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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.46 Lisboa dez. 2021  Epub 04-Fev-2022

https://doi.org/10.34619/mlqv-rhdu 

Nota de Abertura

Curiosidade e persistência

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Lisboa, Portugal


Pensamos em curiosidade e persistência quando reflectimos sobre a vida e a obra de Ada Lovelace, com quem “convivemos” no decurso da preparação deste número 46 da revista Faces de Eva. Só uma vontade forte e persistente e uma mente indagadora poderiam levar uma mulher, na primeira metade do século XIX, a compreender o potencial de uma máquina precursora dos modernos computadores e a escrever aquilo que se pode designar como o primeiro algoritmo. Apesar de ter sido intelectualmente estimulada para a ciência e para a matemática, a determinação e, porventura, uma imaginação fértil e pouco condicionada, permitiu-lhe abraçar um projecto que, no seu tempo, não estaria destinado a uma jovem mulher. Ada Lovelace movimentava-se entre a ciência, a poesia e a arte - não fosse ela filha de uma matemática e de um poeta - e quisemos assinalar essa sua dimensão poética, através da publicação do manuscrito de um poema seu.

Não é incomum, aliás, que espíritos rigorosos e dedicados às ciências naturais ou a outras delas derivadas sintam um enorme fascínio pelas artes e pela literatura. Talvez porque a aventura da descoberta traga consigo esse mergulhar profundo no mundo sensível da imaginação e das emoções. São seres dominados pelo espanto e, esse, encontram-no quer no laboratório, quer na inquietação da expressão artística. Temos exemplos vários , podendo citar, entre muitos outros, o caso de Maria de Sousa (1939-2020), imunologista e poeta, “desarrumada” por quem contribuiu para o seu percurso na incessante busca do saber. Publicou, em 1988, juntamente com Agostinho da Silva, outra figura ímpar da nossa cultura, A Hora e a Circunstância. Fora do nosso país, pensamos em Rebecca Elson (1960-1999), astrónoma e poeta, precocemente desaparecida, avidamente explorando o mundo interno e o externo, não sem apontar diferenças significativas entre os contextos em que os desenvolveu. Em A Responsibility to Awe (2018) demonstra como o universo poético e as hipóteses científicas encontram na imaginação o leito fértil para fecundarem. Finalmente, e porque concebemos o feminismo como um modo afirmativo de estar no mundo em igualdade, pressupondo isso, sempre que possível, a inclusão, não podemos deixar de recordar Rómulo de Carvalho/António Gedeão (1906-1997), o professor/poeta/investigador que nos legou uma extensa obra poética, a par do seu trabalho de físico, químico e historiador. Vale a pena fruir a sua Poesia Completa (1997) ilustrada por Júlio Pomar.

Os exemplos acima mostram como o encontro entre ciência e poesia, ou ciência e arte, longe de constituir realidades independentes, fortifica-as, estimulando os processos de criação e a capacidade interpretativa.

Este número de Faces de Eva agrega um conjunto de textos em que as questões relacionadas com a inserção das raparigas e das mulheres nas tecnologias são particularmente salientadas, não apenas identificando o papel preponderante que tiveram nos primeiros tempos da computação, como contando a história da sua exclusão quando essa área se tornou altamente valorizada e reconhecida e foi apropriada por quem detinha o poder, situação ainda hoje difícil de inverter.

A importante contribuição das mulheres nesta área está bem explícita no filme de Theodore Melfi (2017) Hidden Figures, que, baseando-se numa história verídica ocorrida na década de 1960, evidencia o papel de três pioneiras, exímias matemáticas afro-americanas, a trabalhar na NASA. Apesar do seu contributo valioso, eram mulheres, e mulheres negras, o que as confinava a uma zona exclusiva “West Computing”, sem acesso aos recursos das mulheres brancas. É um filme verdadeiramente impressionante que põe a nu a política da segregação racial, mas também a menorização das mulheres, ao mesmo tempo que evidencia a sua força, persistência e determinação na construção de um projecto de dimensão inquestionável como o dos voos espaciais.

Muitos dos artigos que aqui publicamos referem a necessidade de voltar a abrir este campo às mulheres, sendo que há unanimidade na importância de acções de estímulo e de incentivo para que as raparigas se sintam atraídas pelas áreas tecnológicas, de onde foram excluídas por astúcia do poder masculino. A preocupação com essa assimetria exige acções concretas que uma simples aritmética dos dados reconhece como fundamental. Senão, vejamos: dados actualizados na Pordata, a 3 de Agosto de 2021, referem a existência de 87 733 diplomados no ensino superior, em 2020, sendo 51 200 (58,4%) mulheres e 36 533 (41,6%) homens. No entanto, na área das TIC (Tecnologias de Informação e de Comunicação) essa correspondência desequilibra fortemente em desfavor das mulheres. Isto é, num total de 6930 diplomados na área, 5534 (79,9%) são homens e 1396 (20,1%) mulheres. As razões para um tão grande fosso serão múltiplas, mas o efeito de internalização de estereótipos de género não lhes será estranho, e a verdade é que os modelos de identificação não abundam, porque maioritariamente masculinos. Uma socialização assim construída molda a plasticidade cerebral no sentido do estereótipo, e as raparigas não se sentem atraídas para a área. É preciso inverter esse mecanismo de auto-alimentação, por meio de acções e de práticas muito dirigidas, em que a intervenção de modelos, relatando as suas próprias experiências, parece esbater sentimentos de incapacidade, através de processos de identificação.

O mundo STEM (Ciência, Tecnologia, Engelharia e Matemática), apesar de sempre ter contado com mulheres que se evidenciaram em vários domínios do saber, está hoje muito mais rico, integrando no seu seio mulheres cientistas que têm desenvolvido um trabalho criativo de expressão das suas áreas, captando diferentes faixas etárias e identidades de género e percebendo que a diversidade amplia o conhecimento e que o respeito pelos direitos de todos os humanos nos torna seres mais capazes e mais sabedores.

Não sendo esta uma revista temática, procurámos que alguns dos textos nela publicados incidissem sobre a área sugerida pela figura de capa e acabou por ser esse o sentido desta Nota de Abertura, fazendo jus à ideia de que a escrita se nos impõe ao invés de a conseguirmos manipular. Por isso, são necessárias umas palavras finais para os outros textos aqui apresentados, todos contribuindo para o enriquecimento dos Estudos sobre as Mulheres, quer na sua acepção mais teórica, quer no conhecimento das mulheres concretas, sem o qual o conhecimento científico seria árido e, porventura, inútil.

A curiosidade e a persistência estão presentes em muitas situações apresentadas ao longo dos textos deste n.º 46 da revista Faces de Eva e são, seguramente, características da sua equipa, que a tem mantido viva ao longo dos últimos 22 anos.

Referências bibliográficas

Elson, R. (2018). A responsibility to awe. Carcanet Press. [ Links ]

Gedeão, A., & Pomar, J. (1997). Poesia completa. Edições João Sá da Costa. [ Links ]

Lovelace, A. A. (n. d.). Sonnet - The rainbow. https://en.wikisource.org/wiki/Page:Ada_Lovelace_sonnet_The_Rainbow_Somerville_College.JPGLinks ]

Melfi, T. (Dir.) (2017). Hidden figures (Film). 20th Century Fox. [ Links ]

Sousa, M., & Silva, A. (1988). A hora e a circunstância (The time and the circumstance). Gradiva. [ Links ]

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