-hspj 

Diálogos

A determinação que faz acontecer


Sabendo que a capa da presente edição da revista Faces de Eva é dedicada à Professora Odette Ferreira, o presente diálogo pretende ser um reconhecimento à sua pessoa e obra, e também um tributo a todas/os que se sentem ameaçados/as e/ou excluídos/as.

Ana - Fui tua professora há quase 30 anos. Recordo-te “diferente” dos outros alunos. Com pouca paciência para o que ali acontecia, mas seduzido pelo que intuías nas entrelinhas do meu ser. Seria porque percebias em mim o respeito pela diferença? A condescendência com que convivia com os teus atrasos sistemáticos, compensados pela oportunidade e agudeza das tuas intervenções que se destacavam claramente das do resto da turma? O amor aos teus alunos, “os garotos”, a crença de que os podias transformar, estimulando-os intelectual e culturalmente, faziam de ti um ser que apetecia conhecer melhor. Assim começou a nossa amizade...

E havia o brinco... ainda não era muito comum. E tu transportava-lo com orgulho, cabeça erguida, no cimo do teu quase metro e noventa e sempre sorridente. Estavas bem contigo, eras uma lufada de ar fresco. Vivias bem, gostavas de casas e de carros e matavas-te a trabalhar para os conseguires.

Bernardo - Lembro-me muito bem… e lembro-me de estares a convencer os formandos a avançarem com temas para o trabalho a realizar para a disciplina, lançando ideias gerais na esperança de os encorajar a defini-lo rapidamente, tentando afastar as suas preocupações e ansiedades. E, no final da aula, eu desci todo aquele auditório para ir ter contigo, decidido sobre o tema que queria desenvolver (“A afectividade na relação aluno/professor e os seus efeitos no par sucesso/insucesso na aprendizagem ‒ A boa relação afectiva aluno/professor como veículo do sucesso na aprendizagem”) e tu, depois de concordares, viraste-te para mim e perguntaste - “Está a ver como não há razão para estar ansioso?”, ao que eu respondi, divertido, “Acha que eu tenho cara de estar ansioso?”. E tu riste-te e concordaste que, definitivamente, não tinha!

Nessa altura ainda nos tratávamos por você, pois a nossa relação era meramente formal, mas já de grande empatia.

Ana - Terminada a relação académica, mantivemos uma relação de forte amizade. Encontrávamo-nos amiúde. Tinhas uma namorada, nunca ma apresentaste, mas contavas tantas coisas da vossa relação que eu até tinha alguma inveja dessa pessoa com quem partilhavas o sorriso e a felicidade. Até que um dia me convidaste para jantar e eu fiquei a perceber que tudo estava certo, só o género mudava...

Bernardo - É verdade. Nesse jantar contei-te tudo, sem segredos nem reservas.

Sou homossexual porque nasci assim e não por opção. Quando nasci, ninguém me pôs um “cardápio” à escolha para eu decidir se me atrairiam homens ou mulheres. Não foi uma escolha e nunca foi uma opção. Não me envergonho de ser quem sou e isso também moldou a minha personalidade, fazendo-me mais forte para me defender da adversidade e do preconceito imenso que a sociedade tinha contra os homossexuais.

Nasci homossexual… como nasci alourado e como há quem nasça com olhos azuis ou cabelo encaracolado. Não, vergonha não faz parte do meu vocabulário. Sou demasiado orgulhoso para me envergonhar de quem sou.

Nesse jantar começámos a tratar-nos por tu, lembras-te?

Ana - Não apenas me lembro, como esse jantar ficou gravado no meu ser como um momento transformador. Tudo o que eu intuía, mas não sabia... a abertura a um mundo que desconhecia, o privilégio de teres confiado em mim...

Bernardo - Não sou pessoa para vidas de fachada. Estando nós a construir uma relação de amizade sólida e duradoura, não faria sentido que essa relação não se alicerçasse num conhecimento real da pessoa que eu era! Não tinha nada a esconder! Nem a minha sexualidade nem a minha situação clínica, dois factos que moldaram a minha pessoa.

Ana - Recordo-te autoconfiante e determinado em seguir o rumo que tu próprio definirias. Era impossível percepcionar que aquela força e alegria de viver escondiam o espectro de uma morte precoce...

Bernardo - De facto, sempre convivi muito bem comigo próprio - nunca me queixei da vida e do que ela me trouxe. Aliás, sempre me considerei um felizardo - a vida sempre me tratou bem e encarregou-se de me dar as forças, a determinação e a oportunidade de lutar por tudo o que sonhei… e de tudo conquistar. O fantasma da morte existia, mas eu estava vivo! Nunca deixaria que me dominasse.

Sempre achei que, por muitos anos que vivesse, não conseguiria realizar todos os meus sonhos. Sabendo que morreria cedo, tive a urgência de viver ainda mais intensamente e tentar concretizar o maior número possível de sonhos no curto tempo que teria.

Fui feliz numa vida partilhada com o meu companheiro, sentindo-me bem comigo próprio e na minha pele; era aceite pela pessoa que estava comigo, com quem vivi 18 anos de aventuras fantásticas e me ensinou muito do que hoje sou. Nem tudo foi bom, em particular nos últimos anos, mas a verdade é que lhe devo muito.

Foi com ele que descobri que estava infectado com o HIV, num longínquo dia de 1989, e foi ele quem me apoiou e permaneceu sempre ao meu lado, para o que desse e viesse, numa altura em que esta infecção era uma “sentença de morte”.

Sabíamos que eu iria morrer cedo e que, muito provavelmente, não chegaria ao ano 2000, como muitos dos doentes dele, que morriam todos os dias nas camas do hospital em que trabalhava. Ele andava deprimido pela impotência de salvar as vidas que tinha jurado salvar, assistindo, todos os dias, à morte que um dia me levaria…

Todavia, e por motivos não totalmente explicados pela ciência, o HIV não ataca todos os organismos da mesma forma e a minha relação com o vírus não foi má.

Eu tinha jurado nunca tomar medicamentos, pois isso significaria ir ao hospital e “dar a cara”, assumir: “eu tenho HIV, logo sou homossexual”. Para mim era claro que nunca seria um cadáver adiado numa cama do hospital, como o eram aqueles moribundos que o meu companheiro não conseguia salvar.

E vivi oito anos e meio com o HIV sem tomar qualquer medicação, por decisão minha, que o meu companheiro, médico infecciologista, sempre respeitou. Uma boa parte das pessoas que se haviam infectado na mesma altura já havia morrido… e eu por aqui continuava, sem efeitos visíveis da infecção.

E, sabendo que a minha vida era a prazo, decidi viver ainda com mais força e ímpeto do que até então. Poderia morrer com o HIV, mas não seria derrotado pelo HIV!

Cheguei a escrever um soneto sobre isso.

Estigma Foi-me lida uma sentença de morte, neste corpo vil alojou-se o mal, que o rói, por dentro, sem que dê por tal, e ainda tarda a cura para esta sorte! Antevejo o dia, a hora do corte com a vida, o meu cordão umbilical! “Por premeditada ingestão fatal”, escreverão na certidão de morte! E este mal infame é um estigma social, sou seropositivo… mas sou gente! Não serei nunca, em fase terminal… … um cadáver adiado num hospital, mero farrapo de gente impotente, à espera da libertação final!! 31/12/1997

Já as minhas defesas estavam particularmente baixas (os CD-4), em 1998, quando o meu companheiro me convenceu a começar a medicação que faz com que, hoje, eu esteja vivo e me congratule pela vida soberba que tenho!

E cheguei ao ano 2000! E hei-de conhecer os meus netos!

Ana - A infecção, afinal, não estava confinada a grupos estigmatizados e restritos... Achas que essa constatação ajudou a desocultar a homossexualidade, a torná-la mais integrada no tecido social...?

Bernardo - Não acho. Quando a infecção do HIV apareceu, chamavam-lhe o “cancro dos homossexuais”, o “castigo divino para os pervertidos” e outros tantos epítetos mais vernaculares…

Acontece que, numa altura em que algumas figuras públicas, a pouco e pouco, vinham assumindo publicamente a sua homossexualidade (no que se chama “sair do armário”), a estigmatização do HIV como uma doença exclusiva dos homossexuais levou a que esse movimento regredisse bastante - ninguém queria estar associado a esta doença por infecção, porque ganhava logo dois rótulos.

Nesse sentido, a morte de alguns artistas com sida (a doença originada pelo HIV), como Rock Hudson e Freddie Mercury, entre outros, no final dos anos 80 e início dos anos 90, veio estigmatizar ainda mais a doença e os homossexuais com comentários do tipo: “Estás a ver? Ele também era [homossexual]! Teve o que merecia!”, sempre com um tom depreciativo e censório.

E a verdade é que a mudança de mentalidades, que se opera muito lentamente, só se concretiza com agentes exteriores capazes de mobilizar opiniões, discussões e conversas.

Com a generalização da epidemia a outros grupos, a estigmatização dos anos 90 alterou-se substancialmente e veio favorecer a situação da comunidade LGBT.

Nesse sentido, a progressiva assunção pública da sua homossexualidade e dos(as) respectivos(as) companheiros(as) por algumas personalidades conhecidas por milhões de pessoas (Sam Smith, Elton John, George Michael, Ricky Martin, Jodie Foster, Pablo Alborán, Adam Lambert, entre outros) tem feito com que a sociedade, paulatinamente (mas mais célere do que alguma vez imaginei), encare a homossexualidade e os casais homoafectivos de uma forma bastante mais natural do que há algumas décadas.

O valor das pessoas depende do que são e do que fazem e não do género da pessoa com quem partilham a vida, os sonhos e a cama.

Pode ver-se isso mesmo nas novelas (portuguesas e brasileiras, pelo menos), nas quais existe sempre algum personagem que é homossexual e que encontra o seu par (necessário ao happy ending de uma novela), à semelhança dos casais heterossexuais dessa mesma novela, e também nos concursos promovendo a existência de concorrentes homossexuais; ambos contribuíram para uma maior visibilidade da comunidade LGBT e, naturalmente, para uma evolução das mentalidades na sua aceitação e na integração no tecido social.

Basta pensar que foi a Constituição de 1975 (há menos de 50 anos) que consagrou, pela primeira vez, a não discriminação dos cidadãos pela orientação sexual como um direito inalienável.

Todavia, a legislação penal continuou a fazer referência à “ilegalidade” dos actos homossexuais (por oposição aos actos heterossexuais), em particular praticados por maiores com menores entre os 14 e os 16 anos, tendo sido abolida essa distinção só em 2007 (há 14 anos apenas!). Até lá, não era um problema de pedofilia apenas ‒ era um problema acrescido de homossexualidade.

Sim, a sociedade está bastante diferente do que era há 30 anos. E ainda bem! Tenho a certeza de que os meus filhos crescerão num mundo melhor do que aquele em que os seus pais cresceram e que, caso venham a ser homossexuais, não terão de viver os medos, os receios, as angústias e a permanente dissimulação do seu eu perante os outros, que os pais viveram e sentiram na pele.

Ana - Depois da relação com o companheiro de 18 anos, refizeste a tua vida e hoje és casado e tens dois filhos maravilhosos. Falaste-me várias vezes na possibilidade de adoptar uma criança. Nos últimos anos, o nosso contacto foi mais esporádico, e mais uma vez me surpreendeste, quando, através de uma videochamada Whatsapp, me apresentaste o teu filho “do coração” e depois, um a seguir ao outro, os dois bebés. E também o teu marido, que sabia que existia, mas ainda não conhecia. A decisão dos filhos biológicos, a luta que encetaste e que, mais uma vez, concretizaste, a vida a quatro, todos homens, o orgulho por se estarem a sair tão bem, dependendo apenas de vocês, os vídeos que me vais enviando e que me permitem acompanhar o desenvolvimento harmonioso dos teus filhos...

Bernardo - É verdade. Refiz a minha vida várias vezes até ter conhecido a pessoa espantosa que hoje é o meu marido e o “papá” dos meus filhos (eu sou o “pai”).

Se te disser que foi “amor à primeira vista”, não estarei longe da verdade. Por acaso, num acontecimento mundano em que um amigo comum mo apresentou (o meu primeiro pensamento foi - “que homem mais bonito!”), e após algumas trocas de palavras, tentei conseguir o número de telefone dele, no sentido de descobrir melhor a pessoa por baixo daquela “capa” lindíssima. Levei uma “tampa”… mas ainda assim não desisti (sou lá pessoa de desistir…); através das redes sociais, descobri-o e o resultado foi que, em poucos meses, já partilhávamos a casa, a vida e os sonhos…

E o sonho da parentalidade, comum aos dois, apareceu através do contacto que ele foi tendo com o meu filho do coração, adoptado por um companheiro anterior, na altura em que estávamos juntos.

E quando começámos a falar seriamente sobre termos filhos, estávamos juntos há apenas quatro meses. E já partilhávamos tantos sonhos!

Falámos sobre a situação e a sua efectiva possibilidade, avaliando as diferentes hipóteses - adopção ou barriga de aluguer. As diferenças eram imensas.

No que respeita à adopção, a favor era o facto de ser muito mais barato. Contra, o problema do tempo. A adopção requer um processo longo, que se pode estender por anos a fio, sem resultado algum (poderíamos ser declarados incapazes para a adopção). Nós temos 15 anos de diferença - na altura eu tinha 55 e ele 40. Os anos até conseguirmos adoptar uma criança poderiam fazer com que eu fosse pai muito para lá dos 60. Atendendo à diferença máxima legal de idades entre adoptado e a média de idade dos adoptantes, só conseguiríamos adoptar uma criança com mais de 10 anos nessa altura.

Outro contra na adopção era o facto de ser uma terceira pessoa a decidir se éramos capazes de cuidar, educar e dar amor a uma criança. E, sobre isso, havia um outro problema ‒ o estigma da homossexualidade e, ainda, do HIV. Ou seja, a maior decisão das nossas vidas iria ficar ao sabor do poder decisório de uma terceira pessoa que, mesmo que nos conhecesse, poderia sobrepor os seus valores ao que deveria ser o supremo interesse da criança. E, na realidade, pelo que conheço dos processos de adopção, os assistentes sociais preferem manter as crianças em instituições a entregá-las a pais “não perfeitos”. E quem é que pode dizer se nós, no futuro, seremos pais perfeitos ou não? Sou homossexual e sou HIV positivo, mas isso não me torna incapaz de criar e amar uma criança. Além do mais, somos cidadãos portugueses e a Constituição portuguesa consagra o direito à constituição de uma família a todos os cidadãos, independentemente do sexo, raça, credo, cor ou orientação sexual.

Definitivamente, a adopção deixou de ser uma hipótese. Não permito que seja um estranho a tomar decisões sobre a minha vida (e decisões deste calibre) e, além do mais, o sonho da parentalidade não poderia demorar, sob pena de, ao invés de pai, eu vir a ser o avô dos meus filhos.

A outra opção era a barriga de aluguer (ou gestação de substituição), que é uma prática criminalizada em Portugal. De facto, apesar de ter havido legislação sobre gestação de substituição que vigorou por breves meses no nosso país, a lei era claramente inconstitucional, por ser profundamente discriminatória ‒ podiam recorrer à gestação de substituição (não remunerada) mulheres solteiras, casais heterossexuais e casais de lésbicas, ficando de fora os homens solteiros e os casais de homens homossexuais. E ainda assim, não foi por esse motivo que o Tribunal Constitucional a “chumbou”.

A falta de respostas em Portugal levou-nos a procurar respostas no estrangeiro. A favor desta opção era o tempo, que, até à concretização do sonho, era muito menor. Contra, eram a questão financeira, a questão linguística e a questão da distância.

A questão financeira, achámos que conseguiríamos ultrapassar. Acredito na minha capacidade de trabalho e sempre fui capaz de arranjar dinheiro para os objectivos que defini. A questão linguística e a questão da distância seriam obstáculos menores, quando comparados com os da adopção.

Mandámos os primeiros mails em Janeiro, sendo que os nossos filhos nasceram dois anos depois, em Junho.

Optámos pelos EUA porque, na altura, só este país e o Canadá emitiam certidões de nascimento com dois pais do mesmo sexo. O problema do Canadá era que a barriga de aluguer não era remunerada e, por isso, poderíamos estar anos à espera… e não tínhamos tempo.

Depois da selecção da agência que tratou do processo todo, da escolha da clínica de fertilização in vitro e do médico (tudo à distância e em inglês), depois da selecção da dadora dos óvulos (anónima e escolhida por catálogo, com muitas vicissitudes pelo meio), depois de uma viagem aos EUA para deixar o esperma numa instituição de investigação biomédica que ajuda pessoas HIV+ a terem filhos saudáveis, depois da escolha da gestante (também por catálogo), depois da criação dos embriões… ficámos com seis embriões, quatro meus (três rapazes e uma rapariga) e dois (rapazes) do meu marido.

Decidimos avançar com uma gravidez gemelar, implantando dois embriões do mesmo sexo ‒ um meu e o outro do meu marido.

Tivemos a felicidade de ambos terem vingado e temos dois filhos lindos, gémeos que, geneticamente, são meios-irmãos.

E entretanto veio uma pandemia… e a proibição de viajar para os EUA quando se aproximava o nascimento dos nossos filhos… E tudo isso superámos - para lá fomos como uma família de dois e regressámos um mês depois, como uma família de quatro!

E vivemos esta alegria inexcedível, vencidos todos os obstáculos e ignorando completamente a ligação biológica deles connosco - e nem queremos saber: não temos um filho, temos dois, apesar de só um ser biológico. Mas isso não interessa nada!

E divertimo-nos com as tentativas dos familiares e amigos de tentarem adivinhar o laço biológico, sem qualquer parecença evidente ‒ uns dizem uma coisa e outros dizem o oposto. E era isso o que queríamos!

Ana - Bom, eu posso testemunhar como estão serenos, bem tratados e são lindos esses bebés. Mais uma vez, me permites o privilégio de os ver crescer, ainda que, por enquanto, só em fotos e vídeos.

Mas sei que tu e o teu marido passaram por um processo meio kafkiano para os trazerem para Portugal...

Bernardo - É verdade. Tudo foi complicado, muito por causa da pandemia, mas não só!

Primeiro foi a ida para lá, pois precisávamos de uma autorização governamental para viajar para os EUA e essa autorização carecia de um documento passado pelo tribunal de Los Angeles… que estava fechado por causa da pandemia. E só conseguimos essa autorização uma semana antes de eles nascerem (nasceram prematuros), tendo voado para os EUA no dia seguinte ao nascimento.

Fomos para Nova Iorque, que parecia uma cidade num pós-guerra qualquer ‒ ruas vazias, quase sem tráfico e sem gente, lojas fechadas, vazias, esventradas ou entaipadas. E as poucas pessoas, encolhidas, a medo, como que a rastejarem pelos cantos.

Depois, foi a questão do regresso. Quando os bebés saíram do hospital, contactei várias entidades locais que emitiam passaportes americanos em 24 horas (de acordo com a lei americana, os nossos filhos são americanos, porque nasceram nos EUA), para obter a documentação necessária para a viagem. Nada feito ‒ por causa da pandemia, a estimativa para obter passaportes americanos era de vários meses e nós tínhamos de regressar. Eu estava de licença de parentalidade, mas o meu marido estava de férias! Tinha de regressar ao trabalho e não tínhamos estrutura financeira para vivermos vários meses nos EUA.

Virei-me para o consulado português e tive de me confrontar com as vicissitudes da lei portuguesa. Para as crianças terem passaporte português tinham de ser registadas como portuguesas por filiação, uma vez que os pais são portugueses. Mas o problema é que não havia mãe… e a lei portuguesa exige uma mãe e um pai.

Para a legislação portuguesa, a parturiente é a mãe, mesmo que o pai seja incógnito. Assim, em Portugal, os bebés teriam de ser registados como filhos de um de nós apenas, sendo que o outro teria de abrir um processo de co-adopção… para adoptar os seus próprios filhos!

E, nesse caso, teríamos duas hipóteses ‒ registar a gestante como “mãe” ou insistir tratar-se de uma mãe incógnita.

No primeiro caso, sendo a gestante a “mãe”, o processo de co-adopção só avançaria com o consentimento dela e, entretanto, tudo o que decidíssemos fazer com as crianças (nomeadamente viajar) careceria de uma autorização escrita dela. Assim, findo o laço contratual da gestação de substituição, ficávamos totalmente dependentes dela para muitas situações da vida prática, até que a lenta burocracia do Estado português resolvesse a questão (em quantos anos?).

No segundo caso, o Ministério Público abriria um processo para a identificação da mãe das crianças (como se tal fosse possível) e, no entretanto, avançaríamos com o processo de co-adopção.

Mas as duas opções criavam o mesmo dilema ‒ caso o “pai registado” falecesse antes de concluído o processo de co-adopção, o que aconteceria às crianças? Na primeira situação seriam enviadas para a “pretensa mãe” nos EUA? E no segundo caso? Seriam entregues a uma instituição, por serem “órfãs”? É que, apesar de terem outro pai, para a lei portuguesa, esse pai não seria ninguém… até adoptar as crianças!

Fora de questão ‒ somos os dois pais, e nenhum de nós iria abdicar do seu direito, deixando os nossos filhos à mercê da tacanhez do Estado português!

Mas a verdade é que, sem a nacionalidade portuguesa, eles não tinham passaporte português para viajar, ou seja, nem passaporte português, nem passaporte americano.

Aí, tive de “bater o pé” junto do consulado português e exigir sermos repatriados para o nosso país, sendo que, de forma nenhuma deixaríamos os nossos filhos menores nos EUA. Assim, o cônsul assinou um “certificado de viagem provisório” para cada um dos nossos filhos e foi com esse documento (com a validade de cinco dias) que conseguimos regressar a Portugal. E sim, os nossos filhos vieram apátridas ‒ ainda não eram americanos, pois ainda não tinham adquirido a nacionalidade americana oficialmente (o que só aconteceu já em Portugal, na Embaixada dos EUA, um mês depois) e não eram portugueses (e continuam sem o ser).

Neste momento, eles são americanos residentes em Portugal e, daqui a cinco anos, poderão adquirir a nacionalidade portuguesa por residência e não por filiação. Mas, nessa altura, nós os dois já seremos os pais dos nossos filhos perante a lei portuguesa, sem qualquer processo imbecil de co-adopção!

Ana - Em muitas ocasiões, o teu percurso foi certamente doloroso, mas nunca te deixaste vencer ou perdeste o rumo. Partilhá-lo pode ser inspirador...

Bernardo - Sou um homem feliz, orgulhoso e realizado a todos os níveis. Sou HIV+ há mais de 30 anos, mas tenho tido uma vida muito boa. Tenho poucos mas grandes amigos (como tu), tenho uma família linda, sou pai de dois filhos saudáveis e não vou morrer cedo ‒ faço tenções de conhecer os meus netos.

Ser HIV+, neste momento, é um pormenor na minha vida (sou um doente crónico, com uma esperança de vida provavelmente superior à dos diabéticos), graças a pessoas como a Professora Odette Ferreira, cujo esforço, dedicação, pesquisa e trabalho contribuíram para os avanços na medicina que me permitiram viver esta aventura fantástica… e outras que virão!

Eu e o meu marido ainda não pusemos a adopção completamente de parte, tendo, no horizonte, a adopção de um menino de cor ou seropositivo.

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