A violência contra as mulheres, doméstica e de género, domina os nossos quotidianos, marcando milhares de vidas, em particular de mulheres e crianças.
Falar de violência contra as mulheres é falar de violência de género, de quotidianos marcados pela discriminação, faces visíveis de desigualdades arraigadas, de subalternidades culturalmente acomodadas, de ciclos de transgeracionalidade violenta que teimosa e (in)conscientemente não se quebram; de violências que não quedam e nas quais as mulheres são alvo misógino.
Sabemo-la uma violência estrutural; porém, o conhecimento cientificamente balizado das suas causas tem permitido uma melhor adequação de estratégias de ação, políticas públicas, atuações mais articuladas, bem como a melhoria de respostas e legislação. Ou seja, potenciar menor revitimização, maior prevenção, com um objetivo a concretizar: eliminar a violência de género e contra as mulheres, alcançar a igualdade de género.
Ora, foi no pensar possível e na imperiosa necessidade de agir, de dar um contributo para a operacionalização da igualdade de género que a FEM - Feministas Em Movimento - Associação surgiu, ensaiada por um conjunto de doutorandas do primeiro Curso de Doutoramento em Estudos de Género em Portugal, muitas delas também ativistas, a cujas vontades se aliaram outras tantas mulheres com percursos, lutas, academias e ativismos diversos ou mesmo comuns. O objetivo foi o de cruzar academia e ativismos, articulando investigação-ação, intervenção que pudesse acrescer, um pouco mais, à luta que há muito se trava rumo à igualdade.
O ano de 2019 marcou, assim, o surgimento da FEM - Feministas Em Movimento, uma associação de motivações e pertenças plúrimas, diversas e interseccionadas, na qual as suas sócias fundadoras, ativistas e/ou académicas, pugnam por Direitos Humanos. Comprometem-se a equacionar e aportar diferença ou soma na luta contra as desigualdades, as discriminações de género e a violência contra as mulheres, bem como em participar no longo caminho ainda a percorrer pelos feminismos, pelas questões de género - feminismos que se posicionam como atuantes, em movimento, participantes, reivindicando soluções concretas para problemas sociais complexos vivenciados pelas mulheres (e, desta forma, por toda a sociedade) e pretendendo estar e fazer parte do ora e em diante, em igualdade; feminismos que não negam as subjetividades, que buscam na ação e pensamento crítico e científico o sedimento da mudança ainda a operar em matéria de género, de direitos das mulheres, de igualdade materializada, alicerçando-se na igualdade entre mulheres e homens, na igualdade de género, na não violência e não discriminação, seja qual for a sua forma ou manifestação, e de forma interseccional, buscando um mundo melhor1.
Na diversidade humana em que a FEM surgiu, uma das suas mais-valias residiu exatamente nesse entrecruzar de pensamento e ação, de origens, experiências, quotidianos, sentires e percursos pessoais e coletivos, de vivências e subjetividades múltiplas e pensamento crítico, para cujo aprofundamento entendem poder contribuir, afirmando-se como Feministas Em Movimento.
De então para cá, alguns fios teceram ação, sendo um deles uma resposta no apoio a pessoas vítimas de violência doméstica e de género, mais concretamente, uma estrutura de atendimento integrada na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica sob gestão técnica da FEM, com a identidade nominal Lisboa + Igualdade: atendimento e prevenção da violência doméstica e de género2.
Surgida em 2020 como resposta municipal, face ao recrudescimento expectado e constatado da violência contra as mulheres no espaço das intimidades durante o isolamento e estado de emergência decretado na decorrência da pandemia sanitária por SARS CoV-2, a Lisboa + Igualdade pretendeu ser um espaço de apoio e alternativa, uma valência que, conjugando esforços entre o município de Lisboa, a Universidade Nova de Lisboa e a FEM, respondesse a necessidades diagnosticadas em sede de reforço no atendimento e apoio direto a situações de violência doméstica e, concomitantemente, aprofundasse conhecimento científico sobre o impacto da covid-19 na violência nas relações de intimidade.
Não se pretendeu atender a novos problemas sociais, uma vez que se tratava de velhos problemas, ainda que envoltos em novas e diferentes roupagens, e que, como tudo indicava, aumentavam o risco e perigo para quem os vivenciava. Assim, num momento em que, na área da violência doméstica e de género, se acentuaram fragilidades, a Lisboa + Igualdade abriu portas, oferecendo atendimento presencial e apoio em situações de emergência decorrentes de violência doméstica. Por outro lado, era imperioso conhecer cientificamente os possíveis impactos que o confinamento social estava a ter na violência doméstica.
De facto, no contexto europeu e mundial, várias organizações não governamentais e estruturas oficiais com responsabilidade nesta matéria chamavam a atenção para o risco e mesmo a confirmação do aumento da violência doméstica contra as mulheres, assim como para a necessidade de se implementarem, complementarem e adequarem estratégias de informação, proteção e apoio às vítimas e sobreviventes de violência doméstica, uma exigência em Direitos Humanos.
Quanto a Portugal, à data em que a Estrutura de Atendimento Lisboa + Igualdade começou a operar, os estudos científicos nacionais sobre o impacto da pandemia nas relações de intimidade e sobre a violência que nestas ocorria em tempo de confinamento e isolamento social profilático eram inexistentes. Não obstante, fatores situacionais e contextuais, acrescidos ao conhecimento empírico e científico anterior sobre as dinâmicas das relações abusivas e prevalência da violência de género particularmente contra as mulheres, conduziam à tese de que o confinamento habitacional e o isolamento social poderiam influir nas relações entre as pessoas, potenciando o desencadear e/ou aumento da violência. Assim sendo, questionava-se se, nos casos de existência prévia de violência doméstica, a coabitação constante e permanente entre vítimas e agressores havia facilitado as estratégias de poder e controlo por parte destes, ou mesmo contribuído para o exponenciar da severidade dos atos violentos. Questionava-se também se esse confinamento e o estar permanente haviam contribuído para o desencadear de violências em relações que até então não eram por ela pautadas.
As hipóteses e interrogações conduziram à necessidade de aprofundar o conhecimento validado e de adequar soluções para problemas sociais identificados, tendo em conta o contexto específico vivenciado, nomeadamente por via da concretização de uma resposta social de investigação/ação financiada pela Câmara Municipal de Lisboa, a Lisboa + Igualdade. Era, pois, tempo de agir, garantindo atendimento telefónico e presencial personalizado a vítimas de violência doméstica, aumentando a resposta direta e presencial, prestando apoio nas saídas em situação de emergência, e ainda aliando conhecimento científico3 que confirmasse ou infirmasse dados administrativos existentes a nível internacional que descreviam um aumento das situações de violência doméstica contra as mulheres durante o período pandémico, informação que o conhecimento empírico das ONG portuguesas denunciava.
Dos fios a que acima aludimos e com os quais a FEM urdiu a sua ação, evidenciamos:
o inquérito sobre as Consequências da Crise Pandémica na Vida das Mulheres Professoras (FEM, 2020), estudo que pretendeu contribuir para a identificação das consequências da covid-19 na vida das mulheres professoras (a trabalhar em Portugal) e, ao mesmo tempo, sensibilizar as autoridades competentes e a sociedade em geral para as necessidades específicas destas mulheres, com vista à mitigação de aspetos negativos decorrentes das desigualdades de género;
a participação na elaboração do Guia de Requisitos Mínimos para Programas e Projetos de Prevenção Primária da Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica (CIG, 2020);
o projeto Feminismos antes do 25 de Abril de 1974, desenvolvido e financiado no âmbito da subvenção pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género às ONG de Mulheres. Neste projeto a FEM definiu como objetivos: afirmar a memória histórica da luta pelos direitos das mulheres; alargar o conhecimento sobre feministas e feminismos, em particular, antes do 25 de Abril; potenciar a conscientização em matérias de direitos de mulheres e igualdade; e homenagear feministas que nos antecederam na luta pelos direitos das mulheres (FEM, 2021).
a parceria no projeto de investigação IM Lab (Intersectionality Media Lab) - The Joacine Katar Moreira Case Study, do Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias;
a participação e dinamização em/de debates, seminários, conferências (2019, 2020, 2021).
Na cronografia da FEM, ainda que recente, sai realçada a importância da integração em parcerias, redes e trabalho em articulação e cooperação, designadamente:
Secção das ONG do Conselho Consultivo da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (Observadora);
Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica;
Redes Sociais de Lisboa e Almada;
Grupo de Coordenação do II Plano Municipal de Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres, Doméstica e de Género da cidade de Lisboa;
Rede Especializada para a Intervenção em Situações de Violência Doméstica e de Género de Lisboa;
Conselho Municipal para a Igualdade do município de Lisboa;
Rede de Apoio a Pessoas Idosas Vítimas de Violência Doméstica e Maus Tratos - RADAR, concelho de Almada;
e ainda a coorganização da Marcha do 25 de novembro em Lisboa, dia internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, e a participação nos “16 dias de ativismo feminista” (2019, 2020, 2021).
É um curto tempo, marcado por um contexto pandémico que acarreta vulnerabilidades a diversos níveis. Na área da igualdade, a realidade mostra que hoje a crise económica e social decorrente da crise pandémica tem implicações duríssimas nas vidas das mulheres, acentuando desigualdades. Não seremos, pois, demasiadas/os, para a transformação, ainda a elaborar, prosseguindo até que o amanhã se faça sem discriminações, desigualdades e violências.
A FEM agradece a todas as que a idealizaram e quantas/os diariamente a tornam possível, associadas/os, dirigentes, amigas/os da FEM, a todas/os quantas/os diariamente nela confiam e a apoiam na concretização de mais igualdade. Bem hajam.