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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.47 Lisboa jun. 2022  Epub 01-Ago-2022

https://doi.org/10.34619/8efd-ccrw 

Nota de Abertura

Nomear os interditos

Isabel Henriques de Jesusi 
http://orcid.org/0000-0002-8172-4224

1i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1070-312 Lisboa, Portugal


Qual o critério para a escolha de uma determinada mulher figurar na capa da revista Faces de Eva, de entre tantas possíveis? Mulher com rosto, com nome, com história, que desbravamos a partir de um qualquer indício, cerzindo depois os fragmentos para tentar compreender um todo, seguramente ilusório, e mesmo assim perseveramos? Sabemos que entre a mulher sujeito que viveu, pensou, sentiu e amou e aquela que se torna objecto da nossa percepção, vai uma enorme diferença, condicionada, não apenas pela impossibilidade de traçar uma linha firme e estável, constante ao longo de toda uma vida, mas também pelas memórias, experiências e objectivos de quem pesquisa.

Por vezes, numa primeira fase, a figura escolhida surge-nos como uma espécie de contorno figurativo, inacabado e impressionista, cuja nitidez vai sendo construída através dos contributos recolhidos nos textos que publicamos. Ao mesmo tempo, esse processo é acompanhado pela identificação de algumas conexões possíveis entre as várias rubricas apresentadas. Assim acontece com Virgínia Quaresma, mulher de causas e de empenhamentos vários, desde o feminismo ao pacifismo, do jornalismo à publicidade, vividos com maior ou menor intensidade ao longo da sua vida e bem fundamentados num dos “Estudos” e nas duas “Homenagens” que publicamos e a cuja leitura convidamos.

Traçado o perfil desta mulher emancipada e livre, escolhida para figura de capa da 47.ª edição da revista Faces de Eva, ele suscitou-nos algumas temáticas muito actuais nos Estudos de Género que procurámos explorar em vários textos aqui incluídos. Tratou-se, não de uma mera justaposição da figura de Virgínia Quaresma com essas abordagens, mas de uma apropriação simbólica que lhes deu sentido e favoreceu a unidade. Referimo-nos aos estudos sobre as sexualidades e aos feminismos negros.

Se definíssemos um eixo temporal, onde localizar algumas das apreciações/teorizações sobre a sexualidade difundidas nesta edição da revista Faces de Eva, encontraríamos, em primeiro lugar, as questões colocadas pelas feministas portuguesas do princípio do século XX. Na sua agenda feminista, a prostituição encontrava-se entre os assuntos em debate, ainda que se apresentasse como “exterior” a quem o nomeava. Mais tarde, por altura da Revolução dos Cravos, o direito à contracepção e ao aborto fazia parte das reivindicações das mulheres, a actividade sexual e a reprodução já não se sobrepunham, e clamava-se pela coragem de quem, anos antes, em França, assinara o Manifesto das 3431 (1971). A abertura a orientações sexuais não normativas e a consciência dos interditos que lhes estavam (estão) associados iam fazendo o seu caminho e viriam a possibilitar, anos depois, a descriminalização da homossexualidade.

Uma das entrevistas que publicamos analisa este percurso, sendo que a outra, ao apontar formas de valorização do envelhecimento das mulheres, levando-as a descobrir potencialidades várias, terá subjacente uma leitura da sexualidade em idade avançada, reconfigurando critérios e preceitos ainda dominantes e, quantas vezes, inibidores. Com uma grande actualidade teórica, no campo dos estudos das sexualidades, incluímos um “Estudo” que propõe uma leitura queer sobre a figura de Frankenstein, com que completamos o primeiro conjunto de temas, sugerido pela figura de capa.

Algum caminho foi percorrido desde os habituais tabus que dominavam as relações familiares, quer nos posicionemos em Portugal, quer na França de fins dos anos 1960, como vemos nas memórias de Annie Ernaux (2020): “A contraceção intimidava bastante as refeições familiares para poder ser tema de conversa. O aborto era palavra impossível de pronunciar” (p. 77). Apesar de os interditos de nomeação associados às questões sexuais já não serem tão pesados, deparamos ainda com múltiplos constrangimentos, principalmente quando se trata de uma sexualidade não normativa.

Eufemisticamente referidas, apesar de vivenciadas com o mesmo ardor e emoção das relações heterossexuais, a expressão das relações lésbicas não era comum no tempo em que Judith Teixeira ousou publicar o seu primeiro livro de poemas, Decadência, de onde extraímos o poema “A minha Amante” que apresentamos nesta edição. Num interessante paper, Anna M. Klobucka percorre a representação da homossexualidade feminina na literatura e na cultura portuguesas, referindo-se ao caso de Judith Teixeira:

On the empirically more solid ground of Portuguese literary history, the exemplary apparitional lesbian figure is of course the poet Judith Teixeira, who over the last decade or so has been the object of at least some critical attention (...) As is well known, Teixeira’s participation in the “Literatura de Sodoma” controversy in 1923, in which her volume Decadência was seized by the authorities alongside books by António Botto and Raul Leal, has on several occasions been elided from critical accounts of the episode (...) The year 1927 marks also the poet’s definitive exit from the Portuguese literary scene: nothing, literally nothing else is known about her life until she dies in 1959 in Lisbon, incidentally in the same year as Botto in Rio, “viúva, sem deixar filhos, sem deixar bens, sem deixar testamento”, as her official death certificate states (...). Teixeira’s literary and existential fate stands out as a clear example of what Dee Pryde has diagnosed as the gender-specific syndrome of lesbophobia discernible in modern Portuguese culture. (Klobucka, 2009)

Contemporânea de Judith Teixeira, Virgínia Quaresma é também referida no trabalho de Klobucka, realçando a forma como a sua orientação sexual é ofuscada nas referências que lhe são feitas, evidenciando o efeito de “now you see it, now you don’t” que, neste caso, consiste num reconhecimento público sobre a sua vida e, simultaneamente, num disfarce sobre a homossexualidade, preferindo tratar as suas amantes, com quem partilhava casa, como amigas, damas de companhia ou governantas. A questão que aqui se coloca é a forma como esse facto pode ter afectado a sua carreira profissional e as opções residenciais, sendo, portanto, um elemento biográfico relevante, revelador da mentalidade da época e da forma como Virgínia Quaresma com ele lidou pessoal e profissionalmente.

Procurámos explorar um segundo aspecto das teorias feministas, remotamente inspirado na ascendência negra de Virgínia Quaresma, que reside nas particularidades actuais da teorização e do activismo das mulheres negras, muito centrado no seu agenciamento na produção de conhecimento, na desocultação dos interditos que as menorizam e na criação de organizações comunitárias de protecção das mulheres negras ou na liderança de instituições sociais e políticas, onde detenham real poder de transformação. A perspectiva transnacional - salvaguardando interesses e necessidades específicas - de cooperação entre diferentes movimentos e organizações de mulheres negras e a produção de conhecimentos são aspectos a relevar nas actuais concepções e são evidenciados no “diálogo” que publicamos. Seja onde for, as mulheres negras resistem a opressões de classe, de género e de raça, naquilo que denominamos como “interseccionalidade”, e que Audre Lorde ajuda a desconstruir, assinalando os riscos de hierarquia da opressão dentro dos próprios grupos oprimidos:

Por estar em todos esses grupos, aprendi que a opressão e a intolerância com o diferente existem em diversas formas, tamanhos, cores e sexualidades; e que, dentre aqueles de nós que têm o mesmo objectivo de libertação e de um futuro possível para as nossas crianças, não pode existir uma hierarquia de opressão. Eu aprendi que o sexismo (a crença na superioridade inerente de um sexo sobre todos os outros e, assim, seu direito de dominar) e o heterossexismo (a crença na superioridade inerente de uma forma de amar sobre todas as outras e, assim, seu direito de dominar) vêm os dois do mesmo lugar que o racismo - a crença na superioridade inerente de uma raça sobre todas as outras e, assim, seu direito de dominar. (Lorde, 2019, p. 235)

Em ambos os casos, os temas que elegemos assinalam a libertação de códigos supressores da palavra e reconhecem a força reivindicativa de alguns grupos na exigência de uma mudança de mentalidades que vise o respeito pela diferença, cruzando o activismo com a produção de conhecimentos teóricos.

A presente edição de Faces de Eva, tal como todas as outras, só foi possível graças ao empenho de quem para ela contribuiu através dos diferentes textos que publicamos, do trabalho de revisão por pares que sempre promove a qualidade dos conteúdos publicados e, por último, mas não menos importante, do trabalho inexcedível e entusiástico de uma equipa que nunca desiste.

Referências bibliográficas

Ernaux, A. (2020). Os anos (The years). Porto Editora. [ Links ]

Klobucka, A. M. (2009, Setembro, 11-12). Summoning Portugal’s apparitional lesbians: A to-do memo (Paper). Association of British and Irish Lusitanists, National University of Ireland at Maynooth. https://www.academia.edu/190256/_Summoning_Portugal_s_Apparitional_ Lesbians_A_To_Do_Memo_Links ]

Lorde, A. (2019). Não existe hierarquia de opressão (There is no hierarchy of oppression). In H. B. Holanda (Org.), Pensamento feminista: Conceitos fundamentais. Bazar do Tempo. [ Links ]

Manifeste des 343 (Manifesto of the 343). (1971, Abril 5). Le Nouvel Observateur, 334. [ Links ]

1Referimo-nos a um manifesto em que 343 mulheres, muitas delas figuras públicas, declaravam ter abortado, pretendendo com isso reagir contra o silenciamento de uma situação de todos conhecida, mas negada através de um pacto de cumplicidade com as perigosas condições em que o aborto era praticado. Entre as subscritoras do documento contavam-se Simone de Beauvoir, Jeanne Moreau, Catherine Deneuve, Françoise Sagan, Annie Leclerc, Antoinette Fouque...

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Isabel Henriques de Jesus. Email: misabeljesus@fcsh.unl.pt

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