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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.46 Lisboa Dec. 2021  Epub Feb 04, 2022

https://doi.org/10.34619/6yjg-bdmt 

Pioneira

Maria Alice Pereira: A Tenente-Coronel da Força Aérea - Pioneira na representação das Forças Armadas de Portugal no NATO Committee on Gender Perspectives (NCGP)1

Diana Moraisi  ii  iii 

Maria do Rosário Barardoiv 

1iCoordenadora do Gabinete da Igualdade do Ministério da Defesa Nacional

2iiPresidente do NATO Committee on Gender Perspectives (NCGP)

3iiiUniversidade de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), Lisboa, Portugal

4ivUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CICS.NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, Lisboa, Portugal


Gender Equality is perhaps the world’s greatest human rights challenge. Women’s equal leadership and representation is the game changer we need. António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, 30 de janeiro de 2021

Maria Alice dos Santos Dias Pereira, incorporada voluntariamente na Força Aérea em fevereiro de 1974, foi uma verdadeira pioneira na carreira militar em Portugal - como oficial superior das Forças Armadas Portuguesas, a ser graduada no posto de Tenente-Coronel em 1991 e como primeira mulher a ser nomeada como representante de Portugal no Committee of Women in NATO Forces (CWINF), em 1992, em Londres e, em 1993, em Bruxelas, no que é atualmente o NATO Committee on Gender Perspectives (NCGP).

A Tenente-Coronel, já aposentada desde 1994, privilegiou-nos com uma agradável e informal conversa de memórias. É uma mulher que soube reivindicar, com uma força ímpar, o reconhecimento pelos cargos exercidos enquanto mulher e militar das Forças Armadas, mas foi apenas em 2020 que houve um reconhecimento público pelo Ministro da Defesa Nacional, com a concessão da Medalha da Defesa Nacional2. Nesta cerimónia foram proferidas palavras de elogio à oficial superior das Forças Armadas Portuguesas e verdadeira pioneira enquanto representante de Portugal no Committee of Women in NATO Forces. Também a forma como cumpriu o seu dever, a modernidade que demonstrou e a forma voluntariosa como quebrou barreiras, cumprindo a sua missão de igual para igual, foram enaltecidos e considerados como um exemplo para as Forças Armadas e para a sociedade portuguesa

A nossa conversa com Maria Alice Pereira fluiu e resultou num retrato concreto, particular, das mulheres no panorama militar do Portugal da época.

UM TRAJETO DE SONHO E DE TENACIDADE

Oriunda da região de Coimbra, onde iniciou os seus estudos, revelou-nos que se sentiu atraída, desde muito jovem, pelas fardas e que desejou usá-las, talvez pela gratificante convivência com um seu tio-avô militar, que muito admirava. Estávamos numa época (anos 50), em que as Forças Armadas eram uma instituição exclusivamente masculina e tradicionalmente considerada como a mais masculina de todas as instituições sociais!

A nossa entrevistada acabou por “esquecer” as fardas e seguiu os seus estudos em Farmácia, primeiro em Coimbra e depois em Lisboa, obtendo o grau de licenciatura nesta área e especializando-se, posteriormente, em Análises Clínicas (Químico-biológicas).

Em 1963, a farmacêutica Maria Alice Pereira foi convidada a desempenhar funções de Diretora Técnica na farmácia da Capitania do Porto do Funchal, para onde se deslocou.

Entretanto casara-se na Madeira, onde nasceriam as suas duas filhas. O cônjuge, que exercia funções na Caixa Geral de Depósitos do Funchal, foi convidado para a sede daquela instituição bancária, em Lisboa, o que fez com que regressasse a Lisboa com o seu núcleo familiar.

Perante esta nova situação, Maria Alice Pereira que, por natureza, demonstra ser uma mulher dinâmica, com uma energia inesgotável e habilitada para lidar com o imprevisto, não cruzou os braços e, tendo tido conhecimento da abertura de um concurso, na Força Aérea, de duas vagas de pessoal feminino voluntário para o desempenho de funções de médica e farmacêutica, concorreu com cerca de 40 colegas, ao abrigo da Portaria 439/72 de 8 de agosto3. E foi assim, que, em fevereiro de 1974, a farmacêutica Maria Alice Pereira iniciou a carreira militar na Força Aérea Portuguesa como aspirante a oficial, 13 anos depois da entrada, em 1961, também na Força Aérea, das primeiras mulheres paraquedistas4. Apenas 27 anos depois da entrada destas paraquedistas - altura em que se verificou um ténue início do que viria a ser a evolução notável de um reduto tradicionalmente masculino que refletia uma mudança de atitude em relação às forças militares e à sua razão de ser -foram admitidas mulheres para o curso de Piloto Aviador, conforme é referido na Revista Militar de maio de 20135.

A CARREIRA MILITAR E A REPRESENTAÇÃO NA NATO

UM ORGULHO ADMITIDO

E o sonho de menina veio a concretizar-se! As tão desejadas fardas estavam finalmente ao alcance de Maria Alice Pereira, com o ingresso na Força Aérea, no posto de Aspirante a Oficial. Provavelmente este desejo consolidou-se também pela sua personalidade de exigência e disciplina, que, segundo nos diz, é uma herança dos pais, ambos professores. Nesse mesmo ano (1972), foi colocada no Laboratório de Análises Clínicas do Hospital da Força Aérea, onde cumpriu os seus primeiros anos de carreira militar.

Maria Alice Pereira foi então promovida ao posto de Alferes, depois ao de Tenente, Capitão, Major e finalmente ao de Tenente-Coronel (1991), um percurso com carácter de excecionalidade, porque não havia memória de ter sido atribuída tal graduação às mulheres portuguesas na carreira militar superior.

Em 1992 foi nomeada para representar Portugal, que, pela primeira vez, estaria presente no Committee of Women in NATO Forces, a realizar em Londres. Portugal integra o grupo dos 12 membros fundadores da Aliança Atlântica (1949), e esta primeira representação do país no CWINF sucedeu muitos anos depois da primeira Conferência ad hoc das Oficiais Seniores (1961), em Copenhaga; este era um grupo formado por mulheres, pioneiras e visionárias, empenhadas, que deram voz a todas as mulheres, encorajando a integração da dimensão de género nas Forças Armadas. A NATO reconheceu formalmente este grupo de oficiais seniores como um subcomité do Comité Militar da NATO em 1996, mas só em março de 1997 o mesmo comité aprovaria a criação de um Gabinete permanente de apoio ao CWINF no Estado-Maior Internacional (EMI) da NATO.

Diz-nos Maria Alice Pereira que, para além de ter sido uma surpresa total a sua nomeação para esta representação, sentiu enorme responsabilidade pela honra que lhe foi atribuída por tão importante missão internacional. Com uma total honestidade, confessa que foi, de imediato, valorizar o seu inglês para que desempenhasse esta missão com a maior dignidade possível.

Conforme nos relata, a reunião do Comité culminou com uma cerimónia oficial e jantar no Palácio de Buckingham.

Maria Alice Pereira era uma profissional exemplar, cumpridora dos seus deveres, com várias menções honrosas que lhe foram atribuídas pelos excelentes desempenhos nas funções exercidas, características que lhe proporcionaram uma auspiciosa carreira militar.

OS INÍCIOS DE UMA PROFUNDA MUDANÇA

Na realidade era uma situação inédita, porque apenas no final da década de 80 a integração de mulheres nas Forças Armadas Portuguesas sofreu alterações de forma substancial, relativamente àquela que havia sido a participação histórica das mulheres em atividades militares em Portugal.

Maria Alice Pereira, ainda a propósito desta sua representação no Comité da NATO, diz-nos: “Foi um orgulho e uma enorme responsabilidade ter sido nomeada pelo General Lemos Ferreira[6], nessa data Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA). Fiquei de tal forma imbuída pelo espírito de cumprir e honrar esta representação, que, no final, ao elaborar o relatório, em que se discutiram vários temas, entre eles quais os deveres e direitos das mulheres militares na NATO, obtive um elogioso louvor pelo trabalho desempenhado.”

Prosseguindo a sua carreira na Força Aérea, sempre na área da saúde no respetivo hospital, enquanto Tenente-Coronel, Maria Alice Pereira confidenciou-nos que muitos homens militares, com postos inferiores ao seu, manifestavam certas reservas, ou até inibição, em prestar-lhe as devidas continências militares. Podemos mesmo afirmar que foi um passo significativo para a integração das mulheres nas Forças Armadas.

Uma nova nomeação trouxe-lhe nova missão internacional, também em representação de Portugal no CWINF, desta vez em Bruxelas, como já referimos. Foi mais uma vez a única representante de Portugal porque apenas era permitido uma presença por país. Foram 14 os países representados: Alemanha, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Grécia, França, Holanda, Noruega, Portugal, Reino Unido, Turquia e Itália (observadora). Nos objetivos destas representações, entre outros assuntos, destacava-se a criação de um quadro legal que fundamentasse a representação militar feminina nas Forças Armadas, tendo sido estendido para apoiar a integração da perspetiva de género nas operações militares da NATO.

Mais uma responsabilidade superada com êxito, refere a Tenente-Coronel e acrescenta: “Sempre me considerei uma mulher dinâmica e pronta a concretizar os meus objetivos, dos quais muito me orgulho e de que jamais me arrependerei. Como farmacêutica analista, continuei sempre a desempenhar funções na área da saúde. Também neste âmbito cumpri vários dos propósitos previstos nas reuniões de Mulheres na NATO.”

Maria Alice Pereira manifesta, de novo e expressivamente, o seu orgulho por ter cumprido com dignidade as missões de que fora incumbida e também por ter contribuído para alterar, por um lado, as perspetivas da integração feminina nas Forças Armadas Portuguesas e, por outro, e de forma substancial, aquela que havia sido a participação histórica das mulheres em representações militares.

Maria Alice sublinha ainda: “Andar fardada era uma atitude inédita e uma referência. Foi muito o orgulho em ter vestido uma farda, pois era uma forma de estar ao serviço da minha Pátria, inclusive quando era convidada para representar a Força Aérea, quer em atos civis, quer em celebrações religiosas.” E recorda com emoção, dada a pertença a uma genealogia telúrica, familiar e católica praticante, o quanto era digna a sua participação nas Procissões da Senhora da Saúde como representante das Forças Armadas.

A sua carreira militar, para além das atividades de representação oficial, quer a nível nacional, quer a nível internacional, baseou-se na prestação de serviços, enquanto farmacêutica militar, sempre na vertente da saúde, primeiro no Laboratório de Análises e posteriormente na Direção Técnica da Farmácia do Hospital da Força Aérea.

Mais tarde, durante alguns anos, também lecionou na Escola do Serviço de Saúde Militar, em Lisboa.

O NÚCLEO FAMILIAR

Aliada a estas inesquecíveis vivências militares, Maria Alice Pereira fala-nos da família, nas suas duas filhas, quatro netos e uma bisneta. E conta-nos mais uma das suas interessantes memórias: foi uma das suas filhas, agora arquiteta, a autora do desenho do boné das mulheres militares da Força Aérea, modelo ainda hoje em vigor: “O General Lemos Ferreira (CEMFA) propôs-me um novo modelo, mais feminino, porque o único existente correspondia ao boné utilizado pelos homens, e apenas a eles adequado.”

Quando em 1994 se aposentou da Força Aérea, Maria Alice Pereira continuou, durante 16 anos, a prestar serviços, sempre na sua área de formação académica. E, mesmo já aposentada definitivamente e afastada da carreira profissional, a sua saudável inquietação fá-la prosseguir sempre em rodopiantes atividades culturais, nomeadamente na Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, onde participa com o seu marido no coro - a Maria Alice como cantora e o Alberto Pereira como pianista.

Terminámos a nossa agradável conversa, mas Maria Alice Pereira fez questão de lembrar que o ponto mais alto da sua carreira militar foi a grata experiência de representar Portugal, primeiro em Londres, depois em Bruxelas, no Comité das Mulheres Militares dos Países da NATO. Deixou ainda uma mensagem às jovens mulheres que queiram enveredar pela carreira militar: “Devem assumir sempre com orgulho a sua farda de qualquer ramo das Forças Armadas, porque há sempre um sentimento e uma experiência únicos para toda a sua vida - a oportunidade de servir a Pátria.”

1O NCGP (NATO Committee on Gender Perspectives), reconhecido pela NATO em 19 de julho de 1976, é responsável por promover a integração da perspetiva de género como uma estratégia para alcançar a igualdade de género. É o órgão consultivo do Comité Militar (CM) da NATO sobre políticas relacionadas com o género para as Forças Armadas da Aliança.

2Portaria n.º 650/2020 - Diário da República n.º 212/2020, Série II de 2020-10-30, Defesa Nacional - Gabinete do Ministro, pp. 46-47 - Sumário: Concessão de Medalha da Defesa Nacional a várias militares.

3Diário do Governo, I Série n.º 184, de 8 de agosto de 1972 - Portaria 439/72, de 8 de agosto, que permite a admissão de pessoal feminino voluntário para o desempenho de funções de médicas e farmacêuticas em qualquer dos ramos das Forças Armadas.

4As Enfermeiras Paraquedistas, que não eram oficiais superiores, foram um grupo composto por 46 mulheres portuguesas que, entre 1961 e 1974, durante o confronto entre as Forças Armadas Portuguesas e as forças organizadas pelos movimentos de libertação das antigas províncias ultramarinas Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, participaram da Guerra do Ultramar no tratamento de feridos e doentes, assim como no auxílio a civis.

5https://www.revistamilitar.pt/artigo/825

6José Lemos Ferreira (1929-2020) foi um general piloto-aviador português, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea Portuguesa e, mais tarde, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (GEMGFA).

Aceito: 10 de Novembro de 2021

Diana Morais. Coordenadora do Gabinete da Igualdade do Ministério da Defesa Nacional. Presidente doNATO Committee on Gender Perspectives(NCGP). Doutoranda em Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), Universidade de Lisboa.

Maria do Rosário Barardo. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CICS.NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher. Email: rosario.barardo@gmail.com

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