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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa June 2021  Epub Nov 30, 2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/ylvg-szst 

Entrevista

Maria José Rosado Costa

Rita Mirai 

1i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Lisboa, Portugal.


O mar vive no pensamento e na vida de Maria José Rosado Costa desde a sua infância. Nasceu em Almada e, todos os anos, passava férias na praia, na Costa da Caparica, onde aprendeu a nadar e onde viu crescer a sua paixão pelo mar.

No seu percurso académico, optou pelo Curso de Biologia, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), realizando um estágio, no último ano, em Biologia Marinha. Nesta altura, foi convidada para monitora, e seguidamente para assistente no Departamento de Biologia Animal. Após a realização do Doutoramento, na Universidade de Paris VI, continuou o seu percurso profissional na FCUL como professora auxiliar, associada e catedrática.

Ao longo da sua carreira profissional exímia, desempenhou diversificados cargos e funções, desde o ensino e a investigação até à direcção, presidência e vice-presidência de vários organismos - o Instituto Nacional de Investigação das Pescas, o Centro de Oceanografia, a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, entre outros. Foi, igualmente, membro do Conselho Científico das Ciências do Mar e do Ambiente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Actualmente, é investigadora do MARE - Centro de Ciências do Mar e do Ambiente. É co-fundadora e assume a presidência, desde 2018, da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas - AMONET.

Apesar dos seus múltiplos interesses, o mar permanece como um horizonte muito especial na sua vida.

A partir de que momento é que a Biologia Marinha começou a fazer parte da sua vida?

A Biologia Marinha começou a fazer parte da minha vida ainda na Faculdade (FCUL). Sempre adorei o mar e, no início dos anos 70, as licenciaturas tinham a duração de cinco anos, com a necessidade de realização e defesa de uma tese, nos dois últimos anos. A minha tese centrou-se nos povoamentos de uma alga em Sesimbra, tendo identificado os animais, a maioria invertebrados, que aí se encontravam.

Quais as raízes mais profundas da sua paixão pelo mar e pelos peixes? Que influências e/ou vivências foram determinantes para esta escolha?

A minha paixão pelo mar vem de criança. Todos os anos passava um mês de férias na Costa da Caparica, onde aprendi a nadar com o banheiro. Recordo-me de que gostava de nadar até aos barcos dos pescadores, ancorados longe. Estes pescadores dedicavam-se à arte xávega e, quando puxavam as redes para o areal, tinha curiosidade em ir ver os peixes capturados.

Lembro-me de ver, no cinema, o filme “Vinte mil léguas submarinas” e adorar, de ler os livros de Júlio Verne e ficar fascinada.

A Biologia não foi a primeira escolha no seu percurso académico, foi a Medicina. O que a fez mudar de ideias?

Entrei em Medicina e, no início, gostei do curso. No segundo ano, comecei a ter alguns contactos com doentes e não suportava lidar com o seu sofrimento.

Esta mudança foi bem recebida pela sua família e amigos/as?

Os meus pais sentiram pena, talvez por a Medicina ser, na altura, uma licenciatura de prestígio e a Biologia formar sobretudo professores de liceu.

Que memórias mais marcantes guarda destes tempos de estudante?

Passei tempos maravilhosos como aluna. Embora estivéssemos a viver em ditadura, a Associação de Estudantes era de extrema-esquerda, e os alunos contestavam muito. Uma memória marcante relaciona-se com uma manifestação e greve geral de estudantes contra a ditadura, em 1972, após a morte de Ribeiro dos Santos. A polícia soltou os cães, e o dono da papelaria que se situava em frente da faculdade puxou-nos, a mim e a outra colega, para dentro da loja.

Existia uma grande diversidade de áreas; os dois primeiros anos dos Cursos de Engenharia, bem como algumas disciplinas do primeiro ano de Medicina, eram leccionados na FCUL, que funcionava na Rua da Escola Politécnica, no antigo Colégio dos Nobres. Os primeiros anos de Biologia e de Geologia eram também leccionados em conjunto. Este tempo permitiu-me fazer grandes amigos, que ainda continuam a estar muito presentes na minha vida.

A licenciatura de Biologia era frequentada sobretudo por mulheres, ao contrário de hoje em dia, em que existe um maior equilíbrio em termos de representação de homens e mulheres, e era comum estudarmos, em grupo, no Jardim Botânico.

Quais foram/são as suas grandes referências para a sua formação enquanto cientista?

Tive excelentes professores na FCUL, destacando, porém, a forte influência dos documentários de Jacques-Yves Cousteau no crescimento do meu interesse e fascínio por esta área.

Nos dois últimos anos da licenciatura, os alunos podiam escolher duas vertentes: ensino ou investigação, eu optei pela última. Os melhores alunos eram convidados, no quinto ano, para serem monitores e, depois, assistentes - foi o meu caso.

Nos anos 70, aquando do seu doutoramento, foi estudar para Paris, uma opção pouco comum e, possivelmente, na época, considerada “pouco adequada” para uma mulher. O que pesou na sua decisão? Como viveu esse tempo: sentiu-se dividida, foi alvo de críticas, recebeu apoios que considerou significativos?

Fazer o doutoramento, em Portugal, era quase impossível, pelo que não foi propriamente uma escolha. Os estudos na área da Biologia Marinha, ou eram financiados ou eram impraticáveis.

Em 1977, houve a possibilidade de fazer um estudo pioneiro sobre o estuário do Tejo, financiado pela UNESCO, e na altura existia um desconhecimento quase total das diferentes vertentes, quer biológicas, quer geológicas, quer de hidrodinamismo, quer físicas. Uma das áreas centrava-se no estudo dos peixes, de que fiquei responsável.

Sempre tive o apoio dos meus pais. Na altura, já tinha dois filhos e, embora soubesse que estavam bem, era muito duro só ter notícias por carta ou por telefone, uma vez por semana. Mas nunca me senti dividida porque estava segura do que pretendia fazer profissionalmente.

A sua tese de doutoramento, defendida em 1980, na Universidade de Paris VI, Pierre e Marie Curie, foi subordinada ao tema Écologie des poissons de l’estuaire du Tage. Quais foram os principais desafios? Quais as suas principais conclusões científicas?

Vivia em Almada e, durante dois anos, fiz colheitas mensais no estuário do Tejo, no navio de investigação Mestre Costeiro, onde permanecia cerca de cinco dias. Também o fazia nas zonas baixas, com pescadores locais, em Vila Franca de Xira e em Alcochete. Nessas saídas, cheguei a levar algumas vezes os meus filhos.

Nessa altura, já leccionava aulas práticas como assistente na FCUL, e, por isso, aproveitava as férias para rumar a Paris e poder discutir a tese com o meu orientador, consultar bibliografia e fazer investigação no Museu de História Natural e na Universidade. As idas a Paris eram financiadas por uma bolsa, de baixo valor, da Embaixada francesa, e por um bilhete de avião de regresso. O bilhete de ida era suportado financeiramente por mim, viajando sempre de comboio por ser mais económico.

Com a realização da tese de doutoramento, foi possível ter uma ideia clara das espécies de peixes que existiam no Tejo e a relação entre elas. Apenas se conheciam as espécies de interesse comercial. Com o contributo inestimável dos pescadores, foi possível conhecer quais as espécies que, na altura, usavam o estuário como zona de viveiro para crescerem, tais como os linguados, os robalos, as douradas, que, posteriormente, iam enriquecer os stocks costeiros. Investiguei o seu regime alimentar, as ligações entre eles e os invertebrados; as chamadas cadeias tróficas. Também estudei em que altura do ano saíam para o mar para se reproduzirem, as ligações aos parâmetros físicos, a idade e o crescimento. Estudei, no fundo, a sua ecologia.

De todas as investigações em que esteve envolvida, e que foram inúmeras, em quais gostou mais de participar?

Todas as investigações em que estive envolvida me entusiasmaram, destacando, porém, o estudo sobre o impacto da barragem do Alqueva, no qual fui responsável por investigar os seus efeitos nos peixes. Neste estudo, que considero o mais completo alguma vez feito em Portugal, colaboraram várias equipas de investigadores, como sociólogos, arqueólogos, botânicos, entomologistas, entre outros. Durante um ano, todos os meses, saíamos para o rio muito cedo, com os pescadores para efectuar as colheitas, ou sozinhos para fazer pesca eléctrica.

A beleza do Alentejo na Primavera em flor, os animais que observávamos na charneca, as conversas com os pescadores, os vestígios arqueológicos que observámos, como os do Castelo da Lousa, um castelo de xisto romano que ficou submerso, mas também a pobreza ainda existente - tudo me ficou gravado na memória.

Do ponto de vista pessoal, foi muito enriquecedor, mas também do ponto de vista profissional, dado que foi a partir deste estudo que efectuei a minha agregação em Impacto Ambiental e criei a disciplina de Impacto Ambiental, na FCUL.

De todos os cargos que desempenhou, destaca algum pela sua especial gratificação pessoal?

Ajudar a criar o Centro de Oceanografia, que se transformou no MARE, um grande centro de investigação. Na altura da sua constituição, existiam três equipas distintas: Oceanografia Física, Botânica e Zoologia; dada a sua dimensão e crescimento, o centro ocupou um edifício de raiz, no campus da FCUL. Durante vários anos, fui directora deste centro e continuo a fazer parte dele como investigadora.

Também gostei de desempenhar a função de vice-presidente do Instituto Nacional de Investigação das Pescas, que me permitiu compreender melhor a realidade do país.

Ao longo da sua carreira, foi assistindo a um aumento da representação das mulheres na academia. Considera que hoje a universidade constitui um meio menos hostil à participação das mulheres? Persistem oportunidades diferenciadas?

A universidade nunca foi, a meu ver, hostil à entrada das mulheres; as desigualdades encontram-se na progressão das carreiras. A percentagem de associadas com agregação e catedráticas, os lugares de topo no ensino, é ainda muito baixa.

Ao longo do seu percurso profissional, teve de lidar com preconceitos associados ao facto de ser mulher?

Tive de lidar com diferenças no processo de concurso para professora catedrática, quando me foi atribuída uma pontuação mais baixa em relação a um colega, apesar de o meu curriculum ser superior em todos os domínios. Na altura, a antiguidade era o critério mais importante. Como havia duas vagas, conseguimos os dois. Actualmente, esta situação não aconteceria, persistindo outros problemas que dariam para outra entrevista [risos].

Quando se compara com os seus pares do sexo masculino, considera que teve de fazer esforços adicionais para provar a sua competência?

Tive de fazer esforços adicionais para ser ouvida. Lembro-me de, nos anos 80, participar num symposium, em Hull, em Inglaterra, em que apenas duas mulheres apresentaram comunicações - uma colega francesa e eu - num grupo de 40 homens. No fundo, para serem perspectivadas como pares, as mulheres tinham de ser melhores do que os seus pares masculinos.

Fundou, em 2003, em conjunto com outras cientistas, a Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas - AMONET. Quais foram as principais motivações para a sua criação? Essas motivações permanecem na actualidade?

A criação da AMONET constituiu um grito de revolta de muitas cientistas. Na altura, nos painéis de avaliação das áreas científicas, não existiam mulheres, apesar de haver um número razoável de mulheres cientistas nas diferentes áreas.

Quais são as principais mudanças a que tem assistido, desde a fundação da AMONET, na área da igualdade de género nas ciências?

Constata-se um esforço para as mulheres cientistas integrarem os comités de avaliação e, pela primeira vez, temos uma mulher presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Apesar de existirem cada vez mais mulheres nas ciências, por que razão continua a persistir, na nossa percepção colectiva, uma imagem masculina quando pensamos em ciência?

Durante muitos anos, nos media, no cinema, os cientistas eram representados por homens, ficando muitas mulheres cientistas na sombra. Por outro lado, as mulheres cientistas, quando eram representadas, tinham sempre óculos e um ar sem graça. Como se, para serem cientistas reconhecidas, as mulheres tivessem de possuir um determinado visual ou aparência.

De acordo com o “She Figures”, relatório da Comissão Europeia, publicado em 2019, que monitoriza o nível de progresso em termos de igualdade de género na investigação e inovação na União Europeia, a percentagem de mulheres na população portuguesa doutorada é de 53,5%. No entanto, as mulheres continuam sub-representadas nos campos das ciências, tecnologias, engenharias e matemática, sobretudo em lugares de topo de carreira. Como explica esta realidade?

É difícil de explicar. O problema reside nos lugares de topo. Há muitas mulheres cientistas, mas quantas mulheres catedráticas existem? E quantas directoras de Centros de Investigação? A nível da União Europeia, estamos acima da média nos cargos públicos. O principal problema acontece nas empresas, onde só 28% dos investigadores são mulheres, sem falarmos nos lugares de topo. Quantos directores executivos são mulheres? Esta realidade também está relacionada com o papel das mulheres como mães e com o facto de serem quem efectua a maioria do trabalho doméstico. É importante existirem políticas públicas que apoiem as mulheres em geral, e as cientistas em particular.

Considera-se uma cientista feminista?

Considero-me obviamente uma feminista, independentemente de ser ou não cientista.

O que significa, para si, fazer ciência numa perspectiva feminista?

Não considero que haja uma perspectiva feminina de fazer ciência, há apenas boa e má ciência. Em processos de recrutamento, baseava-me no curriculum, independentemente do sexo.

Foi-lhe dedicada uma espécie nova de peixes. Como se denomina e onde vive? O que representa esta homenagem?

Foi-me dedicada uma espécie nova de peixe achatado, da família dos linguados, por um colega francês. Foi descoberto na Ilha da Reunião e chama-se Samaris costae. É um motivo de grande orgulho.

O que sentiu quando recebeu a notícia de que, em 2016, iria ser uma das 100 cientistas portuguesas homenageadas na exposição “Mulheres na Ciência”, pelo Museu Ciência Viva?

Fiquei muito feliz, pois tenho muita consideração pelo Ciência Viva. Mas ainda fiquei mais orgulhosa quando recebi a medalha de ouro da Ciência de Almada, a minha terra, e por ter sido colocado o meu nome numa estátua dedicada às mulheres, também em Almada.

Que trabalhos de investigação se encontra a desenvolver actualmente?

Continuo a trabalhar sempre que sou solicitada, embora oficialmente reformada. Estou, actualmente, como consultora num projecto. Publiquei, em Novembro, um livro no âmbito da Iniciativa Lisboa Verde, por solicitação do vereador Sá Fernandes: O estuário do Tejo, onde o rio encontra o mar.

O que mais a realiza na vida?

O simples facto de viver me realiza. Viajo muito, leio, adoro cinema, teatro, exposições, estar com amigos e família, cozinhar, estar ao pé do mar, passear pelo estuário do Tejo. E tentar contribuir para a igualdade entre homens e mulheres na Ciência.

Rita Mira. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Lisboa, Portugal. Email: mira.rita@gmail.com

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