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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa June 2021  Epub Nov 30, 2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/ngoi-fywq 

Pioneira

Margarida Medina Martins: uma “cidadã do mundo”

Rita Mirai 

i Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Lisboa, Portugal.


Os Direitos Humanos das Mulheres e das Crianças são a grande missão da vida de Margarida Medina Martins.

Na concretização prática desta missão, criou e dirige, desde 1992, a Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), uma organização não governamental que trabalha na defesa activa e no lobby dos Direitos Humanos das Mulheres e das Crianças. É precisamente no contexto desta associação que o seu pioneirismo se evidencia.

Para além de ser uma das primeiras organizações de mulheres em Portugal a desenvolver intervenção na área da violência contra as mulheres, a AMCV foi a primeira no país a disponibilizar, em 2000, de acordo com o Conselho da Europa, a primeira casa de abrigo especializada na área da violência doméstica, destinada ao acolhimento, seguro e temporário, de mulheres e crianças sobreviventes de uma situação de risco grave ou em perigo de vida.

A nível internacional, a AMCV foi, em 1998, a primeira organização portuguesa de defesa dos Direitos Humanos das Mulheres acreditada com o Estatuto Consultivo Especial do Conselho Económico e Social das Nações Unidas - ECOSOC.

Constatando a ausência de uma voz colectiva por parte das mulheres sobreviventes de violência, que exprimisse as suas necessidades e interesses, a AMCV impulsionou, em 2009, a criação do primeiro grupo, a nível nacional, de mulheres auto-representantes sobreviventes de violência de género - o grupo Hipátia.

Em 2016, a AMCV protocolou, com o Ministério da Justiça e a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, a implementação do primeiro Centro de Crise em Portugal, destinado a sobreviventes de violência sexual.

O reconhecimento do papel de Margarida Medina Martins, na área da defesa dos direitos das mulheres em Portugal foi evidenciado pela atribuição do prémio anual da revista Activa, em 2013.

Desde cedo que Margarida Medina Martins se considera “uma cidadã do mundo”, adoptando, por ter raízes familiares, como lugar de maior pertença a Vila de Óbidos, cujo castelo lhe ofereceu sempre “guarida e a consciência de um mundo enorme enquanto olhava a várzea”.

Quem é Margarida Medina Martins?

Uma viajante no tempo: no tempo dos livros, do conhecimento, da descoberta. E sou uma pessoa absolutamente respeitadora do meu tempo interno.

Na sua formação enquanto pessoa, quais foram/são as suas grandes referências?

Em termos familiares, a minha avó materna, pela clareza do seu pensamento. No liceu, duas professoras, a de História e a de Matemática. Fiquei fascinada com a História da Mesopotâmia, do Egipto, da Grécia e apaixonei-me pelas figuras de Carlos Magno, Joana d’Arc, Luís de Camões. Por sua vez, fiquei deslumbrada com a Matemática quando percebi que estrutura o universo. Mas a figura que mais me marcou foi a de Marie Curie, pelas suas descobertas e história de vida.

Ler foi sempre o mais importante. Próximo da minha escola primária, em Lisboa, existia uma biblioteca e, por volta dos 9 anos, comecei a requisitar livros para ler em casa, sobretudo sobre investigação científica.

O teatro e a música foram outras áreas de referência na minha formação, destacando Marcel Marceau, o mimo francês de quem tenho um autógrafo [risos].

Outros autores que enriqueceram a minha viagem: Marguerite Duras, Simone de Beauvoir, Isabel Allende, Florbela Espanca, Maria Teresa Horta, Sophia de Mello Breyner Andersen, Virginia Woolf, Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre, Carl Sagan e Michio Kaku.

Como descreveria a sua infância? O que traz consigo desse tempo até aos dias de hoje?

Foi um período muito difícil. Nos anos 50 grassava, em Portugal e noutros países, uma epidemia de Tinea Corporis (tinha), constituindo um problema sanitário grave, com elevada prevalência na população infantil. Com apenas 3 anos de idade, vivi uma experiência traumatizante relacionada com o processo de tratamento que se praticava, na altura, para esta doença. Neste processo, fui completamente afastada da minha família para ser sujeita a uma terapia que envolvia a aplicação de raios-X no couro cabeludo. Lembro-me de ser colocada numa fila, com outras crianças, que choravam, para entrar num edifício e ser fechada numa espécie de caixa branca vazia, onde me foi colocado um capacete na cabeça, cuja intervenção fez cair o meu cabelo. Entrei no edifício de rabo-de-cavalo e saí completamente careca.

Nasceu em 1953. Como foi, para si, viver a sua infância e juventude numa sociedade em que imperava uma “ordem de género” que definia o lugar da mulher essencialmente no espaço privado?

A consciência de estar só surgiu na minha vida muito precocemente. Por um lado, só tinha irmãos e primos, e adoptei comportamentos considerados mais típicos de rapazes. Por outro, a mudança constante de residência devido à profissão da minha mãe, que era professora primária, não me permitiu fazer amigas/os de infância. Na adolescência, em Lisboa, tomei consciência das questões de género, ao ser confrontada com inúmeras proibições pelo simples facto de ser rapariga: as brincadeiras, as lutas com rapazes, o subir às árvores.

A partir de que momento da sua vida começou a reflectir criticamente sobre as desigualdades sociais existentes entre as mulheres e os homens?

Quando me foi transmitida a cartilha do papel feminino, tendo de assumir, só pelo simples facto de ser mulher, as tarefas domésticas, como a confecção de refeições e a arrumação dos quartos dos meus irmãos, com a justificação de que eles iriam, no futuro, para a guerra. Esta situação revoltava-me.

Na sua perspectiva, quais são os factores determinantes que promovem e tornam possível esse questionamento?

O sentimento de injustiça que trazia da infância, a experiência de viver no campo e o sentimento de que tinha sido promovida a “criada da família”.

É co-fundadora e dirigente da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), desde 1992. Como surgiu a ideia de constituir esta Associação?

Nos anos 80, em Portugal, encontravam-se internadas, em estruturas psiquiátricas, cerca de dez mil pessoas, 60% das quais não possuíam qualquer doença mental. Nessa altura, integrei um projecto de construção de uma associação, cujo principal objectivo era a criação de respostas comunitárias de apoio a pessoas com doença mental, a AEIPS - Associação para o Estudo e Integração Psicossocial. Neste projecto, constatámos que um número significativo de pessoas integradas nestas respostas psiquiátricas eram mulheres e raparigas sobreviventes de violência, incesto, abuso sexual e violação, pelo que decidimos criar um serviço de apoio especializado destinado a mulheres e raparigas sobreviventes de violência. As primeiras situações que nos surgiram foram de vítimas de abuso sexual na infância.

Por que razão abraçou os Direitos das Mulheres e os Direitos das Crianças como a grande missão da sua vida?

Um conjunto de acontecimentos marcantes numa fase da minha vida fez-me colapsar psicologicamente. Aos 20 anos, senti a morte por perto devido a um problema grave de saúde. A minha medula óssea tinha deixado de produzir glóbulos vermelhos, sendo o quadro inflamatório crónico e doloroso. Foi-me reconhecido um quadro oncológico devido às radiações que tinha sofrido na infância. Aquele tratamento impediu-me, igualmente, de ter filhos, embora ainda tenha conseguido engravidar com apoio médico, mas perdido o bebé. Nessa mesma altura, ocorreu o falecimento do meu pai. Todo este contacto com a morte veio reforçar a necessidade de encontrar um sentido de vida, optando por fazer psicanálise. Neste processo terapêutico, percebi que era possível mudar, renascer e, com esta visão, decidi construir, em conjunto com um grupo de profissionais e de sobreviventes de violência, a Associação de Mulheres contra a Violência.

Que balanço faz destes 29 anos de intervenção nesta área?

Foram realizados imensos progressos, alcançando-se alguns pontos de não retorno. Hoje em dia, ninguém se atreve a afirmar que não há violência contra as mulheres e raparigas. No entanto, considero que só tocámos na epiderme do sistema que perpetua esta violência, podendo, a qualquer instante, existir retrocessos.

Quais os principais desafios do presente e do futuro?

Lutar contra a ignorância é o maior desafio, pelo que a especialização nas áreas dos Direitos Humanos das Mulheres e Crianças, da violência masculina contra as mulheres e raparigas, bem como a obrigatoriedade do ensino, em todos os níveis de escolaridade, dos Direitos Humanos, são as áreas de maior investimento.

Quais os principais marcos, internacionais e nacionais, da História dos Direitos das Mulheres em que esteve envolvida, enquanto cidadã e dirigente da AMCV?

A participação nas reuniões da Organização das Nações Unidas nas áreas das Mulheres e das Crianças foram sempre um espaço de grande aprendizagem, tendo-me permitido perceber o papel dos diferentes actores que moldam as nossas vidas, como os grupos religiosos, amplamente poderosos, e compreender a existência de uma agenda política dedicada a variadíssimas áreas e acordada pelos países-membros. A este nível, destaco a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1993. A nível nacional, e em termos individuais, destaco a participação nas manifestações da Revolução de Abril, em 1974.

Relativamente à AMCV, realço o facto de ser, nessa altura, a única organização não-governamental de direitos humanos (ONGDM) do Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres - CIDM, actual CIG, especializada na área da violência contra as mulheres, tendo colaborado na construção do primeiro Plano Nacional contra a Violência Doméstica, em 1999, no âmbito do Conselho Nacional da Família, em representação das ONGDM.

Teve o privilégio de ser uma das poucas portuguesas a participar na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, da ONU, realizada em 1993, que representa um momento histórico de viragem em relação à forma como a comunidade internacional perspectiva os Direitos das Mulheres. O que mais recorda deste encontro? O que sentiu e pensou nessa altura?

Recordo que fiz 40 anos, em Viena, nas vésperas desta conferência. Foi um privilégio participar neste encontro, e fiquei emocionada ao perceber que aquele momento era histórico, pois reconhecia-se, em termos internacionais e após 45 anos, que os Direitos das Mulheres eram Direitos Humanos, fazendo parte integrante da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Conhecer a história da AMCV permite constatar que é uma organização pioneira em Portugal em vários aspectos. Quais as principais conquistas que justificam esta afirmação?

A origem da AMCV teve como ponto de partida o apoio técnico a sobreviventes e a intervenção em trauma, e não o activismo, colocando a associação numa posição diferente das restantes similares e garantindo a sua independência face a grupos religiosos e a partidos políticos.

O facto de ter sido reconhecida mais cedo a nível internacional do que nacional fez, igualmente, a diferença, com a atribuição da acreditação, em 1998, do Estatuto Especial do Conselho Económico e Social das Nações Unidas.

Gostaria ainda de destacar que recebeu, em 2001, o 1.º Prémio de Direitos Humanos Dr. Ângelo d’Almeida Ribeiro, da Ordem dos Advogados e, em 2010, ex aequo, o Prémio Gulbenkian Beneficência, da Fundação Calouste Gulbenkian.

Assume-se como feminista. Que importância tem esta declaração nos dias de hoje?

Assumo-me como feminista enquanto mulher que se preocupa com questões que afectam as mulheres e raparigas. As feministas são uma espécie de guardiãs de um património em risco de extinção.

Quais são os desafios mais prementes para os feminismos actuais?

Hoje em dia, vivemos tempos conturbados, em que mais uma vez o perigo reside na ignorância e na manipulação das palavras, que não são inocentes. A mudança que se pretende operar do “paradigma binário” para um “não paradigma” é, ela própria, um problema e um risco, partindo da ilusão de uma igualdade, ainda hoje muito longe de ser alcançada. As mulheres marcaram a História dos Direitos Humanos no Mundo, enfrentando a hegemonia masculina. O problema da desigualdade de género está na origem, na cultura prevalecente, na perpetuação da violência geracional.

Ao longo da sua vida, o que mais a realizou?

O trabalho que faço todos os dias, assumindo o lema mission accomplished. Gosto de “dar nome às coisas”, defendendo uma cultura de responsabilização - accountability.

Qual foi a mais significativa homenagem que recebeu?

Os prémios que tive a oportunidade de receber, em nome da Associação de Mulheres contra a Violência, foram muito gratificantes.

Que outros interesses lhe despertam a atenção, para além da defesa dos Direitos das Mulheres e das Crianças?

Sou profundamente curiosa, pelo que a leitura é algo constante na minha vida, sendo as temáticas de interesse muito diversificadas: as alterações climáticas, a exploração do espaço, a biomedicina, a cibernética, entre outras.

Como surgiu a pintura na sua vida? Quando está prevista a próxima exposição de pintura?

Há muito anos que tenho por hábito desenhar sempre que desperta, em mim, essa vontade, trazendo sempre comigo um caderno para esse efeito. Realizei a primeira exposição na livraria Bertrand, no Chiado, e espero ainda fazer a terceira.

Quando a conheci, em 2000, levava consigo, para todas os encontros de trabalho, uma alcofa. Ainda gosta de a usar? [Risos]

Esta alcofa tem uma forte história, era nela que transportava o meu filho, ainda bebé, para todo o lado, incluindo para reuniões de trabalho. Faz parte da minha missão [risos].

Rita Mira. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher. Email: mira.rita@gmail.com

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