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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.46 Lisboa dez. 2021  Epub 04-Fev-2022

https://doi.org/10.34619/iivv-sj09 

Estado da Questão

Associação Feministas em Movimento

Elisabete Brasili  ii 

1iUniversidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, Portugal

2iiSócia fundadora e dirigente da associação Feministas Em Movimento, Portugal


A violência contra as mulheres, doméstica e de género, domina os nossos quotidianos, marcando milhares de vidas, em particular de mulheres e crianças.

Falar de violência contra as mulheres é falar de violência de género, de quotidianos marcados pela discriminação, faces visíveis de desigualdades arraigadas, de subalternidades culturalmente acomodadas, de ciclos de transgeracionalidade violenta que teimosa e (in)conscientemente não se quebram; de violências que não quedam e nas quais as mulheres são alvo misógino.

Sabemo-la uma violência estrutural; porém, o conhecimento cientificamente balizado das suas causas tem permitido uma melhor adequação de estratégias de ação, políticas públicas, atuações mais articuladas, bem como a melhoria de respostas e legislação. Ou seja, potenciar menor revitimização, maior prevenção, com um objetivo a concretizar: eliminar a violência de género e contra as mulheres, alcançar a igualdade de género.

Ora, foi no pensar possível e na imperiosa necessidade de agir, de dar um contributo para a operacionalização da igualdade de género que a FEM - Feministas Em Movimento - Associação surgiu, ensaiada por um conjunto de doutorandas do primeiro Curso de Doutoramento em Estudos de Género em Portugal, muitas delas também ativistas, a cujas vontades se aliaram outras tantas mulheres com percursos, lutas, academias e ativismos diversos ou mesmo comuns. O objetivo foi o de cruzar academia e ativismos, articulando investigação-ação, intervenção que pudesse acrescer, um pouco mais, à luta que há muito se trava rumo à igualdade.

O ano de 2019 marcou, assim, o surgimento da FEM - Feministas Em Movimento, uma associação de motivações e pertenças plúrimas, diversas e interseccionadas, na qual as suas sócias fundadoras, ativistas e/ou académicas, pugnam por Direitos Humanos. Comprometem-se a equacionar e aportar diferença ou soma na luta contra as desigualdades, as discriminações de género e a violência contra as mulheres, bem como em participar no longo caminho ainda a percorrer pelos feminismos, pelas questões de género - feminismos que se posicionam como atuantes, em movimento, participantes, reivindicando soluções concretas para problemas sociais complexos vivenciados pelas mulheres (e, desta forma, por toda a sociedade) e pretendendo estar e fazer parte do ora e em diante, em igualdade; feminismos que não negam as subjetividades, que buscam na ação e pensamento crítico e científico o sedimento da mudança ainda a operar em matéria de género, de direitos das mulheres, de igualdade materializada, alicerçando-se na igualdade entre mulheres e homens, na igualdade de género, na não violência e não discriminação, seja qual for a sua forma ou manifestação, e de forma interseccional, buscando um mundo melhor1.

Na diversidade humana em que a FEM surgiu, uma das suas mais-valias residiu exatamente nesse entrecruzar de pensamento e ação, de origens, experiências, quotidianos, sentires e percursos pessoais e coletivos, de vivências e subjetividades múltiplas e pensamento crítico, para cujo aprofundamento entendem poder contribuir, afirmando-se como Feministas Em Movimento.

De então para cá, alguns fios teceram ação, sendo um deles uma resposta no apoio a pessoas vítimas de violência doméstica e de género, mais concretamente, uma estrutura de atendimento integrada na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica sob gestão técnica da FEM, com a identidade nominal Lisboa + Igualdade: atendimento e prevenção da violência doméstica e de género2.

Surgida em 2020 como resposta municipal, face ao recrudescimento expectado e constatado da violência contra as mulheres no espaço das intimidades durante o isolamento e estado de emergência decretado na decorrência da pandemia sanitária por SARS CoV-2, a Lisboa + Igualdade pretendeu ser um espaço de apoio e alternativa, uma valência que, conjugando esforços entre o município de Lisboa, a Universidade Nova de Lisboa e a FEM, respondesse a necessidades diagnosticadas em sede de reforço no atendimento e apoio direto a situações de violência doméstica e, concomitantemente, aprofundasse conhecimento científico sobre o impacto da covid-19 na violência nas relações de intimidade.

Não se pretendeu atender a novos problemas sociais, uma vez que se tratava de velhos problemas, ainda que envoltos em novas e diferentes roupagens, e que, como tudo indicava, aumentavam o risco e perigo para quem os vivenciava. Assim, num momento em que, na área da violência doméstica e de género, se acentuaram fragilidades, a Lisboa + Igualdade abriu portas, oferecendo atendimento presencial e apoio em situações de emergência decorrentes de violência doméstica. Por outro lado, era imperioso conhecer cientificamente os possíveis impactos que o confinamento social estava a ter na violência doméstica.

De facto, no contexto europeu e mundial, várias organizações não governamentais e estruturas oficiais com responsabilidade nesta matéria chamavam a atenção para o risco e mesmo a confirmação do aumento da violência doméstica contra as mulheres, assim como para a necessidade de se implementarem, complementarem e adequarem estratégias de informação, proteção e apoio às vítimas e sobreviventes de violência doméstica, uma exigência em Direitos Humanos.

Quanto a Portugal, à data em que a Estrutura de Atendimento Lisboa + Igualdade começou a operar, os estudos científicos nacionais sobre o impacto da pandemia nas relações de intimidade e sobre a violência que nestas ocorria em tempo de confinamento e isolamento social profilático eram inexistentes. Não obstante, fatores situacionais e contextuais, acrescidos ao conhecimento empírico e científico anterior sobre as dinâmicas das relações abusivas e prevalência da violência de género particularmente contra as mulheres, conduziam à tese de que o confinamento habitacional e o isolamento social poderiam influir nas relações entre as pessoas, potenciando o desencadear e/ou aumento da violência. Assim sendo, questionava-se se, nos casos de existência prévia de violência doméstica, a coabitação constante e permanente entre vítimas e agressores havia facilitado as estratégias de poder e controlo por parte destes, ou mesmo contribuído para o exponenciar da severidade dos atos violentos. Questionava-se também se esse confinamento e o estar permanente haviam contribuído para o desencadear de violências em relações que até então não eram por ela pautadas.

As hipóteses e interrogações conduziram à necessidade de aprofundar o conhecimento validado e de adequar soluções para problemas sociais identificados, tendo em conta o contexto específico vivenciado, nomeadamente por via da concretização de uma resposta social de investigação/ação financiada pela Câmara Municipal de Lisboa, a Lisboa + Igualdade. Era, pois, tempo de agir, garantindo atendimento telefónico e presencial personalizado a vítimas de violência doméstica, aumentando a resposta direta e presencial, prestando apoio nas saídas em situação de emergência, e ainda aliando conhecimento científico3 que confirmasse ou infirmasse dados administrativos existentes a nível internacional que descreviam um aumento das situações de violência doméstica contra as mulheres durante o período pandémico, informação que o conhecimento empírico das ONG portuguesas denunciava.

Dos fios a que acima aludimos e com os quais a FEM urdiu a sua ação, evidenciamos:

  • o inquérito sobre as Consequências da Crise Pandémica na Vida das Mulheres Professoras (FEM, 2020), estudo que pretendeu contribuir para a identificação das consequências da covid-19 na vida das mulheres professoras (a trabalhar em Portugal) e, ao mesmo tempo, sensibilizar as autoridades competentes e a sociedade em geral para as necessidades específicas destas mulheres, com vista à mitigação de aspetos negativos decorrentes das desigualdades de género;

  • a participação na elaboração do Guia de Requisitos Mínimos para Programas e Projetos de Prevenção Primária da Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica (CIG, 2020);

  • o projeto Feminismos antes do 25 de Abril de 1974, desenvolvido e financiado no âmbito da subvenção pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género às ONG de Mulheres. Neste projeto a FEM definiu como objetivos: afirmar a memória histórica da luta pelos direitos das mulheres; alargar o conhecimento sobre feministas e feminismos, em particular, antes do 25 de Abril; potenciar a conscientização em matérias de direitos de mulheres e igualdade; e homenagear feministas que nos antecederam na luta pelos direitos das mulheres (FEM, 2021).

  • a parceria no projeto de investigação IM Lab (Intersectionality Media Lab) - The Joacine Katar Moreira Case Study, do Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias;

  • a participação e dinamização em/de debates, seminários, conferências (2019, 2020, 2021).

Na cronografia da FEM, ainda que recente, sai realçada a importância da integração em parcerias, redes e trabalho em articulação e cooperação, designadamente:

  • Secção das ONG do Conselho Consultivo da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (Observadora);

  • Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica;

  • Redes Sociais de Lisboa e Almada;

  • Grupo de Coordenação do II Plano Municipal de Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres, Doméstica e de Género da cidade de Lisboa;

  • Rede Especializada para a Intervenção em Situações de Violência Doméstica e de Género de Lisboa;

  • Conselho Municipal para a Igualdade do município de Lisboa;

  • Rede de Apoio a Pessoas Idosas Vítimas de Violência Doméstica e Maus Tratos - RADAR, concelho de Almada;

  • e ainda a coorganização da Marcha do 25 de novembro em Lisboa, dia internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, e a participação nos “16 dias de ativismo feminista” (2019, 2020, 2021).

É um curto tempo, marcado por um contexto pandémico que acarreta vulnerabilidades a diversos níveis. Na área da igualdade, a realidade mostra que hoje a crise económica e social decorrente da crise pandémica tem implicações duríssimas nas vidas das mulheres, acentuando desigualdades. Não seremos, pois, demasiadas/os, para a transformação, ainda a elaborar, prosseguindo até que o amanhã se faça sem discriminações, desigualdades e violências.

A FEM agradece a todas as que a idealizaram e quantas/os diariamente a tornam possível, associadas/os, dirigentes, amigas/os da FEM, a todas/os quantas/os diariamente nela confiam e a apoiam na concretização de mais igualdade. Bem hajam.

Referências

Barbosa, J., Lima, R., Martins, G., Lanna, S., & Andrade, M. A. (s. d.). Interseccionalidade e outros olhares sobre a violência contra as mulheres em tempos de pandemia pela COVID-19. Disponível em: file:///C:/Users/elisa/Downloads/jeaninepacheco,+Interseccionalidade_violenciaContraMulher_Covid_preprint+Scielo_completo.pdfLinks ]

Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. (2020). Guia de requisitos mínimos para programas e projetos de prevenção primária da violência contra as mulheres e violência doméstica. Disponível em: https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2021/07/172-20_GUIA_REQUISITOS_MINIMOS.pdfLinks ]

FEM - Feministas Em Movimento. (2020). Consequências da crise pandémica na vida das mulheres professoras. Disponível em: https://fem.org.pt/2020/09/20/relatorio-fem-estudo-sobre-as-consequencias-da-crise-pandemica-na-vida-das-mulheres-professoras-em-portugal/Links ]

Fundo da População das Nações Unidas (UNFPA). (2020). COVID-19: Um olhar para o gênero. Disponível em: https://www.unfpa.org/resources/covid-19-gender-lensLinks ]

Lisboa, M., Barroso, Z., Patrício, J., & Leandro, A. (2009).Violência e género - Inquérito nacional sobre a violência exercida contra mulheres e homens. Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. [ Links ]

United Nations. (2020). Policy brief: The impact of COVID-19 on women. Disponível em: https://www.unwomen.org/sites/default/files/Headquarters/Attachments/Sections/Library/Publications/2020/Policy-brief-The-impact-of-COVID-19-on-women-en.pdfLinks ]

World Economic Forum. (2021). Global gender gap report 2021. Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2021.pdfLinks ]

1Adaptado dos Estatutos da FEM - Feministas Em Movimento, Associação.

2Contactos: lisboamaisigualdade@fem.org.pt 800 98 245 / 218 170 671 / 910 646 040.

3Para mais informações, consultar http://onvg.fcsh.unl.pt/projectos-do-onvg-fcsh-unl/

Aceito: 14 de Novembro de 2021

Elisabete Brasil. Doutoranda em Estudos de Género. Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Sócia fundadora e dirigente da associação Feministas Em Movimento. Email: elisabete.brasil@fem.org.pt

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