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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.46 Lisboa dic. 2021  Epub 04-Feb-2022

https://doi.org/10.34619/czfa-szw5 

Recensões

Ramos, A., Cachola, A. C., Silveira, A., Bonnin A., Alfaro, C., Rosendo, C., Diserens, C., …, Maia, T. (2021). Tudo o que eu quero: Artistas portuguesas de 1900 a 2020. Fundação Calouste Gulbenkian; Imprensa Nacional-Casa da Moeda (336 pp.)

1iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal


Tudo o que eu quero. Artistas portuguesas de 1900 a 2020 é uma obra editada por altura da exposição homónima que esteve patente entre 2 de Junho e 23 de Agosto de 2021, no Museu Calouste Gulbenkian, revisitando obras de 40 artistas portuguesas de referência em diferentes áreas como pintura, escultura, desenho, cerâmica, instalação, vídeo, fotografia.

Abrangendo o período temporal desde o início do século XX até à actualidade, esta exposição e publicação propõem, como fica explícito, no ensaio introdutório de Helena de Freitas e Bruno Marchand, curadores da mostra, uma reflexão sobre o “histórico apagamento a que as artistas mulheres e as suas produções estiveram desde sempre sujeitas” (p. 25). Esta reparação histórica sobre a falta de inscrição das mulheres artistas nos cânones artísticos constitui o seu objectivo central, pretendendo contribuir para a construção da História da “arte sem história” (Vicente, 2012).

Qualquer trabalho artístico só se infiltra nos cânones artísticos se for exposto, comentado, debatido, analisado, criticado, reposto, reavaliado, existindo muitas fissuras nos processos de construção da memória histórica, sendo esta exposição e publicação inegáveis contributos para a reposição legítima do lugar das mulheres artistas na História da Arte.

De acordo com perspectivas feministas contemporâneas (Nochlin, 1999; Pollock, 1999), apesar de ser relevante dar visibilidade ao trabalho de mulheres artistas, não chega acrescentar a sua obra aos movimentos e estilos identificados pela História da Arte, sendo essencial reflectir criticamente sobre os pressupostos desta área do saber que levaram (e ainda levam) à exclusão das mulheres.

O título da exposição foi inspirado no poema escrito por Lou Andreas-Salomé (1861-1937), filósofa, escritora e psicanalista que, em toda a sua obra, reflectiu sobre o lugar das mulheres não só no espaço social, profissional e intelectual como nas suas relações familiares, amorosas e sexuais, sob o desígnio da autodeterminação individual. A luta das mulheres pelo espaço pessoal, patente no pensamento desta autora, remete-nos inevitavelmente para as reflexões de Virginia Woolf (1929): “que condições são necessárias à criação de obras de arte?” (p. 18).

Para além do ensaio introdutório referido, esta obra é constituída por um conjunto de capítulos dedicados a cada artista que integra esta iniciativa: Aurélia de Sousa, Mily Possoz, Rosa Ramalho, Maria Lamas, Sarah Affonso, Ofélia Marques, Maria Helena Vieira da Silva, Maria Keil, Salette Tavares, Menez, Ana Hatherly, Lourdes Castro, Helena Almeida, Paula Rego, Maria Antónia Siza, Ana Vieira, Maria José Oliveira, Clara Menéres, Graça Morais, Maria José Aguiar, Luisa Cunha, Rosa Carvalho, Ana Léon, Ângela Ferreira, Joana Rosa, Ana Vidigal, Armanda Duarte, Fernanda Fragateiro, Patrícia Garrido, Gabriela Albergaria, Susanne Themlitz, Grada Kilomba, Maria Capelo, Patrícia Almeida, Joana Vasconcelos, Carla Filipe, Filipa César, Inês Botelho, Isabel Carvalho e Sónia Almeida.

O enquadramento cronológico da exposição, presente no seu subtítulo, deve-se à percepção, no contexto da História da Arte, de que foi precisamente na viragem do século XX que as artistas portuguesas iniciaram, ainda que timidamente, “o longo e difícil caminho da sua autonomia, da sua presença e autodeterminação artística” (p. 26), assistindo-se a uma explosão da sua actividade após a Revolução de 25 de Abril de 1974.

A exposição inicia-se com o icónico “Auto-retrato” de Aurélia de Sousa, de 1900 (p. 39), constituindo uma poderosa imagem que incorpora uma posição emergente das mulheres artistas fundada na sua vontade, liberdade e autonomia. Com o olhar directo, interpelador e autodeterminado, esta pintura inaugura simbolicamente uma nova atitude das mulheres artistas, reivindicando o seu lugar de criadoras no universo artístico, afastando-se das expectativas sociais dominantes - de recato, interioridade e emoção - associadas tradicionalmente ao feminino e à feminilidade.

A questão da auto-representação feminina ganha importância com a tomada de consciência de que “só muito recentemente as mulheres (…) passaram de objectos a sujeitos, de musas a criadoras” (p. 25), juntando-nos às interrogações de Teresa Joaquim (1997): “Que significado terá que só nos primórdios do séc. XX tivemos o primeiro auto-retrato de uma pintora: Aurélia de Sousa? (…) o que é que impedia a inscrição do seu rosto, do seu corpo, numa obra criativa (…)?” (p. 49).

Esta temática é logo abordada no primeiro núcleo da exposição sobre “o lugar da artista”, pondo em confronto o “Auto-retrato” de Aurélia de Sousa e a pintura “Re-Récamier” de Rosa Carvalho, assinalando quer as duas épocas extremas do arco cronológico referido, quer duas visões antagónicas acerca do lugar da mulher na arte: por um lado, a presença realista da autora no primeiro e, por outro lado, a ausência intencional da figura feminina na reprodução da obra “Retrato de Madame Récamier”, de Jacques-Louis David, na segunda.

Outros eixos temáticos, “reveladores de uma vontade de afirmação e de poder por parte das artistas perante os sistemas de produção e consagração dominantes” (p. 27), são abordados, tais como o corpo, o espaço, a palavra, o olhar, a pluralidade do feminino, entre outros.

Apesar de não pretender ser um retrato da arte feminina em Portugal, rejeitando uma abordagem redutora e simplista, associada à reprodução de estereótipos de género, a questão das pertenças e identidades, incluindo as de género, são fortemente abordadas nos diferentes núcleos temáticos desta exposição.

As preocupações feministas, na sua pluralidade, trespassam a maioria das obras, numas de forma mais directa e evidente, noutras de forma mais subtil e discreta, sendo, no entanto, muito poucas as artistas presentes nesta exposição que se afirmam como feministas, não podendo esta questão ser dissociada da diversidade geracional das diferentes autoras, bem como da “variedade de formas de estigmatização que esta palavra sofreu ao longo da história” (Offen, 2008, p. 37).

Se há artistas como Paula Rego, que se assume com entusiasmo como feminista (p. 29), Ana Vidigal, que não se amedronta com esta assunção pública (Mira, 2011), e Joana Vasconcelos, que advoga “um feminismo que defende a liberdade de cada um(a)” (p. 277), outras há que se declaram feministas de forma mais discreta, como Vieira da Silva, e outras ainda que não colocam a perspectiva feminista como uma questão central do seu trabalho, como Helena Almeida, Lourdes Castro e Ana Vieira (Mira, 2014); há por fim Maria Lamas, que, apesar de ter sido uma activista política defensora dos direitos das mulheres e da melhoria das suas condições de vida, sempre rejeitou a sua identificação com este conceito (Fiadeiro, 2003). Independentemente desta afirmação, a luta por um lugar de pleno direito, social e artístico, bem como a vontade de ter uma voz própria e autónoma, estão fortemente presentes em diversas obras desta exposição, como no vídeo “Ouve-me”, de Helena Almeida, considerado por João Ribas “uma obra-prima do feminismo português” (p. 30).

Referências bibliográficas

Fiadeiro, M. A. (2003). Maria Lamas: Biografia (Maria Lamas: Biography). Quetzal Editores. [ Links ]

Joaquim, T. (1997). Menina e moça: A construção social da feminilidade (Girl and young woman: The social construction of femininity). Fim de Século. [ Links ]

Mira, R. (2011). Ana Vidigal (Ana Vidigal). Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 25, 161-171. [ Links ]

Mira, R. (2014). Olhar Ana Vieira (To look Ana Vieira). Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 31, 149-153. [ Links ]

Nochlin, L. (1999). Representing women. Thames & Hudson. [ Links ]

Offen, K. (2008). Erupções e fluxos: Reflexões sobre a escrita de uma história comparada dos feminismos europeus, 1700-1950 (Eruptions and flows: Reflections on the writing of a comparative history of European feminisms, 1700-1950). In A. Cova (Dir.), História comparada das mulheres (pp. 29-45). Livros Horizonte. [ Links ]

Pollock, G. (1999). Differencing the canon: Feminism and the writing of art’s histories. Routledge. [ Links ]

Vicente, F. L. (2012). A arte sem história: Mulheres e cultura artística (séculos XVI-XX) (Art without history: Women and artistic culture (16th-20th centuries)). Athena. [ Links ]

Woolf, V. (2005). Um quarto só para si (A room of one’s own). Relógio d’Água. [ Links ]

Aceito: 27 de Outubro de 2021

Rita Mira. Investigadora. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2542-4323 Email: mira.rita@gmail.com

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