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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.46 Lisboa Dec. 2021  Epub Feb 04, 2022

https://doi.org/10.34619/nyv7-6fdf 

Retrato

Laura Bassi: Uma carreira científica no século das Luzes

Maria do Céu Borrêchoi  ii 
http://orcid.org/0000-0001-9388-093X

1iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal

2iiUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH), CHAM - Centro de Humanidades, 1069-061 Lisboa, Portugal


(Laura Bassi por Carlo Vandi, séc. XVIII) 

Most Honoured Lady: I would like to visit Bologna so that I might say to my fellow citizens that I have seen Signora Bassi, but, deprived of this honour, I trust that I may with justice cast at your feet this philosophical homage in reverence to the glory of her century and sex. As there is no a Bassi in London I should more happily enter your Academy of Bologna than the English one, even though it may have produced a Newton. Carta de Voltaire a Laura Bassi, 23/11/1744 (citada em Cieślak-Golonka & Morten, 2000, pp. 69-70, e em Simpson, 2016, p. 17)

A carta de Voltaire dirigida a Laura Bassi, a solicitar-lhe apoio na sua eleição para a Accademie delle Scienze dell’Istituto di Bologna, é um sinal da notoriedade desta cientista italiana e das reações ao seu trabalho um pouco por toda a Europa. Ela desempenhou um papel central na introdução de novas formas de aprendizagem no curriculum científico universitário e na constituição de uma rede de investigadores que uniram a Itália à cultura científica de França e Inglaterra (Findlen, 1993).

Laura Maria Caterina Bassi, filha de um advogado originário de Módena, nasce em Bolonha a 20 de outubro de 1711, numa cidade que, à época, integra os estados pontifícios e possui a mais antiga universidade europeia. Laura inicia estudos de latim aos cinco anos sob a supervisão de um primo, o Pe. Lorenzo Stegani, seu mestre também de francês e aritmética. Aos treze anos, prossegue os estudos, agora de filosofia, com o médico da família, Gaetano Tacconi, professor de anatomia e de medicina na Universidade de Bolonha e sócio da Accademie (Logan, 1994; Busi, 2001). O que lhe ensina depreende-se, em certa medida, das 49 teses defendidas publicamente por Laura, na Sala degli Anziani do Palazzo Pubblico (hoje d’Accursio), perante as autoridades comunais, os representantes da Universidade e da Igreja, membros da nobreza e académicos notáveis. Entre aquelas dissertações, seis são sobre Lógica, dezasseis sobre Metafísica e outras dezasseis sobre Física. Especificamente, nas relativas à natureza da matéria, do movimento e dos meteoros, podem detetar-se influências de Aristóteles, Descartes, Paracelso, Galileu e da escola de Torricelli. No entanto, a V Tese - De Anima - é um exemplo da influência da Opticks de Newton, uma obra fundada na ideia “do raciocínio comprovado pela experimentação” (Logan, 1994; Simpson, 2016). Os argumentos das suas teses sobre Ética aparentemente vão provocar o afastamento de Laura em relação a Tacconi. Ela julga que pode ter alguma independência face ao seu mestre. Este, pelo contrário, considera que “(…) independence (…) might have been willing to accept from male students but not from a female, who had only been educated in science as a favor on his part” (Logan, 1994, p. 793).

Desde a sua fundação até ao século XIX, as universidades estão formal ou informalmente fechadas às mulheres, mas algumas excecionais cientistas recebem um doutoramento, como é o caso de Bassi, que obtém esse grau em 1732 (Schiebinger, 2002). Após a graduação em Filosofia, começa a estudar Matemática, com Gabrielle Manfredi, um dos pioneiros do cálculo infinitesimal em Itália e um dos arguentes das suas teses. Mas Bassi cedo se apercebe de que só os poderá aprofundar se conseguir aceder aos livros listados no Index Librorum Prohibitorum. Em Itália, todos os homens cientistas o podem requerer desde que tenham 24 anos de idade; excecionalmente, Laura consegue obter a aprovação do Vaticano, apesar de tal pretensão ter sido negada a outras mulheres, como as milanesas Clelia Borromeo e Francesca Manzoni (Logan, 1994).

Obtido o doutoramento, Laura solicita ao Senado de Bolonha um lugar de professora na Alma Mater Studiorum, o que consegue somente por insistência do Cardeal Prospero Lambertini. Este arcebispo de Bolonha, futuro Papa Bento XIV e autor de uma importante reforma cultural, é membro do círculo de amigos de Tacconi e grande admirador do trabalho de Bassi. Como seu mecenas, permite-lhe sair da obscuridade para o reconhecimento internacional.

Deste modo, os senadores conferem-lhe o lugar de Filosofia Natural, em outubro de 1732, com o vencimento respetivo, tornando-se “the first woman in Europe to be offered a teaching position at a University” (Ray, 2015, p. 160). No entanto, por “ratione sexus”, os anziani impõem a condição de as lições só serem autorizadas com o consenso dos superiores e em situações excecionais (Cavazza, 2009).

Todavia, Laura recusa ter um lugar secundário e procura o apoio de homens defensores de uma maior intervenção das mulheres na vida académica e científica e com isso garantir para si uma maior participação nesse ambiente. Tanto o Cardeal Lambertini como o Pe. Giambattista Beccaria, da Universidade de Turim, e que Bassi conhece quando este visita Bolonha, não compreendem por que razão as mulheres não podem ter uma intervenção na universidade e nas academias.

Treze anos mais tarde, Laura é acolhida na novel Benedettina, criada por Papa Lambertini no seio da Accademie, constituída por vinte e quatro académicos escolhidos entre os seus mais prestigiados membros. Os Benedettini recebem um rendimento anual pela apresentação de trabalhos originais, pretendendo-se desta forma incentivar a investigação científica (Logan, 1994).

Por sua vez, na década de 1760 e após muitos anos de ensino doméstico, o Cardeal Alessandro Albani, protetor do Collegio Montalto, nomeia Laura como tutora dos estudantes de física experimental no Istituto, o que lhe permite ensinar as ciências através de uma abordagem com maior ênfase na observação e no experimentalismo, um método diferente do utilizado na universidade, de pendor mais aristotélico. Pelo facto de ser ministrado em casa, este ensino não está obrigado a adotar o curriculum universitário, o que torna o curso bastante popular. Deste modo, o laboratório de Bassi constitui-se como um espaço de sociabilidade onde os elementos que compõem este campo cultural ensaiam, promovem e divulgam ideias que, posteriormente, poderão divulgar ou servir para a criação de produtos culturais.

A pesquisa científica requer uma troca de ideias e de materiais, envolvendo frequentemente um trabalho com colaboradores. Por isso, começam a circular rumores sobre as reuniões de Bassi com homens da ciência, na sua própria casa. Por serem consideradas inapropriadas para uma jovem, e por esta pretender o patrocínio e a colaboração das autoridades religiosas, Laura decide casar-se com o médico Giuseppe Veratti (1707-1793). Em carta dirigida a um amigo confessa as razões desta decisão:

My domestic circumstances have induced me to change my mind and make this decision. (…) and you will not view it as a reason for detaching myself from the studies, I am under obligation to profess, which I had hoped quietly to pursue in this life; therefore, I have chosen a person who walks my path in the arts and who, through long experience, I was certain would not impede me from following mine. (Lettere al Dott. Giovanni Bianchi, 1738, citada em Logan, 1994, p. 795, e em Simpson, 2016, p. 17)

O seu novo estado multiplica as possibilidades de participação na vida social e científica, apesar das preocupações com a educação dos nove filhos, dos quais só cinco atingem a idade adulta (Cavazza, 2009; Findlen, 1993). Em casa do casal realizam-se salões literários, frequentados por estudantes de ciências, poetas ou até viajantes de passagem por Bolonha. Sem o estatuto do casamento e o apoio material do marido, provavelmente não teria alcançado dois objetivos: a lecionação regular de física experimental, na sua própria casa, e a investigação com o recurso ao equipamento laboratorial essencial àquela matéria, pelo que, devido aos elevados custos, o acordo e a colaboração de Veratti são fundamentais para o seu sucesso. Brevemente, este laboratório doméstico torna-se um centro de atração quer para investigadores italianos, quer para muitos estrangeiros. A título de exemplo, somente na casa dos Bassi-Veratti é possível encontrar uma máquina elétrica para a realização de experiências eletrostáticas, como nos conta no seu diário o físico francês Abade Jean-Antoine Nollet, após uma visita efetuada em 1749 (Cavazza, 2009). O inventário desses equipamentos está publicado e pertence ao Arquivo do Estado de Bolonha (Busi, 2001). Dele nada resta atualmente, pois foi disperso em vendas peça a peça (Frize, 2013).

Quando já conta 65 anos, e por morte de Paolo Balbi de quem Veratti é assistente e seu sucessor lógico, a cadeira de Física Experimental acaba atribuída a Laura Bassi, como reconhecimento do seu labor científico, obtido “through her actions rather than her pen” (Findlen, 1993, p. 443), uma vez que só uma ínfima parte das suas inúmeras dissertações está publicada e sem autoria (Tosi, 1998).

Como foi possível tal sucesso e como é que Bassi usou o sistema de mecenato para criar para si própria um lugar na comunidade científica do século XVIII?

A presença das mulheres nas instituições académicas italianas contrasta com a situação noutras regiões da Europa. Em França, a sua participação ocorre sobretudo nos salões. Assim, a cultura de salão acaba por formalizar a separação entre o mundo das academias e o da sociedade das mulheres instruídas. Em Itália, pelo contrário, pratica-se o modelo renascentista de academia, onde homens e mulheres interagem. Em diversas cidades transalpinas, a fundação de academias permite unir a universidade, o salão e as atividades de lazer do patriciado urbano (Findlen, 1993). Em Bolonha, Bassi cedo se torna um elo entre aqueles círculos fechados, desempenhando uma conexão valiosa na circulação das ideias (Taylor et al., 2008).

O novo protagonismo das mulheres, como consumidoras e produtoras de cultura, é um aspeto importante do processo de transformação social e cultural em curso no século XVIII (Cavazza, 2015), não obstante, na década de 1770, em Itália, já se ouvirem mais alto as vozes críticas às mulheres cultas, substituindo os elogios que haviam proporcionado o lançamento de carreiras como as de Laura Bassi. Vozes que, aliás, nunca desapareceram no século XVIII e que mencionavam “uma maneira feminina de pensar” e “uma metafísica feminina” que impediriam as mulheres de compreender as ciências, por serem criaturas dominadas mais pela paixão do que pela razão (Findlen, 2003). A edição de obras com a especificação “para senhoras”, comum na época (v.g. Il newtonianismo per le dame..., de Francesco Algarotti), dirigidas quer a uma audiência feminina, quer ao público em geral, provavelmente tem um duplo sentido, como explica o título da obra de James Ferguson (1756) Astronomy Explained upon Sir Isaac Newton’s Principles, and Made Easy to Those Who Have Not Studied Mathematics (citado em Mazzotti, 2004, p. 131).

Pode considerar-se Laura Bassi um produto de uma sociedade com uma longa tradição de alto nível de educação feminina, sobretudo entre a aristocracia e a elite profissional. Contudo, o que a torna uma personalidade ímpar foi o modo como soube utilizar o sistema de mecenato e as compensações atribuídas (e que podiam permanecer simbólicas), conseguindo para si própria um papel de relevo quer na promoção da nova ciência, quer na comunidade científica, através da pesquisa e do ensino (Ray, 2015; Findlen, 2003). O seu profissionalismo fez dela uma mulher pioneira na Física e um caso excecional no seu tempo (Logan, 1994).

Referências bibliográficas

Busi, P. (2001). Il fondo speciale “Laura Bassi e famiglia Veratti” nelle raccolte manoscritte della Biblioteca dell’Archiginnasio: Note e inventario (Archive “Laura Bassi and Veratti family” in manuscripts from Archiginnasio Library: Notes e inventory). L’Archiginnasio, XCVI, 255-326. http://badigit.comune.bologna.it/fondi/fondi/FS_Bassi_Veratti.pdfLinks ]

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Aceito: 23 de Agosto de 2021

Maria do Céu Borrêcho. Investigadora. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher & CHAM - Centro de Humanidades (NOVA FCSH). 1069-061 Lisboa, Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9388-093X; CIÊNCIA ID: 2913-3F73-32D5; Email: mcborrecho@gmail.com

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