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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa June 2021  Epub Nov 30, 2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/y6oe-rgj7 

Retrato

Maria de Sousa e a luminosidade do esperado

Teresa Summavielle1 

1 Principal Investigator and Research Coordinator Addiction Biology Group, Portugal.


Escrever sobre Maria de Sousa será sempre uma tarefa ingrata, qualquer texto ficará provavelmente aquém do que teria merecido.

Aqui, para limitar esse risco, socorrer-me-ei com frequência das suas próprias palavras. Numa homenagem a Maria de Sousa, em fevereiro deste ano, o neurocientista Rui Costa, um dos seus mais fiéis amigos e discípulos, listou algumas das palavras que caracterizavam o seu discurso: coragem, curiosidade, liberdade, generosidade, comunidade, visão. Eu acrescentaria espanto, palavra que usava com frequência para criticar as múltiplas incoerências da nossa política científica, com que se debateu até quase o seu último dia. Foi esta a Maria de Sousa que conheci, cientista, escritora, poetisa, mulher de visão e coragem, que contribuiu como poucos para mudar a história da política de Ciência em Portugal. É sobre esta Maria de Sousa que quero escrever.

Nas suas conversas com Anabela Mota Ribeiro afirma: “Acho que nunca encolhi na vida”. É verdade, foi sempre mais longe. É interminável a lista dos que, como eu, por sua causa foram mais longe também. Referindo-se aos alunos de doutoramento ou mestrado, de quem com frequência se tornava mais tarde grande amiga, dizia: “Trato-os mal no sentido em que não os protejo, para serem eles próprios. E depois vêm a apreciar isso”. Não fui sua aluna, era doutoranda na porta ao lado, o que me valeu nessa altura um ou outro dos seus famosos “raspanetes”. Os que souberam percebê-la e merecer o seu respeito foram com certeza mais longe.

Separou sempre o eu biográfico do eu curricular. Estes dois “eus” dominaram fases diferentes do seu percurso. Em Lisboa, nos anos iniciais do seu percurso académico, foi o eu biográfico que a dividiu entre o piano e o curso de Medicina. No início dos anos 60, quando partiu para Londres, foi dominada pelo eu curricular. Depois de um breve regresso a Lisboa, que classificou como “tempo escuro num dia de sol”, partiu em 1967 para Glasgow, onde o eu biográfico foi feliz, e o curricular prolífero.

Quando se muda para Nova Iorque, é o eu curricular que volta a ser preponderante: “não tinha tempo para ser feliz”. É nesta altura, em 1975, que June Goodfield a escolhe como protagonista do seu An Imagined World: A Story of Scientific Discovery. Não casou e não teve filhos por opção. Viu demasiadas mulheres prometedoras deixarem de existir dominadas pelo eu biográfico. Não correria esse risco.

Regressa a Portugal em 1985, como Professora Catedrática no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS), onde se dedica ao estudo da hemocromatose e onde inicia uma nova escola de pós-graduação que culmina com a criação do programa doutoral em Áreas da Biologia Aplicada e Básica que ficará conhecido como GABBA. Este programa, de sucesso indiscutível, veio mostrar como é possível ir muito mais longe quando expomos os jovens investigadores ao melhor de cada área e os deixamos escolher livremente o seu caminho. Tristemente, numa academia ferida pela autocracia e que tem medo da palavra liberdade, o programa não lhe sobreviveu. Resta-nos esperar que a memória desta “escola sem paredes” sobreviva em cada um dos seus antigos alunos, e que estes a disseminem dentro e fora das fronteiras das nossas escolas.

É também neste regresso a Portugal que se torna próxima de Mariano Gago, participando ativamente na emergência da ciência moderna em Portugal. É aliás esse seu papel no redesenhar de uma política científica que irá mudar o paradigma cientifico português, que dá titulo ao discurso que faz em 2017 quando recebe o Prémio Universidade de Lisboa: “Testemunho de uma testemunha”. Inspirada pela tese de doutoramento da investigadora Ângela Salgueiro, evoca a coragem de vozes como as de Bernardino Machado, Abel Salazar, Augusto Celestino da Costa, Pires de Lima, Simões Raposo e António Sérgio, que valorizaram a Ciência integrada na Universidade, aspirando construir um país respeitado pela prática da Ciência e pela projeção internacional dos seus cientistas, mas que, por constrangimentos políticos, financeiros e culturais, não conseguiram a desejada revolução. No discurso, contrasta esta primeiras vozes corajosas com a timidez das vozes atuais, que, trinta anos volvidos sobre as primeiras bolsas de doutoramento, quinze anos após os primeiros investigadores FCT (Programa Ciência 2007), e apesar da explosão de números que estes programas impulsionaram, não se revoltam face à discriminação de que são atualmente alvo os investigadores no contexto académico. Sobre estes, diz-nos: “Qualquer português medianamente inteligente terá vergonha se de facto perdermos esse grupo”, ao mesmo tempo que recorda o oportuno título de um livro de António Barreto: Tempo de escolha.

É também neste discurso que afirma que “a palavra precário entrou recentemente no vocabulário do mundo científico português. Mas nos anos 60 do século passado, anos em que a velha senhora que eu sou hoje saiu do país, a entidade mais precária na sociedade portuguesa, depois dos muito pobres, era a mulher”. A precariedade é de facto uma das mais tristes faces da Ciência em Portugal, mas números recentes indicam que ela atinge com maior intensidade as mulheres investigadoras. Maria de Sousa queria mais mulheres à frente das nossas instituições de ensino superior e investigação. Os seus últimos anos foram marcados por múltiplas iniciativas que, no seu conjunto, muito contribuíram para dar visibilidade ao problema da precariedade na investigação.

Numa carta enviada ao Primeiro-Ministro, Governo e grupos parlamentares, afirmava: “A prática da investigação científica teve uma expansão notável em Portugal nos últimos 30 anos... [...] Durante esses mesmos 30 anos, a Universidade envelheceu”. Defendia como essencial que, tal como os Centros de Investigação, as Universidades fossem periodicamente avaliadas através de um processo externo e verdadeiramente independente. Sem isso, temia que a Universidade estivesse condenada a uma assimetria perversa, obsoleta, nepotista e endogâmica. (Elogiava sempre as exceções existentes.)

Considerava que, em tempos de Paz, a Ciência deveria constituir-se como um desígnio nacional. “Espera-se da Ciência que se dedique à prática e defesa de causas nobres, individuais e coletivas” - individuais no direito à liberdade, à criatividade, ao conhecimento, no direito a perguntar e no direito a duvidar; coletivas na proteção da condição humana, das outras espécies, do ambiente, sem excluir, dizia, lembrando Francisco de Assis e a NASA (com aquela gargalhada que eram tão sua), “a Lua, o Sol, a água, as estrelas e outras galáxias, com o desenvolvimento de instrumentos que se estendem dos genes, às moléculas, à proteómica, e aos mais poderosos telescópios”.

Queria uma Fundação para a Ciência e a Tecnologia independente e virada para os cientistas, deparava-se com uma Ciência refém da agenda política. Considerava os resultados soberanos; não importava quão audaciosa e atraente pudesse ser a hipótese ou os objetivos, os resultados eram sempre soberanos. E os resultados soberanos da política científica dos últimos anos, que diariamente lhe chegavam, eram penosamente diferentes daquilo que tinha ambicionado para Portugal. Numa reflexão que não chegou nunca a ser publicada dizia: “Termino repetindo que este texto é uma reflexão e não um protesto. Poderia ser isso e muito mais, mas em verdade é a reflexão de uma adepta emérita que partilhou há anos a luminosidade do esperado. Mal preparada para a escuridão do absurdo.”

Nos últimos anos vivia sobretudo em Lisboa. As suas passagens pelas “Virtudes” do Porto foram-se tornando menos frequentes, limitada pelas múltiplas sessões de diálise a que resistia com a mesma coragem com que se entregava a tudo. O eu biográfico e o eu curricular estavam reconciliados.

A nossa correspondência tornou-se quase diária. Escrevia ao romper do dia, partilhando vitórias e desalentos, discursos, cartas, poemas. Deles me socorri para escrever este texto. Um ano passado sobre a sua morte, a sua ausência é ainda demasiado presente. Para Maria de Sousa, escrever era essencial. A memória é finita, a escrita não. Escrevia para reter o momento, para “estancar o rio que tudo arrastaria”. Com frequência abro alguns dos seus e-mails e leio ao acaso alguns desses momentos. A 25 de março estava feliz, preparava a publicação de um novo livro de poemas: “Teresa, pode imaginar como me sinto? Que bom este partilhar de confidências!”. Partiu na madrugada de 14 de abril.

Teresa Summavielle. Principal Investigator and Research Coordinator Addiction Biology Group, Portugal. Email: tsummavi@ibmc.up.pt

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