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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa June 2021  Epub Nov 30, 2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/ankd-tqvb 

Leituras

Fiadeiro, M. A. (2020). Artistas, Artesãs, Pioneiras. Conversas singulares com mulheres extraordinárias. Sintra: Edições Caixa Alta. ISBN 978-989-33-0553-9, 575 pp.

Virgínia Baptistai 

1i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Lisboa, Portugal.


A jornalista e investigadora Maria Antónia Fiadeiro tem uma extensa obra publicada, das quais saliento Maria Lamas, Biografia (Quetzal, 2003).

O livro Artistas, Artesãs, Pioneiras. Conversas singulares entre mulheres extraordinárias foi publicado em 2020 e tem 575 páginas. Na capa, uma ilustração da pintora Maria Mendes, uma das entrevistadas, que pintou mulheres. Há a sensação imediata de o livro ser uma das peças das artesãs retratadas.

De início, a jornalista Francisca Gorjão Henriques entrevista Maria Antónia Fiadeiro, sua tia. Fica-nos uma frase da entrevistada, talvez em desabafo sobre as mulheres: “acho que têm mais queixas, mais história não feita, frustrada, não terminada” (p. 17). A autora assume que foi “sempre feminista mesmo quando não sabia que o era” (p. 18).

As entrevistas ocorreram entre 1982 e 2008, geralmente em casa ou nos ateliês das entrevistadas, e foram originalmente publicadas em diversos jornais.

Os nomes das entrevistadas encontram-se no índice por ordem alfabética do seu nome próprio. No total são 77 mulheres e dois coletivos de artesãs, num universo de cerca de 40 profissões. É um livro de literatura (muito bem escrito, com muitos pormenores, detalhes, cores, texturas e sabores), de história (nos contextos da ditadura salazarista e da democracia) e de antropologia (abordando vivências, culturas e a arte artesã das serras). As histórias de vida das entrevistadas ocorreram durante a segunda metade do século XX, século que Maria Antónia Fiadeiro considera ser das mulheres (p. 19).

Recua-se a mulheres que nasceram na Primeira República, como a feminista Elina Guimarães, jurista desde 1928, e entrevistada com 80 anos: “Todos os homens de bem são feministas. Devem sê-lo. Todos os homens que não são machistas são feministas. O paralelo de machismo não existe. Não é o feminismo. Seria o vampirismo, que é tirar partido de um sexo para explorar o outro sexo” (p. 169).

No testemunho da jornalista Maria Antónia Palla, percorrem-se memórias do Estado Novo (1933-1974), através dos avós republicanos, da oposição, que moravam no Seixal e tinham um óculo virado para Lisboa, à espera de sinais da Revolução (p. 358). Há referências à censura, à repressão, à prisão política, às eleições presidenciais de 1958 com o candidato de Arlindo Vicente. Advogado e pintor, Arlindo Vicente era sogro de uma das entrevistadas, a feminista Ana Vicente, presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres entre 1992 e 1996, hoje Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (p. 85).

Também se aborda a Crise Académica de 1962, na qual Maria Antónia Fiadeiro se envolveu (p. 16) por o Estado Novo proibir a comemoração do Dia do Estudante. Está presente o exílio de várias antifascistas, como o da própria autora. A pintora Maria Mendes, que tinha formação em enfermagem por exigência da família, atravessou, com coragem e medo, as fronteiras ibéricas, depois de ter participado numa greve de enfermeiros (p. 445).

Outros temas são: o atraso na instrução que submergia o país (Cândida Neves, a carteira, “chegou a tirar a quarta classe, apesar de não ser comum as raparigas irem à escola ou ultrapassarem a terceira classe” (p. 122)), a pobreza nos campos, a vida das criadas desde meninas. Maria Arsénia, jardineira no Seixal, contou que “com 12 anos levaram-na para uma casa de servir em Montemor… O patrão chegava a espetá-la no braço com um garfo” (p. 375). As memórias da Segunda Guerra Mundial estão também presentes (nascida na Madeira, Célia Pestana, técnica superior, andava na escola quando a guerra acabou), bem como da emigração e da Guerra Colonial. A escultora Clara Meneres, em 1973, fez a escultura de um soldado morto que intitulou “Jaz morto e Arrefece o Menino de Sua Mãe”, usando o verso de Fernando Pessoa (p. 148).

Com o 25 de Abril, houve a abertura cultural e as lutas feministas, como a da Interrupção Voluntária da Gravidez. A autora participou nessa luta, no sentido de a mulher decidir sobre a sua vida (“no tempo do aborto: era o último recurso, mas no fundo era o primeiro” (p. 18)), tal como Maria Antónia Palla, que, em 1976, enfrentou um processo disciplinar por ter tratado este tema na televisão (p. 369). Depois, a abertura das Galerias Diferença, Ratton, Quadrante, Opinião, dos Museus, da Gulbenkian às mulheres artistas.

Maria Antónia Fiadeiro confessa-nos que houve duas pessoas de referência na sua vida: Fernando Piteira Santos, seu padrasto desde os 5 anos, antifascista obrigado ao exílio na Argélia durante 12 anos, com Stella, mãe da autora; e Maria Lamas, escritora, jornalista, feminista, presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, entre 1945 e 1947, que organizou a Exposição “Mulheres Escritoras de todo o mundo”, na Sociedade Nacional de Belas Artes, encerrada pela PIDE em 1947 (Mulheres. Paz. Liberdade, Maria Lamas, org. Maria Margarida Moleiro, Museu Municipal Carlos Reis/Município de Torres Novas, 2017).

Não pode deixar de se encontrar uma semelhança entre a visibilidade dada às trabalhadoras, em As Mulheres do Meus País, de Maria Lamas, no final dos anos 40, pelas fotografias e relatos das observações, e as conversas de Maria Antónia Fiadeiro com as mulheres artistas, artesãs, pioneiras, entre 1982 e 2008, assim se comprovando que no século XX as mulheres trabalharam. Algumas contaram mesmo as suas vidas, como Michelle Perrot (Minha história das mulheres, ed. Contexto, 2019) e Sylvie Schweitzer (Les Femmes ont toujours travaillé, Ed. Odile Jacob, 2002). Esta obra dá voz a estas mulheres.

O livro de Maria Antónia Fiadeiro merece constar das leituras atentas sobre a história das Mulheres do século XX, o seu trabalho em diversos setores e as suas vivências. É um livro sobre universos femininos, mas também um livro feminista (mesmo que muitas ainda o não soubessem ou assim se considerassem). É sobre as mulheres do século retratado no livro por Eliane Guben e outras autoras intitulado Le Siècle des féminismes (Les Éditions de l’Atelier, 2004).

Virgínia Baptista. Investigadora Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Lisboa, Portugal. Email: virbaptista@gmail.com

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