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 issue45Fiadeiro, M. A. (2020). Artistas, Artesãs, Pioneiras. Conversas singulares com mulheres extraordinárias. Sintra: Edições Caixa Alta. ISBN 978-989-33-0553-9, 575 pp. author indexsubject indexarticles search
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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.45 Lisboa June 2021  Epub Nov 30, 2021

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/btwd-qfzs 

Leituras

Rodrigues, M. O. (2020). Terceiro género: Possibilidade de reconhecimento legal em Portugal. Lisboa: Lisbon International Press. ISBN, 978-989-52-8189-3, 114 pp.

Zamira de Assis1 

1i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Lisboa, Portugal.


O livro Terceiro Género: Possibilidade de reconhecimento legal em Portugal foi originalmente a tese de mestrado defendida pela autora na NOVA School of Law da Universidade Nova de Lisboa, e traz como nota distintiva o prefácio da sua orientadora, a Professora Helena Pereira de Melo, que refere que a obra propõe um repensar das questões de género e de expressão de género no plano jurídico “que permita ultrapassar obstáculos decorrentes de lógicas heteronormativas associadas a soluções injustas (desiguais) para quem é diferente da maioria cisgénero e heterossexual”.

De facto, a jovem e promissora pesquisadora consegue, de forma simples e direta, apontar a urgência de o Direito dar respostas a vários temas relacionados com o género e o sexo e desafia a normatividade da ciência jurídica a ultrapassar o evidente apego à classificação sexual dos seres humanos a partir de dois únicos marcadores, e as razões pelas quais o direito deve fazê-lo - para utilizar uma categoria fundamental de Direito - vão sendo acentuadas ao longo do livro.

Os avanços já obtidos em matéria de respeito pelos direitos fundamentais de pessoas que não se enquadram na dicotomia tradicional binária, e o quanto ainda falta avançar para garantir esses mesmos direitos na sua plenitude, são distribuídos nos três capítulos que compõem a obra de modo sequencial e coerente.

O primeiro capítulo trata de apontar qual é o papel do Direito, como autoridade legitimadora do dever ser, na construção binária, e ao fazê-lo mostra um Direito em flagrante homologação da realidade biológica primária, que assume a existência de dois únicos sexos e classifica de malformação qualquer realidade biológica diferente; o Direito homologa também a construção social de comportamentos considerados adequados, e portanto esperados, de cada pessoa conforme o seu sexo de nascença.

Refira-se que países há em que o Direito criminaliza comportamentos que não se ajustem a essas duas categorias, enquanto em outros países não assume qualquer dever de proteção a comportamentos diferentes do esperado, ainda que a ciência já tenha cunhado o termo terceiro género “para qualificar as outras identidades e expressões de género para além dos binários (F e M) já reconhecidos” (p. 37).

Entretanto a proposta do livro é defender a possibilidade de reconhecimento legal do terceiro género em Portugal. Assim, no segundo capítulo a autora faz uma abordagem do sexo e do género na ordem jurídica portuguesa, evidenciando que, se de um lado a legislação portuguesa se caracteriza por adotar posições de vanguarda na matéria, de outro lado faz uso de maneira indiscriminada dos termos sexo e género, empregando algumas vezes o primeiro como sinónimo do segundo (p. 43).

Portugal é um dos poucos países no mundo onde a proteção contra a discriminação por orientação sexual tem status constitucional. Contudo, é relevante indagar o real alcance dessa proteção, e nesse capítulo, apesar dos avanços já alcançados pela legislação portuguesa com a edição, por exemplo, da Lei n.º 38/2018 que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa, a realidade do texto constitucional português ainda é uma realidade binária, como mostra a autora ao revelar que na Constituição da República Portuguesa não se utiliza a expressão género ou identidade de género, mas sim sexo; e quando não é utilizado o termo sexo, opta-se por “homens e mulheres”. Além disso, o texto constitucional relaciona a proteção da não discriminação com o princípio da igualdade sem harmonizar esse comando normativo com o princípio da liberdade e autonomia pessoal. Sem essa harmonização, fica a descoberto de proteção o “direito à individualidade enquanto manifestação do eu em relação aos outros” (p. 55) inerente a toda a pessoa. Nada é mais natural ao indivíduo, ressalta Mariana Oliveira, “que a maneira como este se vê e reconhece a si próprio (identidade) e pretende que os outros o reconheçam (expressão)” (p. 60), sublinhando aqui os passos seguintes da obra, quais sejam, uma incursão no Direito Europeu e Internacional em busca de subsídios normativos que deem sustento à possibilidade legislativa de reconhecimento do terceiro género em Portugal.

Com efeito, no terceiro e último capítulo encontra-se uma análise dos três mais importantes sistemas de Direito Internacional - o Sistema Universal, desenvolvido pela ONU, o Sistema Europeu, protagonizado pelo Conselho da Europa, e o Sistema da União Europeia, da responsabilidade da mesma União Europeia -, em que os principais instrumentos internacionais de direitos passam por forte escrutínio na sua capacidade de condenar, consciencializar e sobretudo incentivar a comunidade internacional a desenvolver mecanismos de proteção especial no que se refere à orientação sexual e/ou identidade de género contra atos de discriminação.

A defesa da possibilidade de reconhecimento legal do terceiro género em Portugal advém especialmente dos Sistemas Europeu e da União Europeia, possuidores de diversos instrumentos legais contra a discriminação, e mais do que isso, a favor da proteção da identidade de género. A este respeito destacam-se especialmente os Princípios de Yogyakarta, documento apontado como tendo menos limitações textuais, justamente por ser o instrumento internacional de Direitos Humanos mais específico em matéria de identidade e expressão de género e orientação sexual.

E será possível o reconhecimento de um terceiro género em Portugal? Mariana Rodrigues responde-nos que a realidade social e jurídica ainda se encontra muito longe desta possibilidade, apesar da vinculação do país a todos os instrumentos internacionais, europeus e da União Europeia analisados, notadamente por haver argumentações contrárias a essa via como solução para a discriminação. Entretanto, a discriminação permanece e é preciso dar pleno cumprimento aos Direitos Fundamentais das pessoas. A essa necessidade a autora responde, em conclusão, que, quando menos, o terceiro género cumpriria um papel de consciencialização social para a existência de identidades de género não binárias (p. 102); e, quando muito, “ao reconhecer estas identidades, o Estado está a dar-lhes legitimidade, dignidade e proteção, contribuindo para a desconstrução do sistema binário, dicotómico e heteronormativo, e talvez ‘abrindo caminho’ para um futuro em que o sexo e género de cada um serão características indiferentes para o Direito” (p. 102). Esta obra é, sem dúvida, um excelente contributo nesse sentido.

Zamira de Assis. Professora Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Lisboa, Portugal. Email: zassis@fcsh.unl.pt

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