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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.46 Lisboa Dec. 2021  Epub Feb 04, 2022

https://doi.org/https://doi.org/10.34619/ihez-ttp0 

Estudos

Escrita e narrativa na estratégia de emancipação da personagem Lenù na tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Writing and narrative in the emancipation strategy of the character Lenù in the Elena Ferrante’s Neapolitan Novels

Cristina Carneiro de Menezes1 

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1069-061 Lisboa, Portugal


Resumo

A tetralogia napolitana de Elena Ferrante, publicada entre 2011 e 2014, em Itália, foi traduzida em diversos países e rapidamente espalhou-se pelo mundo, popularizando e pautando debates entre leitores, especialmente no público feminino, a partir da história de vida e de amizade de Lila e Lenù. Neste estudo, analiso a estratégia de emancipação de Lenù por meio da sua trajetória com a escrita.

Palavras-chave: escrita; Elena Ferrante; narrativa; identidade narrativa; sujeito situado

Abstract

Elena Ferrante’s Neapolitan Novels were published between 2011 and 2014, in Italy, and quickly spread across the world in a very comprehensive way, popularizing and guiding debates among readers, especially the female audience, based on the story of friendship between Lila and Lenù. With this study, I analyze the strategy for the emancipation of the character Lenù, within the framework of writing and narrative.

Keywords: writing; Elena Ferrante; narrative; narrative identity; situated self

Desde que foi publicada em Itália, a partir de 2011, a tetralogia napolitana, da escritora italiana Elena Ferrante, foi-se tornando cada vez mais popular, tanto no campo do entretenimento quanto no campo académico. Nos anos mais recentes, tornou-se um fenómeno mundial. Traduzido em mais de quarenta países, vendido em mais de cinquenta, o romance, composto por quatro volumes, já resultou no documentário Ferrante Fever, realizado em 2017, e numa adaptação televisiva produzida pelo canal americano HBO, em 2018. Foi a primeira adaptação do canal não falada em inglês, mas em italiano e napolitano. Mesmo sendo uma obra recente, o romance tem já sido objeto de pesquisas em universidades de diferentes países.

Sabe-se que Elena Ferrante é italiana e que se graduou em Letras Clássicas, mas esse é o pseudónimo da autora que se mantém “ausente”, como ela mesma afirma (Ferrante, 2017), desde que publicou seu primeiro livro, em 1992, L’Amore Molesto. Por mergulhar muito honestamente no universo feminino, a obra de Ferrante é denominada por leitores e críticos como uma obra feminista, o que a autora não considera exatamente, alegando que os seus romances refletem sua experiência de vida e sua formação (Ferrante, 2017).

Os quatro volumes que compõem a tetralogia - A Amiga Genial (2014); História do Novo Nome (2015b); História de Quem Vai e de Quem Fica (2015a); e História da Menina Perdida (2016) - contam a vida, da infância à velhice, das amigas Elena Greco (Lenuccia/Lenù) e Rafaella Cerullo (Lina/Lila). Narrada em primeira pessoa pela personagem Lenù, o romance começa em 2011, quando Lila desaparece sem deixar rastos, e Lenù, já com 66 anos, rememora toda a história de vida delas, a fim de não deixar a amiga apagar a própria vida.

Lila e Lenù nascem num bairro pobre de Nápoles, em Itália, no pós-Segunda Guerra, num ambiente que ainda enfrentava os resquícios do fascismo, mas que, ao mesmo tempo, passava por profundas transformações sociais, educacionais, culturais e económicas. Conhecem-se na escola, ficam amigas e alimentam o desejo comum de sair do bairro onde vivenciam e acompanham as violências e opressões de uma sociedade marcada pelo sexismo, pelo machismo e pela misoginia. Com o tempo, as amigas seguem caminhos diferentes.

Para além da tetralogia napolitana, é central na obra de Elena Ferrante a experiência das mulheres e seus enfrentamentos sociais e subjetivos. Através das relações intersubjetivas de suas personagens - mãe e filha, entre amigas, mulher e amante -, Ferrante esquadrinha as tentativas de suas protagonistas para superarem um modelo de mulher. Como a própria autora define, suas personagens procuram romper com o modelo de ser mulher de suas mães e avós, mas topam com “velhos fantasmas, os mesmos com os quais as mulheres do passado se depararam” (Ferrante, 2017, p. 219). No entanto, as protagonistas de Ferrante não suportam passivamente, como suas mães e avós, os tais fantasmas: “Lutam e dão conta deles. Não vencem, mas simplesmente chegam a um acordo com as próprias expectativas e encontram novos equilíbrios” (Ferrante, 2017, p. 219).

As protagonistas da tetralogia napolitana, Lila e Lenù, são assim, não suportam passivamente o que lhes parece posto pelo bairro onde vivem. A professora de Literatura da Università per Stranieri di Siena, a napolitana Tiziana de Rogatis (2018), define a história de Lila e Lenù como uma parábola de sobrevivência, não de vitimização, uma vez que as amigas desenvolvem formas criativas de resistência. “(...) Ferrante fashions from their story a parable of survival, not of victimhood. The pathos of the victim is actually exorcized by the two friends’ complexity and by their fictional representation as women (...)” (Rogatis, 2018, Introduction, tópico 4, 1 par).

Diante disso, a partir da trajetória da protagonista que narra, este estudo pretende analisar a estratégia de emancipação de Lenù, que, ao resistir ao que lhe é posto como expectativas sociais, procura criar sentido para sua vida, dando uma ordem narrativa aos acontecimentos. Constrói, assim, sua identidade e sua subjetividade tendo a escrita como um meio de elaboração.

A escrita feminina

Pelo facto de Elena Ferrante usar um pseudónimo e se manter sempre ausente, há diversas especulações sobre a verdadeira autoria da tetralogia napolitana. Há quem acredite, como Karen Bojar (2018), autora do livro In Search of Elena Ferrante, que os volumes sejam escritos a quatro mãos, a partir da hipótese de que Elena Ferrante seria Anita Raja, uma tradutora que colabora com a editora que publica Ferrante em Itália, e também companheira do escritor italiano Domenico Starnone, com quem teria escrito os volumes da obra. Estudos revelaram que os estilos de escrita deles, ao compararem os textos de Ferrante com os de outros escritores italianos, são os mais semelhantes entre si (Tuzzi & Cortelazzo, 2018). A incredulidade em torno da verdadeira autoria da tetralogia revela um preconceito machista que a própria autora comenta:

Ouviu alguma vez, nos últimos tempos, a propósito de livros escritos por homens: são livros escritos por uma mulher ou um grupo de mulheres? (…) Somos talentosas, menos talentosas, talentosíssimas, mas apenas dentro do perímetro reservado às pessoas do sexo feminino, ou melhor, reservado a temas e tons que a tradição masculina considera próprios do gênero feminino. (…) Quando se tornará senso comum que sabemos pensar, sabemos contar histórias, sabemos escrever tão bem, ou até melhor, do que os homens? (Ferrante, 2017, pp. 360-361)

A inscrição de determinado género na escrita é um dos debates da crítica feminista. Afinal, que elementos estão contidos numa escrita para que se saiba ser praticada por uma mulher? Para a feminista francesa que cunhou o termo écriture fémine, Hélène Cixous (1976), é impossível definir uma prática feminina de escrita, mas a impossibilidade de a definir não significa que não exista.

Nelly Richard (2002), teórica cultural franco-chilena, é mais assertiva. Para ela, a neutralidade diante da diferença genérico-social da escrita e da linguagem é como reforçar a manutenção da masculinidade hegemónica como poder estabelecido. “A linguagem, a escrita literária e as normas culturais carregam as marcas deste operativo de violência sociomasculino, que subordina os textos a suas viciadas regras de universalidade” (Richard, 2002, p. 131). Richard conceptualiza, independente de género, a “feminização da escrita”, “que se produz a cada vez que uma poética, ou uma erótica do signo, extravasa o marco retenção/contenção da significação masculina com seus excedentes rebeldes (…), para desregular a tese do discurso majoritário” (Richard, 2002, p. 133).

Para Elaine Showalter (2002), a escrita é uma forma de sair do espaço patriarcal. Ao definir o “território selvagem” como um espaço que resta, ainda não descodificado pela estrutura dominante (masculina) da linguagem, Showalter acredita que seja esse o “lugar de linguagem revolucionária das mulheres” (Showalter, 2002, p. 68). Ao entrar nesse “território selvagem”, uma mulher pode descodificá-lo pela linguagem, pela escrita, entrar no discurso e transformá-lo, criando uma nova forma de estar no mundo, fora do espaço patriarcal.

A inscrição da experiência feminina dá-se, na tetralogia napolitana, em muitos níveis, tanto textual como extratextualmente. A primeira camada da intrincada experiência feminina na obra se dá ao considerarmos que Elena Ferrante seja, de facto, uma mulher que apenas optou por não participar da “praxe editorial” (Ferrante, 2017). Segue-se a isso a criação de duas personagens femininas que trazem características da autora ausente: Lenù, ou melhor, Elena Greco, que, no desenrolar da trama, torna-se escritora, assina o mesmo nome escolhido como pseudónimo pela autora ausente, e é quem escreve e narra a história das amigas; e Lila, que desaparece, mas tem sua história rememorada na escrita de Lenù, que se vinga escrevendo, para não deixar escapar Lila, a personagem que, no final, ausenta-se.

Ao entrelaçar as características das personagens com as da autora ausente, Elena Ferrante deposita tudo na conta da escrita, como se a escrita fosse o que pudesse revelar algo, revelar o que tem de ser revelado, como se a escrita falasse por si só. Conforme ela enfatiza sobre o que os livros têm a dizer quando indagada sobre sua ausência: “Acredito que, após terem sido escritos, os livros não precisam dos autores para nada. Se tiverem algo a dizer, encontrarão, mais cedo ou mais tarde, leitores; caso contrário, não” (Ferrante, 2017, p. 12).

Na narrativa da tetralogia, a escrita de Lenù (Elena Greco ou Elena Ferrante?) revela à Gigliola a inscrição da experiência de uma mulher. Gigliola, contemporânea de Lenù na escola, ao comentar sobre o primeiro livro escrito pela protagonista, é levada a crer que o que está lá escrito tenha sido vivido por Lenù, que nega e diz que foi a personagem quem viveu - uma criação imaginativa - o que está escrito. Gigliola, no entanto, argumenta definitiva: “‘Sim, mas escreveste-as muito bem, Lenù, tal e qual como acontecem, com a mesma porcaria. São segredos que só se conhecem se formos mulheres’” (Ferrante, 2015b, p. 68).

Resistência: smarginatura/desmarginação e frantumaglia

Vivendo no ambiente violento do pobre bairro napolitano, Lila e Lenù alimentam o desejo de sair do bairro pelos estudos. Sair do bairro, para elas, significava se libertar da realidade violenta de Nápoles, significava furtar-se ao destino das mulheres do bairro. Mas, quando Lila é impedida pela família de dar continuidade aos estudos, as amigas passam a seguir caminhos diferentes. Lila segue a vida no bairro: casa-se aos 16 anos, passa a trabalhar no comércio, sofre violência doméstica, torna-se mãe, tem uma vida difícil a trabalhar numa fábrica de Nápoles. Ela nunca sai da cidade. Lenù segue os estudos e, em seguida, sai de Nápoles, passa por uma formação académica em Pisa, começa a escrever; depois, ao casar-se, vive em Florença. Já adulta, separada do primeiro marido e com duas filhas, retorna a Nápoles, mas torna a ir embora da cidade natal para viver em Turim.

Com caminhos de vida tão diferentes, as amigas desenvolvem estratégias singulares de resistência. As formas como lidam com as dificuldades existenciais são representadas por dois fenómenos distintos, que representam os sintomas psíquicos e físicos de suas inquietações: a smarginatura ou desmarginação, no caso de Lila, e a frantumaglia, no caso de Lenù. A smarginatura ocorre textualmente na tetralogia e é traduzida como “desmarginação”. O termo frantumaglia não ocorre textualmente na tetralogia. É um termo definido por Elena Ferrante (2017) no livro La Frantumaglia, utilizado aqui por analogia para compreender a estratégia de resistência de Lenù neste estudo.

Smarginatura/Desmarginação

A desmarginação é um estado físico e psíquico descrito por Lenù ao testemunhar Lila em determinados episódios da história, quando geralmente está a passar por alguma situação-limite. A primeira menção à desmarginação de Lila ocorre na festa da passagem do ano de 1959 para 1960. As amigas reúnem-se com as pessoas do bairro quando Lila dá sinais físicos de que algo está a ocorrer: “O coração batia-lhe descontroladamente. Começou a sentir aversão pelos gritos que saíam das gargantas de todos (...), como se aqueles sons obedecessem a leis novas e desconhecidas” (Ferrante, 2014, pp. 69-70). Esse estado se repete outras vezes, por exemplo, quando Lila está a sofrer pressões na fábrica onde trabalha e quando do terremoto do dia 23 de novembro de 1980.

Embora Lila nunca tivesse saído do bairro, ela tinha consciência de si e não suportava passivamente as opressões. “Desde criança, essa personagem já entendia a dimensão dos conflitos sociais em seu bairro” (Silva & Brunello, 2019, p. 215). Irrequieta e impermanente, Lila vivia num movimento de fluxo, de vai-e-vem, de vontade de expansão, como bem descrevem Silva e Brunello:

Mesmo apenas com a quinta série do fundamental, Lila é capaz de grandes saltos, porém sempre num movimento de vai-e-vem, de construção e desconstrução, em que seus passos são incertos e carregados de sedução, malícia e ambiguidade. Seja desenhando sapatos, vivendo com as mordomias de gerente, trabalhando como operária em uma fábrica de embutidos ou operando o Sistema 3 da IBM (uma inovação para a época), Lila demonstra excelência, como se entendesse toda a lógica dos ofícios. Uma lógica, no entanto, para a qual ela nega clareza, permanência ou redenção em suas atitudes. (Silva & Brunello, 2019, pp. 215-216)

Lila negava clareza, mas, ao encontrar-se em situações-limite, não aguentava a pressão sobre si e como que se evadia física e mentalmente, em experiências de desmarginação, perdendo os contornos. Quando Lenù narra as experiências de desmarginação de Lila, descreve-as como se a amiga perdesse o controlo para, em seguida, ganhar novo fôlego e consciência, uma maneira de se expandir.

A desmarginação é um fato pontual no âmbito da narração, é uma espécie de revelação individual por que passam as personagens de Ferrante, remetendo ao desejo de fuga, de escape desde condições subjetivas e existencialistas até de condições econômicas, políticas, culturais e sociais. Ela se dá até mesmo por vias de sintomas físicos e psíquicos, como uma nova tomada de consciência de que é preciso resistir, persistir ou abandonar a si e aos outros. (Silva & Brunello, 2019, pp. 213-214)

Frantumaglia

Lenù tem sintomas diferentes em situações-limite. Ela ganha novo fôlego e resiste procurando dar uma coerência, um sentido para o caminho que a vida toma, ou, pelo menos, uma ordem narrativa a partir do estado de desconforto que sente, ao qual faremos a analogia com a frantumaglia, um estado de desordem que Ferrante (2017) aprendeu a nomear com a sua mãe e que define no livro com entrevistas e correspondências intitulado La Frantumaglia:

Minha mãe me deixou um vocábulo do seu dialeto que ela usava para dizer como se sentia quando era puxada para um lado e para o outro por impressões contraditórias que a dilaceravam. Dizia que tinha dentro de si uma frantumaglia. A frantumaglia (ela pronunciava frantummalha) a deprimia. (…) Era a palavra para um mal-estar que não podia ser definido de outra maneira, remetia a um monte de coisas heterogêneas na cabeça, detritos em uma água lamacenta no cérebro. A frantumaglia era misteriosa (…), estava na raiz de todos os sofrimentos que não podiam ser atribuídos a uma razão única e evidente. (Ferrante, 2017, p. 105)

Para Ferrante, a frantumaglia é a matéria-prima da narrativa e compele à escrita. “O ato da escrita é a passagem contínua daquela frantumaglia de sons, emoções e coisas à palavra e à frase, à história de Delia, Olga, Leda, Lenù [todas personagens de livros de Ferrante]” (Ferrante, 2017, p. 309).

Periodicamente, Lenù vivencia o estado de frantumaglia. Em situações-limite ou depois de alguns acontecimentos relevantes, Lenù sente-se mal, fica meio deprimida, como se a realidade lhe escapasse, como se não conseguisse encontrar um sentido. Esse mal-estar, essa angústia, dão-se de várias formas. Por vezes, em forma de dúvida, por não saber se todo o seu esforço estudantil vai resultar no que deseja para si; por vezes, sente-se angustiada por não conseguir compreender as atitudes de Lila; ou sente-se inquieta por, mesmo tendo saído do bairro, ainda carregar as marcas do dialeto napolitano na linguagem; ou angustia-se com a tentativa de conciliar a vida familiar com a profissional; ou sente-se confusa com a insegurança de, mesmo com todo o esforço e dedicação com relação aos estudos, às leituras e à escrita, ainda não estar completamente segura de seu trajeto como escritora.

Ao experimentar tais oscilações repetidas vezes, Lenù procura fazer uma síntese dos acontecimentos, do que aprendeu, a fim de compreender o estado das coisas para seguir adiante. É como uma tentativa de superar um determinado modelo de estar no mundo e encontrar ou inventar uma nova trilha, uma nova forma de lidar com as questões, qualidade essencial das personagens de Ferrante, que vivem numa oscilação “entre uma arraigada adesão às expectativas masculinas e os novos modos de ser mulher” (Ferrante, 2017, p. 386).

(…) o eu feminino, que, com sua longuíssima história de opressão e repressão, tende, revoltando-se, a se estilhaçar, a se recompor e a se estilhaçar novamente de maneira sempre imprevista. As histórias se nutrem desses fragmentos que espreitam sob uma aparência unitária e que constituem uma espécie de desordem original, de opacidade a ser iluminada. Histórias e personagens vêm daí. (Ferrante, 2017, pp. 347-348)

Diante disso, podemos deduzir que as oscilações e as inquietações de Lenù para dar uma coerência e um sentido aos acontecimentos são similares ao estado de frantumaglia descrito por Ferrante (2017). É um estado anterior - é um antes - que acaba por impulsionar Lenù a escrever para dar ordem, coerência, sentido, para conseguir seguir seu caminho, tal como descreve:

Uma manhã comprei um caderno quadriculado e comecei a escrever na terceira pessoa o que me acontecera naquela noite na praia ao pé de Barano. Depois, ainda na terceira pessoa, escrevi o que me acontecera em Ischia. Depois falei um bocado de Nápoles e do bairro. (...) Levei vinte dias a escrever aquela história, um lapso de tempo durante o qual não vi ninguém, saía apenas para ir comer. No fim reli algumas páginas, não gostei e desisti. Mas entretanto achei-me mais calma, como se a vergonha tivesse passado de mim para o caderno. (Ferrante, 2015a, p. 342)

A relação de Lenù com a escrita é uma questão de existência. Desde a adolescência, escrever para ela era como existir. Ao enviar um texto para ser publicado numa revista, Lenù narra sua espera: “Estava intimamente convencida de que só existiria realmente a partir do momento em que o meu nome aparecesse impresso, Elena Greco, e ia vivendo na expectativa desse dia (...)” (Ferrante, 2014, p. 243). Ao saber da não publicação do texto na revista, Lenù como que perde as esperanças: “considerara a publicação daquelas linhas, e a minha assinatura impressa, o sinal de que eu tinha realmente um destino, que a canseira de estudar me elevava, sem dúvida, a algum lugar (…)” (Ferrante, 2014, p. 263). Lenù queria tecer um destino pela escrita; através da escrita ela entraria no discurso, existiria no mundo a seu modo.

O processo narrativo para uma nova forma de estar no mundo

Ao acompanhar a narrativa da tetralogia e de como Lenù vai tecendo sua história de vida - sob o subterfúgio de não deixar Lila desaparecer sem deixar rastos -, é possível perceber como ela vai se construindo como sujeito, vai se retirando de alguns espaços discursivos, entrando em outros, tentando acomodar em sua trajetória o bairro, Lila e sua família.

Assim, a narradora dá ordem ao seu estado de frantumaglia através da escrita; transforma em linguagem o “território selvagem” (Showalter, 2002), procura encontrar um jeito singular de estar no mundo, e, ao fazer isso, inventa o seu destino. Torna-se sujeito da própria vida, mas não um sujeito da Modernidade - masculino, estável, uno, absoluto, racional -, tampouco um sujeito fragmentado, pulverizado e descentrado do pós-modernismo. Lenù constrói sua subjetividade e sua identidade tecida pela narrativa de vida de um sujeito situado. Desse modo, é possível pensar o processo de construção da subjetividade e da identidade de Lenù a partir de dois conceitos: identidade narrativa, de Paul Ricœur, e sujeito situado, de Seyla Benhabib.

Paul Ricœur, ao propor uma terceira via entre o sujeito da Modernidade e o sujeito pulverizado do pós-modernismo, conceptualiza uma forma de identidade que “só se pode estabelecer de modo narrativo”, uma vez que a identidade “não é estática, mas construída ao longo do tempo e num perpétuo diálogo com a alteridade” (Fernandes, 2008, p. 79). Para o pensador, uma identidade narrativa é “uma subjectividade capaz de construir continuamente histórias sobre si própria, esforçando-se, em especial, por enfrentar/conferir sentido ao inédito (e, por isso, surpreendente), enquadrando-o na sua história pessoal” (Fernandes, 2008, p. 81).

Na tetralogia napolitana, Lenù, ao tentar contar a história da amiga desaparecida, narra a própria vida, sempre em diálogo central com Lila, a alteridade principal, de quem Lenù aproxima-se, afasta-se, com quem se compara, a quem, por vezes, procura superar, e, por vezes, procura integrar em sua trajetória. Segundo Ricœur, “a identidade narrativa não é uma identidade estável e sem falhas”, é “oriunda da retificação sem fim de uma narrativa anterior por uma narrativa ulterior, e da cadeia de refigurações que daí resulta” (Ricœur, 1985, p. 427). Lenù, ao logo dos quatro volumes, vai refigurando a presença de Lila em sua vida.

Desse modo, o processo de construção da identidade narrativa é um processo de vida inteira. Esse movimento “é uma luta pela autenticidade da existência, pela construção de ideais/projectos de vida que tornem um percurso individual de existência digno de ser vivido pelo próprio, em que o mesmo se reveja” (Fernandes, 2008, p. 93) e, assim, ser possível criar novos modos de ser.

A filósofa feminista Seyla Benhabib também defende a ideia de uma narrativa de vida inteira para a construção da subjetividade, de um modelo narrativo de identidade: “esta é uma tarefa interminável, pois a narração é também um projeto de recordação e resgate. Só podemos mais ou menos resgatar, mais ou menos recontar aquelas memórias entranhadas no corpo” (Benhabib, 2017, p. 160).

A proposta de modelo narrativo de Benhabib é sustentada pela materialidade e pela corporeidade de um sujeito situado, capaz de agenciar a sua vida, autodeterminar-se e desafiar a sua situação para construir a própria identidade, inserindo-se numa rede de relações, nem sempre harmoniosas. O “sujeito situado” procura integrar os seus atos em uma biografia coerente. Ao contrário da lógica pós-moderna, que, ao propor um tipo de sujeito descentrado e pulverizado, ignora as demandas por coerência e estabilidade próprias da subjetividade, Benhabib defende a legitimidade da procura por coerência e a tentativa de dar significado à trajetória de vida.

Teorias da subjetividade fragmentária e dispersa, que estiveram tão em voga no auge do pós-modernismo, ignoraram essas demandas por estabilidade e compreensão. Pensou-se que a dispersão do sujeito - sim, com efeito, a “morte” do sujeito - era algo bom. Porém, a busca por coerência em um mundo material e cultural cada vez mais fragmentário e a tentativa de gerar significado a partir das complexidades das histórias de vida não são erradas, nem injustas, nem sem significado. (Benhabib, 2017, p. 165)

Negar à mulher a possibilidade de se construir como sujeito, em favor de uma ideia de sujeito pulverizado e impessoal, próprio do pensamento pós-moderno, é como negar a história de opressão e invisibilidade vivida pelas mulheres ao longo do tempo. É como tirar das mulheres a possibilidade de se ter um sujeito político pelo qual reivindicar direitos para suplantar as opressões vividas e, ainda, é como se as mulheres estivessem a perder a chance de simbolizar a questão existencial durante tanto tempo apropriada livremente pelo sujeito masculino, universal e hegemónico, inclusive através dos tais grandes relatos.

Sobre isso, Nelly Richard (2002) aponta um detalhe importante sobre a pulverização do sujeito, que ocorre justamente quando as mulheres começam a tornar-se autónomas de maneira mais ampla na sociedade:

(...) é suspeita a coincidência que leva a pós-modernidade a certificar a dissolução da identidade e do sujeito, justo quando as conquistas teóricas e políticas do feminismo permitem garantir certas condições de autodefinição para as mulheres, o que as converte, por fim, em sujeitos, em atores de si mesmas. (Richard, 2002, p. 158)

Ainda assim, Richard (2002) acredita que a implosão do sujeito moderno impulsionou o feminismo a repensar o feminino a partir de uma perspetiva plural.

A implosão do sujeito e os descentramentos do eu, que a teoria contemporânea radicalizou em sua demanda anti-humanista da “morte do sujeito” (ao menos, da morte do ego transcendental da racionalidade metafísica), exigem do feminismo repensar a identidade sexual, já não mais como a auto-expressão coerente de um eu unificado (o “feminino” como modelo), mas como uma dinâmica tensional, cruzada por uma multiplicidade de forças heterogêneas que a mantêm em constantes desequilíbrios. (Richard, 2002, p. 138)

No sujeito situado de Benhabib não há linearidade e plena harmonia, o que há é a capacidade do sujeito de, a partir de sua capacidade de fazer escolhas, rememorar e reconfigurar a sua trajetória num processo de ressignificação permanente.

A construção da identidade de Lenù e sua formação como sujeito seguem essa perspetiva de pluralidade de formas de existir, revelando-se um movimento incessante, de rememorações, de reconfigurações, tal como colocam Ricœur e Benhabib. A possibilidade de construir a identidade e se formar como sujeito a partir da retomada da materialidade, da ação, da narrativa e das reconfigurações constantes parece ser uma via possível para o feminismo, ou para uma experiência de natureza feminista.

Lenù e Lila são a expressão dessas identidades plurais, que não são essencialistas mas que sofrem as opressões de uma sociedade sexista, machista e misógina. Elena Ferrante dá voz a essas subjetividades que traçam seus caminhos e tecem suas identidades, com instabilidades, por vezes, fragmentadas, mas que são elaboradas, simbolizadas e capazes de criar novas formas de estar no mundo.

Considerações

Comecei este estudo falando sobre a popularidade que a tetralogia de Elena Ferrante alcançou em pouco tempo de publicação. A autora, ao mostrar, de maneira muito honesta, como as duas amigas respondem, cada uma a seu modo, aos efeitos das opressões sociais sobre suas trajetórias marcadamente femininas, faz com que essas experiências sejam reconhecidas, especialmente pelas leitoras, do mesmo modo que Gigliola reconheceu, no livro de Lenù na trama, as experiências que só as mulheres vivem.

Judith Butler afirma:

Os impulsos feministas (...) emergem do reconhecimento de que a minha dor, o meu silêncio, a minha raiva ou a minha percepção não são mais apenas meus, e que isso me coloca em uma situação cultural compartilhada que acaba por me capacitar e empoderar de maneiras que eu não tinha previsto. (Butler, 2019, p. 218)

Há na fala de Butler esse reconhecimento de que partilhamos alguma experiência em comum, embora tenhamos formas diferentes de responder a essa condição social. Lenù parte da sua experiência individual também para pensar uma dimensão social maior de sua condição e da condição experimentada por outras mulheres. Ao descrever o que discutia nos lançamento de seus livros, ela diz:

(...) espontaneamente, transformava pequenos eventos privados em reflexão pública. Todas as noites improvisei com sucesso, partindo da minha experiência. Falei do mundo de que provinha, da miséria e da degradação, das fúrias masculinas e também femininas (...). Contei que observara na minha mãe e nas outras mulheres, desde miúda, os aspectos mais humilhantes da vida familiar, da maternidade, da sujeição aos homens. (...) Falei da relação difícil com os grupos feministas de Florença e de Milão, e ao fazê-lo uma experiência que subvalorizara tornou-se inesperadamente importante, descobri em público o que tinha aprendido por assistir àquele esforço doloroso de sondagem. (Ferrante, 2016, p. 45)

Lenù, ao falar de suas experiências pessoais, situa-se como sujeito que usa a sua narrativa para entrar no discurso e transformar seu estar no mundo. Ao escrever para que Lila não desaparecesse, Lenù conta a história de muitas mulheres. E, no final, a tetralogia, mesmo com sua autora ausente, fala por si, ou melhor, pela escrita, pela linguagem, esse espaço comum onde as mulheres parecem se reconhecer.

Referências bibliográficas

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Recebido: 04 de Janeiro de 2021; Aceito: 29 de Outubro de 2021

Cristina Carneiro de Menezes. Mestre em Estudos sobre as Mulheres - As mulheres na sociedade e na cultura; doutoranda em Estudos de Género. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1069-061 Lisboa, Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2901-302X Email: crica.carneiro@gmail.com

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