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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.47 Lisboa jun. 2022  Epub 01-Ago-2022

https://doi.org/10.34619/9a8x-b4lf 

Homenagem

Uma mulher singular: Jornalista e feminista

Maria Augusta Anselmo Seixas


Virgínia Quaresma dominou o trabalho de jornalista como poucos. Sabia colocar as questões que se impunham no momento, com força e determinação e, desde as primeiras perguntas, conseguia estabelecer uma relação quase pessoal com o entrevistado. Não perdia tempo com perguntas de circunstância, para pôr o entrevistado à vontade. Tinha o talento de criar a atmosfera de um relacionamento antigo, amigável, indo direita ao assunto que ali a levava. Tinha um dom especial, conseguia pôr-se na pele do entrevistado, e essa atmosfera de proximidade permitia-lhe fazer perguntas sagazes, directas, sem preâmbulos. Tinha uma grande capacidade de observação e era rápida a contrainterrogar.

As barreiras sociais não existiam para ela; assim conseguiu cativar pessoas pertencendo a classes sociais muito diferentes, antagónicas mesmo, e estava à vontade tanto com homens, como com mulheres ou jovens. Nada lhe escapava, registava todas as impressões, sempre alerta com o que se passava à sua volta e no mundo. Era capaz de, pelo aspecto exterior das pessoas, perceber o seu íntimo e retratá-lo. Os jornais da altura estavam mais interessados na actualidade, nos factos, do que no comentário político; era a passagem do acontecimento dito ao acontecimento visto e descrito; a reportagem obrigava a sair para o exterior, a ir à procura dos testemunhos.

Virgínia tinha uma formação universitária completa, superior, portanto, à maioria dos seus colegas, frequentava os mesmos cafés, tinha uma rede semelhante de contactos, num universo muito diferente da sociabilidade de salão. A reportagem a quente, os acontecimentos vistos e verificados eram a sua visão da profissão. Era a escola da descrição dos factos e dos testemunhos, contra o jornalismo da palavra: «o jornalismo de hoje é reportagem, mas reportagem intensa, em que o repórter é obrigado a sentir, a roçar-se pelo facto - e ai daquele que ao escrever, a sua alma não compartilhe das suas descrições, porque o público o desprezará. O informador, o “pilha notícias” desapareceu há muito (…). Hoje o repórter é essencialmente culto» (A Época, 1918).

O seu salário, o dinheiro para viver, vinha da sua actividade jornalística.

Rocha Martins diferençou bem Virgínia Quaresma das outras mulheres que escreviam para os jornais da época, como Maria Amália Vaz de Carvalho, Guiomar Torresão ou Alice Pestana, que «tinham sido colaboradoras de periódicos, mas talvez nunca tivessem entrado numa redacção para escreverem, à banca do trabalho, algumas tiras de papel a que os jornalistas chamam “linguados”. Virgínia Quaresma foi a primeira senhora que exerceu a profissão de jornalista na acepção que modernamente lhe compete» (Martins, 1941).

Reinaldo Ferreira, que a conheceu mais tarde em A Capital, recordava nas suas memórias, escritas em 1945, que Virgínia era, naquele tempo, «a única senhora verdadeiramente jornalista» (Ferreira, 1945).

Pertencia a uma classe pioneira que fez do jornalismo o seu ofício, separou águas, ajudou a definir a profissão. Preocupou-se com a definição de quem podia ser classificado como jornalista e com a defesa desse mesmo estatuto. Única mulher entre os jornalistas reunidos no dia 3 de novembro de 1910, na redacção de O Mundo, Virgínia é eleita, pelos seus pares, para a comissão mandatada para diligenciar junto dos proprietários dos jornais diários a concessão de cinco feriados - 1 e 31 de Janeiro, 5 de Outubro, 1 e 25 de Dezembro -, tal como haviam sido decretados pelo Governo Provisório da República e que nem todos os jornais estavam dispostos a cumprir. Além de Virgínia, integravam a comissão Luiz Derouet, Eduardo Fernandes (Esculápio), Fraga Pery de Linde, Costa Carneiro e Correia dos Santos. Nessa assembleia, é debatida pela primeira vez a necessidade de clarificar a profissão criando um sindicato que defendesse e representasse os «verdadeiros profissionais», deixando de fora os que «como tal se intitulam, exercendo outras profissões ou não possuindo habilitações necessárias para o serem, concorrendo assim, deslealmente com aqueles e ocupando por preços ínfimos, os seus lugares legítimos». Interessava-lhes, também, regular as relações e condições de trabalho com as empresas jornalísticas no que diz respeito a salários, horas de trabalho, dignidade profissional, «propondo, nesse sentido, a constituição dum sindicato de classe, a ser legalizado pela República».

Virgínia Quaresma começou a sua carreira de jornalista em 1906, depois da morte do pai, no Jornal da Noite1. Muito nova, «era uma vocação irresistível - ou antes uma “vocação” - e eu tive de obedecer-lhe». Desse tempo, gostava de evocar a maneira como conseguira fazer o relato do funeral do Duque de Palmela, eminente nobre de quem nunca ouvira falar: «tive de pôr em prática um truc para saber pormenores (…) consistiu em disfarçar o vestuário e acompanhar ao palácio umas irmãs de caridade, a quem convenci que era amiga da família. Estive ajoelhada durante uma hora mas consegui fixar impressões e pormenores que me deram margem para mais de uma coluna de prosa» (A Capital, 1912).

Esta identificação com a vítima vai ela usar, com outros créditos, para denunciar a falta de segurança duma cadeia, no Brasil, e a corrupção da polícia. O caso ficou conhecido como o “caso Barata Ribeiro” e conta-se em poucas palavras: num paquete que ia para Pernambuco e que levava a bordo uma verdadeira fortuna em oiro, destinado à administração daquele estado, três gatunos furtaram alguns caixotes no valor de 2400 contos. Um desses gatunos, Barata Ribeiro, no momento em que ia a desenterrar o oiro roubado, foi surpreendido e preso e o ouro levado para o comissariado. O mais engraçado, porém, é que o dinheiro desaparecera misteriosamente da polícia.

Virgínia contratou um actor parecido com o gatuno, levou-o para junto do muro exterior da cadeia e fez-se fotografar ao seu lado, dizendo que o apanhara a evadir-se da prisão e que este homem lhe fizera revelações curiosas, revelações essas que mais não eram do que o fruto das suas investigações e que comprometiam imenso várias individualidades da polícia. O artigo deu brado e ainda mais brado deu a fotografia dela a segurar o braço do fugitivo que, afinal, era um actor caracterizado para o efeito.

Depois do fecho do Jornal da Noite, a convite de Manuel Guimarães, Virgínia entrou para O Século e por lá ficou com intermitências periódicas, mas regressando sempre. Quando Manuel Guimarães saiu para fundar A Capital, em 1910, convidou-a para integrar a redacção.

Tinha um grande sentido de justiça e um humanismo que a levava a defender os mais fracos, os mais castigados e deserdados.

Consciente da sua identidade de mulher só, sozinha como só as mulheres podem estar, colaborou sempre com os movimentos feministas que naqueles anos se formaram em defesa da paz, com o apoio dos livres-pensadores. A ideia central era propagar a ideia da “pacificação universal” e a resolução dos conflitos à mesa das negociações.

Alice Pestana fundou a Liga Portuguesa da Paz em 18 de Maio de 1899 e tinha como vice-presidente da secção masculina Magalhães Lima, que evoca esses tempos nas suas memórias: «a sua secção feminina desenvolveu-se rapidamente. No meu gabinete reuniam-se todas as tardes algumas senhoras interessadas no movimento. Dona Virgínia Quaresma pertencia a este número. Ainda me lembro da sua estreia, como oradora, na Sociedade Promotora da Educação Popular, em Alcântara» (Lima, 1928, pp. 254-256). Estamos em 1906. Virgínia, nessa sua alocução, justifica o convite que lhe foi endereçado pela sinceridade e entusiasmo com que combate pelo ideal feminista que é, na sua opinião, o combate central da democracia:

ser feminista é minha única carta de recomendação, o meu único título de glória no mundo intelectual. E não me dispenso dessa honra em parte nenhuma, embora eu saiba muito bem que o nosso meio social, ainda em grande parte, não compreende todo o orgulho, toda a altivez, toda a satisfação de razão e da consciência que me podem advir dela. Senhores, o feminismo e a democracia têm-se mutuamente acompanhado na sua evolução. Todos os países cultos que trabalham para confraternizar os povos, para lhes iluminar os espíritos, para lhes garantir os direitos, não esquecem que o ser feminino é uma molécula importante da grande massa popular e que a sua força e o seu poder não são dispensáveis na grande luta moral e económica travada pelas sociedades modernas. (Quaresma, 1906)

Mais tarde, formou-se a secção portuguesa da agremiação La Paix et le Désarmement par les Femmes, sob o patrocínio de Frondoni Lacombe. A nova sociedade era constituída exclusivamente por mulheres e, sob a chancela duma associação francesa, tinha condições para durar. Em 6 de Dezembro de 1906, na Rua das Portas de Santo Antão, eram eleitos os corpos gerentes da nova sociedade: secretária-geral Virgínia Quaresma, tesoureira Maria do Carmo Lopes, vogais Adelaide Cabete, Albertina Paraíso, Aureliana Teixeira Bastos, Carolina Beatriz Ângelo, Cláudia de Campos, Domitila de Carvalho e Emília Patacho.

Quando os diferentes partidos republicanos faziam por ter o movimento feminista sob a sua alçada, Virgínia conseguiu preservar a sua independência, não se deixando nunca enredar na militância partidária.

Virgínia nasceu em Elvas e nas suas recordações fala da sua mãe, uma mulher com porte aristocrático que abria as portas de casa com um lenço, do pai e irmãos, todos na carreira militar - o pai um bocado distraído, sempre a pensar em tudo menos no regimento militar. Os irmãos distinguiram-se na defesa da República.

Numa época de grandes agitações, a República estava à porta, Virgínia entrou na Universidade, no Curso de Letras, no ano lectivo de 1902-03. Ela e Berta Gomes de Almeida foram as primeiras mulheres aí formadas. A seguir, instalou-se no mesmo local o Curso de Habilitação para o Magistério, onde se formavam professores para o ensino secundário. Virgínia também aí se diplomou, ficando assim habilitada a dar aulas no ensino secundário. A sua dissertação de pedagogia abordava o tema Tipos Diferentes do Curso Liceal e a Coeducação. Foi convidada para dar uma cadeira de Feminismo na Universidade Popular. Tinha 24 anos.

Conhecemo-la pessoalmente de a vermos aqui ao nosso lado redigindo em poucos minutos um artigo cheio de fé e ardor pela causa feminista (…) indiferente a tudo o que a sociedade estupidamente legaliza de convencionalismo e de hipocrisia. (…) - Agrada-lhe a ideia de ser criada na Universidade Popular a cadeira de feminismo? - Não podia deixar de causar íntima satisfação. Eu sou uma sincera e convicta defensora do Ideal do Feminismo e tudo o que o possa levantar entre nós, enche-me de prazer e de vaidade. - Qual é o carácter que tenciona dar ao seu curso? - Tenciono encarar o feminismo sob um critério lógico e histórico. Demonstrarei como ele se impõe ao espírito libertário dos povos modernos no domínio moral e económico. Mas, sobretudo, o que naturalmente devo fazer é dar a este curso uma feição pedagógica. Que a mulher se deve educar compreendem-no hoje todos os meios cultos, mas como deverá ser ministrado é a preocupação de todos eles. (O Mundo, 1907).

Rapidamente Virgínia encetou o caminho da defesa da igualdade de direitos para as mulheres. Ainda estudante, já trabalhava, nomeadamente na revista Sociedade Futura, que tem no seu primeiro número, datado de 1 de Maio de 1902, como directora Ana de Castro Osório e como redactora Olga Morais Sarmento. Quatro meses depois, Olga Morais Sarmento passou a directora e, no número de 15 de Dezembro de 1902, Virgínia Quaresma figurava como secretária da revista. Na Sociedade Futura, lado a lado com o retrato das mulheres que ao longo dos séculos saíram do esquecimento pelo seu talento, na música, na escrita ou na política, outras são destacadas pelos seus salões literários, onde todos e todas podiam dar as suas opiniões sobre o dia-a-dia da governação dos respectivos países e ideias para a melhorar. Por vezes, os nobres davam um salário aos jovens promissores, permitindo-lhes, assim, dedicarem-se inteiramente aos seus talentos.

Em Maio de 1907, surgiu a revista Alma Feminina que, à semelhança de La Fronde, era uma revista dirigida, administrada, redigida e composta exclusivamente por mulheres. No primeiro número aparece o nome de Albertina Paraíso como directora e Virgínia Quaresma como secretária de redacção. Logo no n.º 2, desapareceu o nome de Albertina Paraíso na direcção, substituído pelo de Virgínia até ao fim da revista, em 1908. Nela abre o caminho ao aparecimento de mulheres jornalistas: «toda a colaboração feminina da nova revista será remunerada (…) está franqueado o primeiro passo para a mulher portuguesa entrar no jornalismo. (…) a revista promove concursos de fotografia, literários e artísticos, conferências feministas». Tem uma secção de modas e conselhos culinários. No editorial do n.º 8, Virgínia faz questão de impor a revista nas classes operárias.

Organiza um inquérito às fábricas e ateliers, mostrando o dia-a-dia das mulheres trabalhadoras, assim como insere na revista a propaganda das respectivas associações de classe. Organiza exposições de lavores femininos, um concurso de fotografia e um certame literário que consiste em completar um soneto.

Virgínia descreve o povo em pequenos relatos e traz para a luz do dia vidas desconhecidas: dá visibilidade às mulheres operárias, descrevendo as condições em que passam os dias, muitas delas a costurar em águas-furtadas, sem arejamento, ou nos grandes teares, a respirar, sem qualquer protecção, a poeira dos fardos de tecido e de lãs, por todo o lado; a apanhar, ao longo das linhas férreas, os bocados de carvão que caem dos vagões, para a família se aquecer e fazer a comida, com os filhos à espera delas, encostados às paredes dos corredores das fábricas ou em terrenos descobertos. Critica a cunhada de Ana de Castro Osório, feminista republicana, por ter despedido trabalhadoras na fábrica de conservas quando ficou viúva e com dívidas por pagar.

Nas páginas da revista Alma Feminina, assim como mais tarde na página sindical e do trabalho do jornal A Capital, as lutas operárias não foram esquecidas e ficamos a conhecer as mulheres que encabeçaram a luta pela igualdade de salários, e foram muitas.

Quando Manuel Guimarães saiu de O Século para fundar A Capital, em 1910, convidou Virgínia Quaresma para integrar a nova redacção. Ela e Hermano Neves faziam as coisas de maior impacto: reportagens de rua, crime, entrevistas.

O relato que ela faz a Maurício de Oliveira sobre a declaração de guerra da Alemanha a Portugal é exemplar: a pedido do Governo inglês, o Governo português encarregou a Marinha de apresar os navios mercantes alemães estacionados nos portos nacionais, para cima de 70. A Alemanha protestou e, na manhã de 9 de Março, Van Rosen pediu uma entrevista ao ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares:

tudo se passou num ápice. Abriu-se a porta do gabinete e saiu o Rosen muito formalizado. De expressão dura, a barbicha branca, hirsuta, os lábios contraídos, passou junto a mim, sem sequer me olhar. Caminhava aliás de olhos postos no chão. Era a guerra, sem dúvida. O dr. Augusto Soares não apareceu no limiar da porta a acompanhá-lo. Despediram-se, de resto com uma vénia, sem se apertar as mãos… Enquanto o chefe de gabinete acompanhava Rosen, tomei uma decisão à minha maneira: abri a porta do gabinete do ministro - que me olhou com espanto - entrei com ar dramático e disparei-lhe a pergunta: é a guerra Sr. Ministro? A expressão de Augusto Soares transmudou-se num instante. Readquiriu logo aquele tom de rara elegância que o definia e comentou: - Você estava cá Virgínia… Respondi-lhe: - Estaria aqui o dia inteiro à espera “disto”, meu caro dr. Augusto Soares… O Ministro muito calmo abriu um daqueles sorrisos discretos que o tornavam fascinante ao primeiro contacto e disse-me: Sim Virgínia, é a declaração de guerra da Alemanha a Portugal. Vou comunicar esta visita ao dr. Bernardino Machado e ao chefe do Governo e dirigir-me-ei ao Parlamento para anunciar ao país o histórico acontecimento. A notícia, claro, correu célere, mas a primeira pessoa que a conheceu, depois do ministro dos Negócios Estrangeiros, foi esta sua velha amiga e camarada. Corri desalvorada, para o jornal e, ofegante, ao entrar na redacção, exclamei: “Rapazes! A Alemanha declarou-nos guerra! Disse-mo agora mesmo o Soares” (Oliveira, 1971)

Um dia, o seu feitio já não se acomodava com as lutas pelo poder dentro da família republicana, alguém lhe elogiou o Brasil e ela partiu à procura de espaços mais vastos: tinha espírito de aventureira e a sua curiosidade inata abriu novas portas ao seu talento.

Quando foi convidada para trabalhar no Brasil, Virgínia teve como primeira tarefa entrevistar um dos homens mais poderosos na política brasileira da altura, o senador Pinheiro Machado, chefe do Partido Republicano Conservador. A partir daí, tornou-se exímia na reportagem eleitoral/política, no Brasil e em Portugal, entrevistando as figuras cimeiras da política nos dois países, conseguindo furos com o Presidente da República portuguesa e o do Brasil, assim como com Afonso Costa, que fugia às declarações públicas. Entrevistou o grão-mestre da maçonaria brasileira, Lauro Sodré, que, juntamente com Ruy Barbosa, eminente jurista, eram vistos como alternativa credível ao poder de Pinheiro Machado. As suas entrevistas provocavam sempre por arrasto agitação política. Ia para o terreno, entrava em todo o lado, sedes de Câmaras, Ministérios - sendo o dos Negócios Estrangeiros de difícil acesso aos jornalistas -, bancos, sede do Governo, Bolsa, transmitindo muitas vezes uma proximidade humana. Fazia política de proximidade. A sua amiga e poetisa Maria da Cunha tinha a responsabilidade da página literária e feminista. Em socorro de Angelina Vidal, Virgínia escreveu um artigo que daria brado pela acutilância da acusação de ingratidão aos que mandavam em Portugal. Graças a ela, durante algum tempo, Angelina Vidal ganhou a sua subsistência com as Crónicas Lisbonenses que enviava semanalmente para A Época.

As reportagens de Virgínia (1912, Dezembro 4) sobre o assassinato da mulher pelo marido, João Pereira Barreto, um poeta/escritor muito conhecido na alta roda brasileira, são um testemunho implacável da sua defesa das mulheres2.

Virgínia recolheu testemunhos e partiu em perseguição do assassino confesso que, entretanto, fugira (Quaresma, 1912, Dezembro 4). Perseguiu-o por todo o Brasil, descobriu-o, sentou-o no banco dos réus, relatou os julgamentos. O relato dos julgamentos era minucioso, não deixando quaisquer dúvidas sobre a culpabilidade do poeta da alta roda. Nunca ninguém na sociedade carioca da altura esquecerá a perseguição que Virgínia moveu a este homem; ela passou a ser a bandeira da defesa das mulheres enquanto vítimas do machismo, a quem tudo era permitido, até tirar a vida à amada.

Em 26 de Junho de 1914, A Época noticiou que João Pereira Barreto não fora julgado por não haver número legal de jurados. Em 27 de Junho, foi finalmente julgado e condenado a 21 anos de prisão. Recorreu da sentença e, depois de mais um adiamento, foi absolvido em 15 de Março de 1916. O povo, segundo o relato de A Época (1916), tentou linchá-lo à saída, mas «a força pública dissolveu o povo à baioneta» (p. 3). Os jurados e advogados foram vaiados.

No mesmo jornal, na página de trabalho e sindicalismo, podem ler-se relatos exaustivos das lutas dos trabalhadores brasileiros pelos seus direitos, quer contra as forças da ordem nas ocupações de fábricas ou manifestações de rua, quer em congressos, nacionais e internacionais, greves e reivindicações, que muitas vezes denunciam a corrupção política. A responsabilidade da secção sindicalismo e trabalho era de Orlando Correa Lopes, anarquista que foi o representante dos brasileiros ao Congresso Anarquista Internacional de Londres, em Julho de 1914. Era presença constante nos comícios sindicais, mas, enquanto anarquista, não advogava meios violentos para acabar com a miséria dos trabalhadores.

Quando a guerra eclodiu, Virgínia pôs todos os seus conhecimentos ao serviço das informações sobre o conflito através da agência de notícias Latina, que criara em 1918 e onde trabalhavam jornalistas de grande mérito. Ela própria foi correspondente de guerra do jornal A Época, com relatos sempre à frente dos outros periódicos. Trazendo ao conhecimento público, em primeira mão, dados desconhecidos dos seus colegas, foi-se afirmando cada vez mais como uma jornalista de excepção. Ao mesmo tempo sublimou os cartazes a favor das vítimas da guerra, os estropiados, os órfãos, as viúvas, com desenhos dos melhores e mais inovadores desenhadores da altura. Todas as feministas se afastaram dos caminhos da paz. Eram contra os alemães e, claro, o patriotismo prevalecia.

A 1.ª Guerra Mundial trouxe, por arrasto, a entrada das mulheres nas fábricas de armamento, de fardas, de calçado, e as de conservas trabalhavam dia e noite. Os que partiam transmitiam às mulheres a responsabilidade da família e do trabalho, que elas agarraram com ambas as mãos, conquistando, assim, um lugar de que muitas nunca mais se arredaram.

Virgínia sempre valorizou o trabalho das mulheres; dirigiu um jornal feito só por mulheres, mas em que os homens também eram entrevistados. Tinha mesa nos cafés onde os jornalistas do turno da noite se reuniam e trocavam impressões madrugada dentro. Tanto no Chiado, como nos Restauradores, a vida intelectual desenrolava-se, em grande parte, nos cafés, onde se encontravam os poetas, os escritores, os pintores, os jornalistas, com uma chávena de café à frente e muita conversa. Aí encontravam inspiração. Regressava a pé para casa, sempre em companhia dum ou outro e a conversa continuava.

Militava pelo direito das mulheres ao trabalho e à educação. Batia-se se pela entrada das mulheres em todas as profissões e ela própria foi vítima de certos regulamentos retrógrados: tendo concorrido ao lugar de 2.º Secretário da Embaixada em Paris, a pedido da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, o lugar foi-lhe vedado simplesmente por ser mulher, apesar de ser a mais habilitada e com melhores classificações de todos os concorrentes. Era então Bernardino Machado Ministro dos Negócios Estrangeiros, que conhecia Virgínia Quaresma e a sua simpatia pela causa republicana. Em muitos eventos se sentara ao lado dele, na mesa dos oradores. Enquanto repórter, fizera muitas vezes e durante muito tempo a campanha democrática e educativa de Bernardino Machado, de modo que, quando Pinheiro Machado, a sua primeira grande entrevista no Brasil, lhe perguntou se conhecia Bernardino Machado, ela respondeu que sim, muito bem, sendo até sua amiga pessoal e admiradora, mas acrescentou que era uma independente no campo da política, nunca tendo aceitado favores da Monarquia, nem da República.

Em Abril de 1918, começou uma nova fase no jornal A Época: Vicente Piragibe, até então director, decidiu dedicar-se à sua carreira de senador e o jornal ficou propriedade de Almeida Godinho. Virgínia estava em Lisboa como correspondente, a fazer a cobertura da guerra e a dirigir os Escritórios Internacionais de Publicidade. Colocou então Reinaldo Ferreira no seu lugar, num espaço agora mais reduzido, chamado “Página Portuguesa”.

Em 10 de Novembro de 1918, A Época noticia a chegada a Lisboa de Óscar de Carvalho Azevedo, director da Agência Americana, de visita à delegação na capital portuguesa, dirigida por Virgínia Quaresma. Com a guerra e a penúria de papel, a publicidade tornara-se um elemento indispensável. A sobrevivência e independência dum jornal, a sua modernização e melhoramento dependiam da publicidade redigida, como lhe chamaram na altura. Entregaram a sua redação a jornalistas de talento, garantia do seu êxito junto do público. A Capital lembra o papel da Agência no desenvolvimento das relações luso-brasileiras e o apoio dos seus serviços de publicidade à delegação brasileira na Conferência da Paz. Em Dezembro de 1918, Virgínia Quaresma está em Paris, onde instalou os escritórios da Latino-Americana ou Americana, e encarrega Reynaldo Ferreira de abrir uma delegação em Madrid.

Em 1922, Virgínia dirige o serviço de imprensa da Companhia Colonial de Navegação que acumula com o trabalho de redactora de O Século. Nesse mesmo ano, volta ao Brasil por ocasião da Grande Exposição Internacional da Independência do Brasil, em representação daquele jornal e, juntamente com Adriano de Vasconcelos e Acúrsio Pereira, organiza o apoio aos jornalistas portugueses e ao Comissariado das Comemorações do Centenário. O Século produz o Catálogo e o Livro de Ouro, dirigidos por Leal da Câmara. António José de Almeida visitou a Exposição no Rio de Janeiro e a sua estadia foi um sucesso.

Em 1933, Virgínia regressou de novo ao Brasil, no âmbito da Feira Internacional de Amostras do Rio de Janeiro: foi a responsável pela Semana Cultural Portuguesa, patrocinada por O Século. Acompanhava-a a viúva do seu grande amigo Silva Passos. Foi um certame de turismo e de alta cultura. Nesse ano, os dirigentes da Associação Brasileira de Imprensa reservaram-lhe o lugar de honra nas celebrações do Dia da Imprensa. Foi, igualmente, convidada para o lançamento da primeira pedra do Liceu Literário Português. Para além do tratado comercial entre os dois países, o Brasil enviou uma delegação de estudantes a Portugal e decidiu organizar uma embaixada feminina. O Século distribuiu um suplemento dedicado ao Brasil, fruto do trabalho de Virgínia, desse trabalho aturado de levantamento de empresas e actividades industriais e turísticas em que treinara a redacção da Agência Americana, assim como as redacções de O Século e A Capital. São levantamentos feitos para informar e dar a conhecer a indústria e o comércio do nosso país.

Continuou como coordenadora dos serviços de imprensa da Companhia Colonial de Navegação, que, em 1952, sob o seu impulso, instituiu duas bolsas anuais de viagem a Portugal para alunos e funcionários do Liceu Literário Português. O Liceu dava instrução a crianças da terra, sem indagar da nacionalidade, da raça, da classe, do partido. Era uma obra de assistência gratuita e conferia aos seus alunos diplomas oficializados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Aceitou o convite para trabalhar no Diário Português, de António Guimarães, de quem era amiga desde o Jornal da Noite. Em 1944, Virgínia chefiava a publicidade do jornal Brasil-Portugal (fundado por Viriato Dornelas Vargas, irmão do Presidente Getúlio Vargas), mais tarde Diário do Povo, continuando a escrever os seus artigos sobre as empresas portuguesas no Brasil. Getúlio deu o direito de voto às mulheres brasileiras e contava com o apoio da comunidade portuguesa. Virgínia acumulava com o trabalho na Sino Propaganda, a mais famosa agência de publicidade brasileira e a mais cotada no mercado.

Depois de se ter fixado no Brasil, todos os anos ia a Paris, onde se abastecia de roupa. Gostava dos vestidos bonitos, com tecidos sedosos e cores inéditas, dos tailleurs bem cortados, da roupa de marca, de sapatos à moda e de chapéus insólitos.

Em 1973, Virgínia recebeu o título de cidadã carioca do Município do Rio de Janeiro e a Ordem do Mérito Jornalístico, que lhe foi entregue pelo presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, o mais alto galardão da classe. Também foi condecorada com a medalha Imperatriz Leopoldina do Instituto Histórico-Geográfico de São Paulo.

Em 1919, foi condecorada pelo Governo Português com o Grande Oficialato da Ordem de Santiago devido aos serviços prestados durante a Guerra, nomeadamente o acompanhamento exaustivo que fez da participação de Portugal e o trabalho de propaganda desenvolvido pela Agência Latino-Americana em benefício dos mutilados da guerra. Foi ainda agraciada com as medalhas de prata e ouro do Liceu Literário Português.

Morreu de trombose cerebral aos 91 anos. Das pessoas que conhecera e amara, nenhuma estava viva. Do mundo que relatara nos seus artigos, já pouco restava.

O feminismo, que fora a sua força e a sua luta, era uma bandeira a meia haste. Viveu para o jornalismo e fez dele o seu único companheiro, a vida inteira: «Fui apenas uma redactora que amava o jornalismo e que vivia para a reportagem» (Quaresma, Maio de 1971).

Virgínia Quaresma foi mais do que uma mulher jornalista numa redação de homens. Foi uma activista pela causa das mulheres e da paz e defendeu a coeducação.

Integrou os primeiros movimentos feministas na defesa da Paz e tomou partido pelas mulheres trabalhadoras na revista Alma Feminina. Em A Capital criou uma página sobre as lutas dos trabalhadores onde os nomes das mulheres que se destacavam nessas lutas eram sempre referidos.

Escreveu e falou sobre a libertação da mulher. Mas não só. Para ela, o movimento operário, as lutas operárias contribuíam para a emancipação da classe trabalhadora como um todo, mulheres incluídas.

Referências bibliográficas

A Capital (1912, Junho 2). Uma jornalista portugueza parte brevemente para o Brazil onde vai exercer a sua profissão (A Portuguese journalist will soon leave for Brazil where she will practice her profession). A Capital, p. 1. [ Links ]

A Época (1916, Março 15). A Época, p. 3. [ Links ]

A Época (1918, Outubro 15). Tem a palavra Virgínia Quaresma. A paisagem brasileira. A política do Brasil. O jornalismo moderno. O caso Barata Ribeiro (Virginia Quaresma has the word. The Brazilian landscape. The politics of Brazil. Modern journalism. The Barata Ribeiro Case). A Época, p. 5. [ Links ]

Ferreira, R. (1945). Memórias extraordinárias do Major Calafaia (Extraordinary memoirs of Major Calafaia). Vida Mundial Editora. [ Links ]

Lima, M. (1928). Episódios da minha vida: Memórias documentadas (Episodes from my life: Documented memories). Obreiros da civilização. [ Links ]

Martins, R. (1941). Pequena história da Imprensa Portuguesa (A short history of the Portuguese press). Inquérito. [ Links ]

O Mundo (1907, Março 16). O Mundo, p. 4. [ Links ]

Oliveira, M. (1971, Fevereiro 20). Virgínia Quaresma - A derradeira relíquia da primeira fase d’A Capital recorda-nos um episódio da sua vida de jornalista (Virgínia Quaresma - The ultimate relic of the first phase of A Capital reminds us of an episode from her life as a journalist). A Capital, pp. 2-3. [ Links ]

Quaresma, V. (1906, Novembro 5). Um discurso feminista (A feminist speech). Jornal da Mulher. [ Links ]

Quaresma, V. (1912, Dezembro 4). O inferno do ciúme. Um marido assassina a mulher a tiros de pistola e, após a confissão do crime, evade-se (The hell of jealousy. A husband murders his wife with pistol shots and, after confessing to the crime, escapes). A Época, p. 1. [ Links ]

Quaresma, V. (1912, Dezembro 5). O inferno do ciúme, ainda a tragédia de Nitheroy. O assassino ainda não foi encontrado (The hell of jealousy, Still the tragedy of Nitheroy. The killer has not yet been found). A Época, p. 1. [ Links ]

1O Jornal da Noite foi suspenso em Maio de 1907, quando da agitação social e política que grassava em Lisboa e que culminou no assassinato do rei D. Carlos e do príncipe D. Luís Filipe, um ano depois.

2“O inferno do ciúme. Um marido assassina a mulher a tiros de pistola e, após a confissão do crime, evade-se. O autor da tragédia é um escritor em evidência e chefe de redactores dos debates da Câmara dos Deputados (João Pereira Barreto, escritor, autor de ‘Selvas e Céos’). A triste odisseia duma esposa mártir. A polícia põe-se em campo - os repetidos e violentos impulsos dum louco” (Quaresma, 1912).

Aceito: 17 de Maio de 2022

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