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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.47 Lisboa June 2022  Epub Aug 01, 2022

https://doi.org/10.34619/fvpd-kkdq 

Estudos

Frankenstein ou a monstruosidade como prática feminista e subjetividade queer

Frankenstein or monstrosity as feminist practice and queer subjectivity

Miguel Ângelo Baptistai 
http://orcid.org/0000-0001-8570-2025

1i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1069-061 Lisboa, Portugal


Resumo

A análise do romance Frankenstein, or the modern Prometheus procurou ressignificar a figura do monstro, subvertendo o conceito da abjeção que estrutura o texto narrativo. O processo de subjetivação da personagem permite-lhe tomar consciência de si mesma, enunciando o «eu» ontológico, ato que atesta a sua emancipação como corpo-potência e sujeito queer, face à hostilidade humana. A fim de se estabelecer uma leitura em prol da personagem literária, tentou-se evidenciar certos aspetos textuais que confirmam a benevolência do sujeito despersonalizado, revelando o seu desejo de aceitação.

Palavras-chave: feminismo; literatura gótica; intertextualidade; subjetividade queer

Abstract

Frankenstein or monstrosity as feminist practice and queer subjectivity. The analysis of the novel Frankenstein, or the modern Prometheus sought to re-signify the figure of the monster, subverting the concept of abjection that structures the narrative text. The process of subjectivation of the character allows it to become aware of itself, enunciating the ontological self, act that testifies its emancipation as a body of potency and as a queer subject, in the face of human hostility. In order to provide a reading in favour of the literary character, certain textual aspects that confirm the benevolence of the depersonalised subject have been highlighted, revealing its desire for acceptance.

Keywords: feminism; gothic literature; intertextuality; queer subjectivity

Introdução

O presente estudo centra-se na análise do romance gótico Frankenstein, or the modern Prometheus, cuja problematização se ensaia a partir de três perspetivas: crítica feminista, psicanalítica e, por fim, queer. Os argumentos a considerar dividem-se, portanto, em três abordagens teóricas, o que permite uma leitura polissémica no que diz respeito ao topos literário da obra. Após o desenvolvimento do enunciado, espera-se que cada leitor(a) consiga (re)ler o romance através de um olhar feminista e queer. A ficção do monstro contém uma leitura política, pois o sujeito subalterno (a criatura sem nome) considera, a título de exemplo, aspetos como a classe social, o género, a sexualidade ou, até, a deficiência física e mental na sua constituição ontológica.

O livro foi impresso em três volumes (com uma tiragem de 500 exemplares), em 1818, e recebeu logo críticas muito variadas, dado que continha elementos que atentavam contra a moral vitoriana e os valores cristãos da sociedade inglesa do século XIX. Além disso, o romance foi publicado sob anonimato, prática bastante comum entre várias escritoras, cujas obras literárias eram frequentemente editadas com um pseudónimo masculino ou anonimamente. Como Virginia Woolf viria a escrever mais tarde: «Anon, who wrote so many poems without signing them, was often a woman» (Woolf, 2016, p. 48). Em todo o caso, Mary Shelley conseguiu entrar no cânone literário inglês, admissão que começou a permitir a presença de mulheres na literatura canónica, sobretudo enquanto figuras autorais num espaço predominantemente masculino. Os motivos que justificam a ocultação do nome da escritora na primeira edição do romance têm que ver com a desigualdade de tratamento entre géneros na consideração de obras literárias. Ora, é nas palavras de Charlotte Brontë que a resposta à questão da omissão do nome é esclarecida: «I wish all reviewers believed ‘Currer Bell’ (o seu pseudónimo masculino) to be a man; they would be more just to him. You will, I know, keep measuring me by some standard of what you deem becoming to my sex» (Gary, 1936, p. 527).

A sociedade inglesa oitocentista, assim como outras culturas ocidentais do mesmo período, não assentia ver as mulheres como sujeitos financeiramente independentes, autónomas de figuras masculinas. As expetativas eram fundadas no confinamento da mulher, sobretudo se esta pertencesse a um estrato social médio. Isto não significa que as mulheres das camadas sociais baixas não fossem também vítimas do patriarcado. As suas funções eram regidas pelo matrimónio e pela subsequente administração do espaço doméstico a que eram sujeitas. Para além de esposas, preocupavam-se também com a sua condição de mães e filhas, garantindo assim uma sucessão, que legava às gerações posteriores um estatuto social, herdeiras de costumes androcêntricos (Gleadle, 2001).

A intenção deste estudo é a de evidenciar uma leitura bastante ausente, particularmente no imaginário coletivo, do monstro de Frankenstein. A personagem, frequentemente mal-entendida, é pois vítima de uma tresleitura, isto é, uma interpretação descuidada que procura defini-la, sem entender as especificidades da criatura. Além disso, a paisagem, manifestamente gótica, é construída a partir de condições meteorológicas hostis, um ambiente lúgubre ou as gélidas montanhas, que compõem uma espécie de teatro do horror, apelando assim à alienação e ao medo alheio. Eis um exemplo da atmosfera sombria: «Darkness had no effect upon my fancy; and a church-yard was to me merely the receptacle of bodies deprived of life, which, from being the seat of beauty and strength, had become food for the worm. Now I was led to examine the cause and progress of this decay, and forced to spend days and nights in vaults and charnel houses» (Shelley, 2018, p. 40).

Todavia, é bastante curioso observar as representações que se têm feito do monstro na cultura popular. Este não só foi desvirtuado no cinema norte-americano, como ainda é incompreendido pelo público de hoje (comparem-se respetivamente as adaptações cinematográficas, ambas intituladas Frankenstein, de 1910 e 1931, e considere-se a primazia de Victor Frankenstein sobre a criatura, cuja existência é insignificante). A versão de James Whale foi, com efeito, a adaptação que ajudou a criar o mito do monstro. Ora, por que motivo prevalece a repulsa pela criatura e não a sua aceitação? O que escapou? Um dos aspetos que pode ajudar a refletir sobre esta problemática é o da (a)moralidade: é importante recordar que, embora a criatura tenha nascido num corpo adulto, falta-lhe o desenvolvimento afetivo e moral, necessário no processo de formação identitária das crianças. Portanto, é o abandono e a negligência que levam a criatura, desprovida de estímulos psicossociais, a cometer os atos de vingança. O monstro nunca foi senão vítima de um sistema político que não o reconheceu como pessoa e a articulação desta ideia está ancorada na sua imagem como sujeito queer: o seu corpo ininteligível não obedece à estética e ética da narrativa, acabando pois por ser considerado uma figura grotesca e anacrónica, em relação aos costumes e valores da sua época histórica.

Ora, a fundamentação teórica a que se recorreu para a análise do romance foi essencialmente construída a partir do pensamento de duas filósofas determinantes para a teoria feminista: Judith Butler e Simone de Beauvoir. A partir da desconstrução do significado de mulher, foi possível dissecar certas noções que, embora tidas como reais, não são mais do que artifícios que formam representações aparentemente verosímeis do corpo, da identidade e da sexualidade humana. Assim, procurou-se ler a performatividade da criatura abjeta e temível como exemplo da violência a que vários corpos são sujeitos: a mulher lésbica, negra e/ou trans, bem como tantas outras subjetividades queer, são percecionadas como monstros numa sociedade que nega a existência de tais identidades.

A abjeção do corpo

A crítica literária feminista, sob uma perspetiva interseccional, é um exercício que coloca algumas das problematizações da tese em causa. De acordo com esta proposição teórica, o feminismo entende a mulher enquanto sujeito e, por extensão, as identidades sexuais, segundo as teorias queer. Isto significa que, ao tornar-se consciente de si mesmo, o sujeito passa a ser capaz de enunciar a sua realidade subjetiva, mesmo que a partir de um vocabulário finito.

Assim, o acesso à palavra não só se torna num ato político, como também legitima a realidade da pessoa falante: «centro-me numa figura que escreveu com o próprio corpo. É como se ela tivesse tentado “falar” além da morte, tornando o seu corpo grafemático» (Spivak, 1988/2021, p. 17). Aludindo ao suicídio de uma mulher, Spivak lê assim a enunciação do sujeito subalterno, onde a morte funciona como modo de se fazer ouvir num regime capitalista e falogocêntrico1, em que o sujeito colonial não tem voz.

O monstro, tal como a mulher do ensaio (Spivak, 1988/2021), considera a morte uma espécie de agenciamento irrevogável, no qual as lógicas do poder masculino são interrompidas, procurando pois ser ouvido através do seu aniquilamento. A vindicação pela autonomia e emancipação do sujeito, quer este seja feminino ou queer, quer seja deficiente físico ou neurodivergente, permite-lhe a apreensão do seu corpo, tornando-se politicamente visível diante do outro. Se a subjetividade do monstro não for considerada, então não há lugar para si no mundo. Ora, é aqui que o sujeito se constrói, partindo assim em busca do que significa ser e ter um corpo. Frankenstein é, por excelência, um romance basilar para a conceção da crítica literária feminista, na medida em que o texto é passível de várias leituras, que vão ao encontro de algumas disciplinas académicas, como a dos estudos de género e queer, estudos pós-coloniais, ou ainda os mais recentes estudos sobre a deficiência.

A questão do género em relação à sua inscrição num corpo foi amplamente discutida em O Segundo Sexo, obra incontornável dos estudos de género. Beauvoir analisa extensamente o conceito do eu e do outro, embora refletindo, em primeira instância, no campo da filosofia, sobre o significado da mulher: «A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o não-essencial perante o essencial. O homem é o ser, o Absoluto; ela é o Outro» (Beauvoir, 2016, p. 16). A alteridade presente no eu e no outro, aqui evocada por Beauvoir, é desenvolvida na introdução do livro: «o sujeito só se põe opondo-se: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o abjecto» (Beauvoir, 2016, p. 17).

O dualismo do opressor/oprimido prefigura o texto literário: a criatura nasce num corpo medonho, mas são as instituições que a remetem para o lugar da monstruosidade. Logo, o sujeito constrói-se através de estruturas sociais pré-estabelecidas ao seu devir ôntico; ou seja, o olhar do outro regula biopoliticamente o corpo a partir de um complexo sistema, em que a vontade do eu pouco importa: «The point of the exercise (…) is to ask which types of power are promoted (…), affirmed by official discourse, and reiterated at the level of informal practices over and over again? Who tends to gain by receiving symbolic recognition as the “normal”, and who tends to lose out as the excluded “other” as a result?» (Smith, 2016, p. 967). Pode a criatura escapar à formulação estigmatizante que a desumaniza? Por mais que queira, não pode, visto que ela não é dona de si mesma e a sua existência está subordinada aos dispositivos de poder que Michel Foucault criticou (Foucault, 2018/2019).

As relações de poder são cruciais para o entendimento do sujeito subalterno. A criatura, nunca nomeada, é exemplo dessa tensão. A desumanização é uma forma de dominação e esvaziamento do corpo colonizado, e, assim, noções existentes sobre humanidade ou inumanidade, perceções que anulam ontologicamente o monstro de Frankenstein, são elaboradas a partir do logos, construído à imagem do homem como arquétipo universal. Julia Kristeva analisa o abjeto na literatura como um conflito entre partes, diluindo pois as fronteiras entre eu/outro ou sujeito/objeto. A criatura, abjetamente grotesca, obriga o sujeito a confrontar-se com determinados tabus, como o da morte, visto que o seu corpo representa uma dicotomia: este existe entre a vida e a morte, forçando qualquer leitor(a) a deparar-se com o seu próprio fim. O aspeto cadavérico do monstro abjeto lembra portanto a mortalidade dos humanos: «The corpse, seen without God and outside of science, is the utmost of abjection. It is death infecting life. Abject. It is something rejected from which one does not part, from which one does not protect oneself as from an object» (Kristeva, 1982, p. 4).

O aniquilamento da subjetividade do outro foi engendrado com o objetivo de obliterar o sujeito, o que confirma a tese de Spivak, revelando não só a submissão não consentida do sujeito colonizado (leia-se aqui o monstro), como também a rasura do outro, o abjeto: «Até muito recentemente, o mais claro exemplo disponível dessa violência epistémica era o projecto orquestrado à distância, vasto e heterogéneo de constituir o sujeito colonial como o Outro» (Spivak, 1988/2021, p. 53). Em paralelo, a dinâmica da relação entre pai e filho, isto é, o criador e a criatura por si gerada, concretiza-se numa relação abusiva. O tratamento atroz a que a criatura sem nome é sujeita revela a dimensão perversa da violência física e mental, perpetrada pelas personagens do romance visado.

Perspetiva feminista

A crítica literária feminista estruturou-se sobre três correntes de pensamento: a perspetiva britânica, a francesa e a norte-americana. Estas foram, em traços gerais, as escolas que moldaram a teoria feminista no decorrer do século XX. Enquanto as feministas norte-americanas teorizavam sobre os padrões recorrentes da experiência feminina presente na literatura produzida por mulheres (veja-se o tema das obras literárias escritas por mulheres no contexto norte-americano: o espaço doméstico, os distúrbios mentais, a imagem do corpo da mulher, etc.), as feministas francesas questionavam antes o sistema linguístico, que produzia significado a partir de práticas discursivas, subsequentemente legitimando a objetificação da mulher e a sua redução a fetiche. As táticas das mulheres, subjugadas à falocracia institucionalizada, passavam por recorrer ao silêncio ou à muito citada écriture féminine. Por outro lado, as feministas britânicas criticavam as perspetivas anteriormente referidas, entendendo-as como abordagens essencialistas, pois não consideravam o capitalismo como a verdadeira causa da subalternidade das mulheres, vítimas de um regime económico que as oprimia. As relações sociais eram assim engendradas por um modelo economicista, que procurava remeter as mulheres para um lugar de inferioridade. As suas preocupações eram, pois, de cariz material, na medida em que a literatura, como instrumento de doutrinação, não só servia para fixar um discurso misógino, como para limitar o acesso das mulheres à palavra (Hoeveler, 2004).

Segundo Hoeveler, Frankenstein é um trabalho literário propenso a leituras várias, com perspetivas distintas entre si. Moers (1976) foi uma das primeiras críticas literárias que trabalhou sobre o romance a partir de uma leitura feminista: «Moers (…) recognize(s) that Frankenstein evolved out of Shelley’s own tragic experience as a young, unwed mother of a baby who would live only a few weeks. (…) Frankenstein is a “birth myth” that reveals the “revulsion against newborn life (…)”» (Hoeveler, 2004, p. 46). Para a autora, o romance permitiu que Mary Shelley manifestasse a sua culpa internalizada por ter causado a morte da mãe, falecida dias depois do seu nascimento, e expurgasse a angústia sentida pela perda do seu próprio filho, vítima de um aborto. Esta interpretação lembra a importância da escrita para recuperar de um possível estado de melancolia. Knoepflmacher (1979) foi outro crítico literário que analisou a obra, embora sob uma leitura psicanalítica. Para este autor, a abordagem psicobiográfica revela a relação conflituosa entre Mary Shelley e os seus progenitores: «Frankenstein resurrects and rearranges an adolescent’s conflicting emotions about her relation both to the dead mother she idealized and mourned and to the living, ‘sententious and authoritative’ father-philosopher she admired and deeply resented» (Hoeveler, 2004, p. 47).

Outras autoras, como Sandra M. Gilbert e Susan Gubar (1979), são referidas na discussão sobre o romance. Para elas, Frankenstein é um livro híbrido, que procura remendar as noções de literariedade e feminilidade, potenciando o seu lugar como espaço afetivo: «Gilbert and Gubar coin(ed) the term “bibliogenesis” to capture their sense of Shelley’s “fantasy of sex and reading”, that she brought herself to birth not through a human mother, but through the reading and consumption of books which “functioned as her surrogate parents”» (Hoeveler, 2004, p. 47). Esta é seguramente uma das mais curiosas abordagens, visto que assinala a importância da leitura para a construção da subjetividade da autora, sobretudo considerando a ausência dos pais. Poovey (1984) é também chamada para localizar a tensão entre sexualidade e textualidade implícita no romance: «(T)he narrative strategy of Frankenstein, like the symbolic presentation of the monster, enables Shelley to express and efface herself at the same time and thus, at least partially, to satisfy her conflicting desires for self-assertion and social acceptance» (Hoeveler, 2004, p. 48). O confronto entre perspetivas evidencia uma (re)leitura feminista do romance. De acordo com as análises referidas, é possível observar o seguinte em todas elas: Frankenstein não só reflete a interioridade psíquica de Mary Shelley, como ainda depende da capacidade de interpretação de cada leitor(a).

Não obstante, é conveniente recordar determinadas observações a propósito da mulher na literatura inglesa, ensaiadas por Virginia Woolf, no seu célebre ensaio A Room of One’s Own. Não deixa de causar estranheza que o nome de Mary Shelley nunca seja referido no texto, havendo apenas sido evocado o do seu esposo, Percy Bysshe Shelley. Como pode a escritora de Frankenstein ter sido assim esquecida? Virginia Woolf, em diálogo intertextual com outras escritoras inglesas que a precederam, propõe a figura da mulher como espelho, que reflete o ego do homem, situação análoga na relação entre Victor Frankenstein e a criatura: «Women have served all these centuries as looking-glasses possessing the magic and delicious power of reflecting the figure of man at twice its natural size» (Woolf, 2016, p. 35). O corpo sexuado surge aqui como uma espécie de cárcere, em que o sujeito, que procura expressar-se, não pode escapar ao género que lhe é socialmente designado, sujeitando-se a que a sua identidade seja colocada em causa: «she wrote as a woman, but as a woman who has forgotten that she is a woman, so that her pages were full of that curious sexual quality which comes only when sex is unconscious of itself» (Woolf, 2016, p. 90). Esta frase adequa-se perfeitamente à obra literária de Mary Shelley e encontramo-la no modo como Frankenstein foi escrito.

Perspetiva psicanalítica

A psicanálise, fundada por Sigmund Freud, foi objeto de estudo da crítica literária feminista. Houve uma vontade de (re)ler Frankenstein como uma ficção terapêutica, onde a escrita opera como processo de libertação. Deste modo, a autora pôde reparar os seus episódios traumáticos, revivendo-os através da catarse. A ressignificação da criatura em monstro permite que o protagonista, Victor Frankenstein, possa escapar ao papel do anti-herói, atribuindo esse lugar indesejado ao filho. Talvez seja possível entender o monstro como a manifestação do id em Victor Frankenstein/Mary Shelley, ou seja, a emersão dos seus desejos reprimidos, permitindo à autora resolver emocionalmente a morte da mãe. Considerando estas últimas palavras, atente-se no seguinte trecho:

Unable to endure the aspect of the being I had created, I rushed out of the room, and continued a long time traversing my bed-chamber, unable to compose my mind to sleep. (…) and I threw myself on the bed in my clothes, endeavouring to seek a few moments of forgetfulness. But it was in vain: I slept indeed, but I was disturbed by the wildest dreams. I thought I saw Elizabeth, in the bloom of health (…) her features appeared to change, and I thought that I held the corpse of my dead mother in my arms. (Shelley, 2018, p. 45)

O nascimento da criatura é também um dos símbolos presentes no enredo, pois testemunha a história da ambição prometeica de um homem que, ao cobiçar o fogo do Olimpo, é castigado por Zeus e exila-se da humanidade. Eis o mito da procura incessante de conhecimento que Victor Frankenstein tanto cobiçou, desejando encontrar a pedra filosofal. Mary Jacobus refere a importância da mãe para a construção psíquica da criatura: «A curious thread in the plot focuses not on the image of the hostile father (Frankenstein/God) but on that of the dead mother who comes to symbolize to the monster his loveless state. Literally unmothered, he fantasizes acceptance by a series of women but founders in imagined rebuffs and ends in violence» (Hoeveler, 2004, p. 49).

É necessário contextualizar alguns aspetos biográficos da autora, pois estes são elementos cruciais para a conjetura do seu quadro psicológico. Em 1797, Mary Wollstonecraft2 falece, dez dias após o nascimento da filha. William Godwin, o pai, responsabilizar-se-á pela educação intelectual de Mary Wollstonecraft Godwin (o apelido Shelley chegará, mais tarde, do casamento com Percy Bysshe Shelley), embora a tivesse negligenciado durante a sua infância. Em 1814, aos 17 anos de idade, Mary Godwin conhece Percy Bysshe Shelley, figura de proa do romantismo inglês, com quem casará após o suicídio da primeira esposa de Shelley no ano de 1816. Da relação nascem quatro crianças, mas apenas uma sobrevive. Percy Shelley afoga-se na sequência de um naufrágio durante uma tempestade

Profundamente marcada pela perda da sua família biológica, Mary Shelley, sem sequer contar com a interrupção involuntária de uma gravidez, vê a morte levar-lhe Clara Shelley (1817-1818), William Shelley (1816-1819) e, por último, Percy Shelley (1792-1822). Mary Shelley regressa a Londres com o seu único filho, Percy Florence, e aí viverá como escritora até ao seu falecimento no ano de 1851. A autora de Frankenstein terá sido muito ligada à figura da mãe, aspeto que a atormenta e que é visível na sua escrita, bastando recordar o sonho da mãe morta (Shelley, 2018). Contudo, é na literatura que a escritora encontra algum apaziguamento e reconciliação emocional, recordando a proposta de Gilbert e Gubar sobre leitura reparativa (Hoeveler, 2004).

Todavia, há outro ser mitológico que importa à perspetiva psicanalítica e que ecoa na figura do monstro de Frankenstein: Cronos, o deus do tempo, filho de Gaia e Úrano. Tal como Cronos, a criatura deseja «matar» o seu pai, ainda que sem a solicitação da mãe. O desejo de devorar o pai, em termos psicanalíticos, está relacionado com a sua incapacidade de amar o filho, levando-o a um estado de melancolia. A criatura pede afeto, compaixão e reconhecimento, procurando sempre o diálogo, mas é declaradamente rejeitado: «All men hate the wretched; how then must I be hated, who am miserable beyond all living things! Yet you, my creator, detest and spurn me, thy creature, to whom thou art bound ties only dissoluble by the annihilation of one of us» (Shelley, 2018, p. 90).

O excerto anterior é o primeiro diálogo entre Victor Frankenstein e a criatura, filha. Este episódio evoca o desejo de Mary Shelley de aprovação do seu pai e a tristeza sentida pela perda da sua mãe. Poder-se-á sugerir, no quadro de uma abordagem psicanalítica, que o monstro lhe permite reconfigurar o universo psíquico, devolvendo-lhe as figuras parentais. Ora leia-se:

Be calm! I entreat you to hear me, before you give vent to your hatred on my devoted head. Have I not suffered enough, that you seek to increase my misery? Life, although it may only be an accumulation of anguish, is dear to me, and I will defend it. (…) Oh, Frankenstein, be not equitable to every other, and trample upon me alone, to whom thy justice, and even thy clemency and affection, is most due. Remember, that I am thy creature: I ought to be thy Adam; but I am rather the fallen angel, whom thou drivest from joy for no misdeed. (Shelley, 2018, p. 90)

Perspetiva queer

A terceira e última análise textual tem em conta que a (des)construção do monstro, cujo corpo é lido como abjeto, apresenta estreitas semelhanças com as das subjetividades queer. O texto contém leituras bastante elucidativas para (re)pensar os significados do abjeto e do monstruoso: quando a criatura desamparada pede uma companheira ao seu criador, uma mulher fabricada à sua imagem, este nega-lhe tal pedido. Deve destacar-se a importância deste episódio, já que o seu conteúdo explícito revela a repulsa pela sexualidade feminina: «she might become ten thousand times more malignant than her mate, and delight, for its own sake, in murder and wretchedness. (…) I thought (…) and, trembling with passion, tore to pieces the thing on which I was engaged» (Shelley, 2018, p. 160). O excerto aqui transcrito expõe as estruturas de poder existentes entre Victor Frankenstein e a criatura, como ainda a ideia estigmatizante de que o sujeito feminino é pior que o homólogo masculino, procurando agir de má-fé. Esta Eva do porvir, não concretizada, denuncia os valores heteropatriarcais que reproduzem desejos e identidades fixas:

The fact that Victor constructs the body and then, when contemplating the realities of sexuality, desire, and reproduction, rips that body apart, suggests that the female body is for Victor infinitely more threatening and “monstrous” than was the creature’s male body. (…) But Victor’s inability to allow the female creature to live is, for feminist critics, more than narcissism; it is another instance of the misogyny and fear of female sexuality that Shelley exposes and condemns. (Hoeveler, 2004, p. 52)

Susan Stryker, autora de uma análise transfeminista, reviu-se também na figura do monstro, aludindo à ostracização enquanto mulher trans e aos efeitos da reconstrução do seu corpo: «She also compares the reconstruction of her new female body to Victor’s assembly of the monster’s, noting that both operations bespeak the conservative attempt to stabilize gender in the service of heterosexism» (Hoeveler, 2004, p. 58). A cirurgia do monstro e dos corpos trans desmascara a vontade de patologizar e «taxonomizar» o polimorfismo das espécies pelas instituições médicas, ao serviço do Estado: «It was on a dreary night of November, that I beheld the accomplishment of my toils. With an anxiety that almost amounted to agony, I collected the instruments of life around me, that I might infuse a spark of being into the lifeless thing that lay at my feet» (Shelley, 2018, p. 45). Por fim, Judith Butler recorda que são os dispositivos de poder que definem sujeitos: «A crítica feminista deve compreender também como a categoria de “mulheres”, sujeito do feminismo, é produzida e confinada pelas próprias estruturas de poder que procuram a sua emancipação» (Butler, 1990/2017, p. 56).

Conclusão

É justamente na ideia da abjeção que se encontra o topos literário do romance Frankenstein: o monstro, cujo aspeto perturba o olhar alheio, é sujeito à alienação pelas personagens ficcionais que sentem repulsa por ele. A sua condição ciborgue, isto é, um organismo híbrido que incorpora elementos tecnológicos e orgânicos, apavora qualquer pessoa que se aproxime da criatura, sentimento análogo na exclusão sistemática das minorias sexuais. A teoria feminista articula esta proposição, sublinhando o facto de que tornar-se sujeito é antes um processo histórico, inerente ao estabelecimento de estruturas sociais e anteriores à humanidade. Assim, o célebre aforismo de Beauvoir: «Ninguém nasce mulher: torna-se mulher» (Beauvoir, 2016, p. 13), sintetiza o princípio da artificialidade em sistemas binários como homem/mulher, branco/negro, ou qualquer outra dualidade que esteja dependente de constructos sociais. A monstruosidade é construída a partir de práticas discursivas que legitimam a leitura da criatura como uma aberração, um monstro, algo indecifrável que rompe semioticamente com as significações que lhe são atribuídas, ignorando por completo o seu caráter senciente.

Mary Shelley narrou assim o impensável, quando decidiu escrever a sua peculiar ficção sobre a criação e a destruição de um ser votado à alienação. Talvez seja possível vindicar a criatura através de um processo de subjetivação e empatizar com a sua condição monstruosa, que a impede de se tornar sujeito e, por isso, de passar a ser uma entidade enunciadora, isto é, alguém capaz de tomar a palavra. A urgência de voltar a esta personagem literária e fazer dela um exemplo com o qual se possam estabelecer afinidades é de enorme importância, nomeadamente para as pessoas que estão em processos de (des)construção identitária e/ou sexual. Que outras subjetividades possam emergir de cada corpo e passar, por fim, de objeto a sujeito: «Os (corpos e) géneros “inteligíveis” são os que de alguma forma instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, género, prática sexual e desejo» (Butler, 1990/2017, p. 79).

A inteligibilidade dos corpos por criar permite configurações identitárias e sexuais que escapam ao desejo branco, colonial, capitalista e heteronormativo. Ora, mesmo que as culturas «ocidentais» se recusem a entender outras possibilidades ontológicas, isto é, a manifestação de outros sujeitos que interrompam práticas sexuais vigentes, haverá sempre alguém cujo desejo é movido por diferentes políticas de afeto. A estas pessoas inomináveis, percecionadas como figuras monstruosas, pelos seus comportamentos desviantes e marginais, apenas se pode pedir que tomem a palavra. É preciso que falem e tenham licença para recuperar as suas narrativas, elaborando assim a escrita do corpo, a sua própria autobiografia. Portanto, humanizar o monstro é entender o outro. Tal como a criatura, as lésbicas, os homossexuais, as identidades trans e não binárias também são frequentemente desumanizadas, o que acaba por levar muitas pessoas, lamentavelmente, ao suicídio, vítimas de um sistema político que não lhes confere qualquer valor humano. Outras são ainda assassinadas, sem que isso tenha, por vezes, consequências para os responsáveis de tais atos cruéis.

Quando optei por ensaiar um estudo do romance Frankenstein, or the modern Prometheus, fi-lo porque vi na figura literária do monstro uma estranha e familiar imagem. Foi quase como se a narrativa da criatura, manifestamente queer, ressoasse na história dos direitos gay, onde, a partir da segunda metade do século XX, o pessoal se tornou político e surgiram vários movimentos de contestação contra o silenciamento das minorias sexuais e de género. A teoria feminista permite, com efeito, (re) pensar alguns conceitos e noções que são comummente aceites como irrefutáveis (por exemplo, o significado do género). Não obstante, a literatura pode articular outras economias de afeto e desejo, multiplicando todas as possibilidades que estejam ao alcance da humanidade. Espero assim ter contribuído para uma leitura anticanónica, uma vez que deixou de importar a separação entre criatura e monstro. Afinal, tornar-se monstro é aceitar o eu.

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, simultaneamente uma criatura com realidade social e uma criatura de ficção. (Haraway, 1985/2022, p. 25

Referências bibliográficas

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1Consultar verbete sobre falogocentrismo, em particular a segunda aceção do E-Dicionário de Termos Literários (Carlos Ceia: s.v. “falogocentrismo”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, < https://edtl.fcsh.unl.pt/ >, consultado em 19-04-2022).

2Mary Wollstonecraft, mãe de Mary Shelley, foi uma escritora inglesa, que nasceu em 1759 e faleceu em 1797. A sua obra literária é diversa e foi decisiva para o que poderia ser denominado protofeminismo, um conceito que precede o feminismo. A sua grande obra, A Vindication of the Rights of Woman, é uma referência incontornável para os estudos de género e para a filosofia. Além de produzir reflexões inovadoras acerca da mulher, Mary Wollstonecraft também discorreu profusamente sobre a educação das crianças.

Recebido: 14 de Março de 2022; Aceito: 30 de Abril de 2022

Miguel Ângelo Baptista. Mestrando, Curso de Mestrado em Edição de Texto, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa. Email: bap.arcanjo@gmail.com

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