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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.47 Lisboa jun. 2022  Epub 01-Ago-2022

https://doi.org/10.34619/x3qf-a2fz 

Pioneira

Regina Quintanilha

Helena Pereira de Meloi 
http://orcid.org/0000-0002-0660-4652

1i Universidade NOVA de Lisboa, NOVA School of Law, 1099-032 Lisboa, Portugal


Regina da Glória Pinto de Magalhães Quintanilha, de Sousa e Vasconcelos pelo casamento (o marido chamava-se Vicente de Vasconcelos e foi juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça), foi a primeira advogada, procuradora judicial, notária e conservadora do Registo Predial portuguesa.

Regina nasceu em 1893 em Santa Maria, Bragança. A sua família era abastada, pertencendo a mãe, D. Josefa Ernestina Pinto de Magalhães Quintanilha, às Casas de Adeganha e de Saborosa, que se diziam descendentes do navegador Fernão de Magalhães. O pai, Francisco António Fernandes Quintanilha, pertencente a uma família de Miranda do Douro, foi membro do Partido Progressista e governador civil do distrito de Bragança.

Regina teve duas irmãs: Maria Adelaide e Júlia Gentil. A sua mãe, poetisa e escritora, contrariando os hábitos da época, propiciou às filhas uma educação cuidada, dada em parte em casa, em parte em escolas públicas ou privadas. Como refere Regina numa entrevista dada ao Diário de Lisboa, em março de 1943:

Minha mãe era uma pessoa com uma visão ampla das coisas, e que nos criou só com a ideia do trabalho, não nos deixando um momento, durante o dia, sem termos que fazer. Desde que nos erguíamos até que nos deitávamos, vivíamos para trabalhar. Depois, também rodearam-nos sempre pessoas formadas e assim o nosso espírito se foi habituando a um ambiente culto. (Vicente, 1991, p. 111)

Regina teve aulas de Música (para que tinha especial talento) e de Francês em casa, frequentou o Colégio das Franciscanas em Bragança, o Colégio de Nossa Senhora da Conceição no Porto e, como “ouvinte”, o Liceu Rodrigues Ferreira, onde concluiu em apenas um ano o 6.º e 7.º anos do ensino liceal.

Em setembro de 1910, tentou matricular-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, apesar de a lei vigente à data não permitir o exercício da advocacia por mulheres. O artigo 1354.º, n.º 2, do Código Civil de Seabra, equiparando as mulheres aos menores não emancipados, determinava que só elas poderiam ser procuradoras judiciais “em causa própria, ou de seus ascendentes e descendentes ou de seu marido, achando-se estes impedidos”. Apenas nestas situações excecionais lhes poderia ser conferido o mandato judicial, o que implicava que não pudessem representar, em regra, terceiros em tribunal. Também não lhes era permitido, de acordo com o disposto no artigo 1966.º desse Código, e uma vez mais à semelhança dos menores não emancipados, ser testemunhas em testamento, havendo ainda outras limitações que inviabilizavam o exercício da generalidade das profissões forenses pelas mulheres. Os comentadores a estas disposições, nomeadamente o Professor Dias Ferreira, justificavam-nas:

Não permite o Código a procuradoria às mulheres porque o mandato judicial envolve os mais altos segredos e os mais caros interesses das partes, e o legislador julgou que não casava com o temperamento e o decoro das mulheres a guarda dos segredos, e a investigação de certos factos. (Ferreira, 1898, p. 25)

As mulheres também não são admitidas como testemunhas porque, nas palavras do mesmo professor:

No Direito Moderno, porém, a exclusão das mulheres do ofício de testemunhas não é pela mesma razão da legislação romana, não é por não gozarem de personalidade jurídica, pois que essa já lha reivindicaram os progressos da civilização, mas sim por na grande maioria não inspirarem em razão dos seus hábitos, modo de vida, e natural fraqueza, absoluta confiança de se manterem firmes na verdade para autenticarem atos solenes. (Ferreira, 1898, p. 477)

Atento o insólito pedido de Regina, convocou-se uma reunião magna do Conselho Universitário que decidiu pelo ingresso de “um aluno do sexo feminino”, com apenas um voto contra: o do professor Calisto. Regina Quintanilha torna-se a primeira mulher a frequentar a licenciatura em Direito em Portugal e é recebida pelos colegas com solenidade quando entra no edifício da faculdade. Como descreve o seu futuro marido (com quem se casará em 1917): “Quando minha mulher transpôs, pela primeira vez, as portas da Universidade os estudantes atapetaram-lhe com as suas capas o caminho. Foi recebida festivamente” (Maggiolly, 1941). Também Regina, na referida entrevista dada ao Diário de Lisboa, reconhece: “Entrei na universidade como a coisa mais natural da vida. Ninguém me hostilizou. Todos me receberam com a maior amabilidade. Só tenho encontrado rosas. Dou graças a Deus” (citada em Vicente, 1991).

Regina começa a frequentar a Faculdade de Direito em outubro de 1910, ano da implantação da República. Aproveitando a instituição de cursos livres na Universidade de Coimbra (tornada possível pelo Decreto de 23 de outubro de 1910), frequenta disciplinas de várias áreas do saber. Na recentemente criada Faculdade de Leras, onde é aluna de Carolina Michaelis de Vasconcelos (de quem se torna amiga), conclui, com aproveitamento, diversas disciplinas nas áreas da História, da Filosofia, da Literatura, da Geografia, da Arqueologia. Estuda ainda Química, com Carlos Lepierre, e Física, com Sidónio Pais, na Escola Industrial Brotero. Conclui a licenciatura em Direito em três anos, a 31 de março de 1914.

Antes de terminar o curso, dado apenas lhe faltar a disciplina de Medicina Legal, e apesar da proibição legal de praticar advocacia (só com o Decreto n.º 4676, de 11 de julho de 1918, cessaria essa proibição), Regina solicita ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça autorização para exercer esta atividade. O juiz conselheiro Abel Correia de Pinho concede-lhe, no dia 1 de novembro de 1913, “licença para advogar nos auditórios da República” (Maggiolly, 1941). Poucos dias depois, Regina é nomeada oficiosamente para defender duas arguidas em processo-crime. A 14 de novembro, intervém, pela primeira vez, numa audiência de julgamento no âmbito deste processo, sendo o acontecimento amplamente relatado pela imprensa da época. O jornal A Luta do dia seguinte, sob o título “A primeira advogada portuguesa”, descreve de forma elogiosa a intervenção de Regina no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa:

No primeiro distrito criminal, em audiência de processo correcional, responderam ontem umas pobres mulheres, de nomes Ludovina Pereira e Guilhermina Maria Correia, acusadas de terem agredido uma velhota, que nos seus tempos de rapariga não teria feito má figura ao lado de Brites de Almeida, a histórica ‘Padeira de Aljubarrota’, ou da célebre preta conhecida pela ‘Cartuxa’, que durante muitos anos foi o terror dos polícias e dos guardas-noturnos da Mouraria, a quem facilmente subjugava quando a provocavam. O caso passou-se no dia de Natal do ano passado, numa escada da Rua da Rosa e terminou ontem pela condenação das rés em 5 dias de multa a 10 centavos por dia. (…) Apesar de o caso não ter sido anunciado, em poucos minutos a sala de audiências encheu-se de advogados, de delegados do Ministério Público, procuradores, escrivães e muitas outras pessoas do povo, desejosas de assistir à primeira advogada portuguesa. D. Regina, que é uma atraente jovem, deveras simpática, envergando a toga de advogado, inquiriu as testemunhas e, apesar de ter sido apanhada de surpresa, mostrou as suas faculdades de inteligência, fazendo salientar em favor das rés todas as circunstâncias favoráveis à defesa. Ao ser-lhe dada a palavra, dela usou durante algum tempo com muito brilhantismo, deixando em todos a impressão de que no futuro, a dedicar-se à carreira de advocacia, muito há a esperar da sua inteligência. Devemos dizer que a novel advogada, no seu discurso, não usou de exageradas flores de retórica, antes se fez bem compreender da assistência habitual do tribunal. Em resumo: a primeira advogada portuguesa conquistou facilmente as simpatias do público. (citado em Vicente, 1991, pp. 109-110)

Assim iniciou Regina a sua carreira de advogada, que prosseguiu até 26 de abril de 1957, data em que suspendeu a sua inscrição na Ordem dos Advogados, para se dedicar à família e à administração de empresas. Trabalhou sobretudo em advocacia de negócios, tendo tido escritório em Lisboa, Rio de Janeiro e Nova Iorque. Inscreveu-se também na Ordem dos Advogados brasileira e trabalhou com distintos advogados belgas, espanhóis, franceses, italianos, noruegueses, suecos…

Não obstante a sua principal atividade ter sido a advocacia, Regina foi também notária em Albergaria-a-Velha, conservadora do Registo Predial em Lisboa e professora no Liceu Maria Pia. Foi autora de vários trabalhos publicados em periódicos portugueses e brasileiros.

Em 1941, por ocasião da celebração dos vinte e cinco anos sobre a data de admissão nos tribunais portugueses da primeira procuração judicial assinada por uma mulher, um conjunto de senhoras portuguesas, encabeçado por D. Judite Maggiolli, oferece a Regina Quintanilha um Livro de Ouro contendo mais de uma centena de depoimentos de pessoas que a quiseram homenagear. Se analisarmos a composição da comissão organizadora, verificaremos que nela participam quase setenta mulheres pertencentes a diferentes grupos sociais e que exercem diversas atividades: encontramos a Marquesa de Tancos, a Condessa de Avintes, a Condessa de Santar, as irmãs Guardiola (das quais uma foi deputada e reitora do Liceu Maria Amália), a filha de Lopes Praça (D. Elisária Nunes Mexia), a Presidente da Obra de Proteção das Raparigas (D. Maria Luísa da Câmara)… Mulheres que continuam a assinar como sendo titulares de títulos nobiliárquicos, não obstante a República os ter abolido trinta anos antes, e mulheres que desempenham cargos importantes na hierarquia do Estado Novo.

Se lermos os textos contidos no livro, concluiremos que a multiplicidade de pessoas que quis homenagear a primeira advogada portuguesa é impressionante: encontramos políticos, clérigos, familiares, amigos, advogados portugueses e brasileiros, magistrados, estudantes de Direito, de Medicina e de Arquitetura, pintores, escritores, bem como colegas de trabalho de Regina Quintanilha. O livro traduz uma homenagem séria de pessoas de diferentes idades e estatutos socioeconómicos, sendo constante a expressão de respeito e admiração profissionais e pessoais por Regina Quintanilha, que na altura teria 48 anos.

O tipo de homenagem feito, como não pode deixar de ser, é diferente em função da relação que o autor tem com Regina e dos respetivos quadros mentais. Assim, encontramos um grupo de pessoas que sublinham que Regina, mais do que uma boa profissional, é uma excelente esposa e mãe de família. O primeiro texto de homenagem, assinado pelo general Óscar Carmona, corresponde a este modelo. Depois de uma breve introdução, escreve o então Presidente da República:

Podem ser apreciados nessa homenagem variados aspetos que, certamente, serão evidenciados pelas numerosas admiradoras de tão distinta senhora. Há porém um que penso salientar e pôr em relevo, pois que profundamente me sensibiliza: a maneira como sabe conciliar os seus deveres profissionais com os de esposa exemplar e mãe amantíssima, convertendo o seu lar num grande exemplo. (Maggiolly, 1941)

De igual modo a Marquesa de Tancos escreve: “Admiradora do seu talento, não o sou menos do seu bondoso coração e do seu extremoso e desvelado amor de mãe” (Maggiolly, 1941).

A própria filha de Regina, Maria Regina Quintanilha Vasconcelos, tem a preocupação de sublinhar que a homenageada é uma excelente mãe, não obstante os seus afazeres profissionais:

Comecei desde muito pequenina a admirar a minha Querida Mãezinha não só por ela ser uma Mãe extremosíssima mas também pelo seu bom coração e a sua bondade para todos os que a ela recorriam. Soube depois (teria três ou quatro anos) que tinha sido a minha Mãe a primeira advogada, a primeira conservadora, enfim a primeira senhora que abriu caminho à vida da mulher portuguesa, e mais ainda cresceu a minha admiração por ela. (Maggiolly, 1941).

O bem da Nação, da Pátria e da Raça encontra-se subjacente a alguns dos tributos feitos a Regina. Selecionámos um, o de D. Abílio Augusto Vaz das Neves (1939-1965), bispo de Bragança: “Apreciamos a sua coragem em provar, mais uma vez, ao mundo que a mulher não é inferior ao homem em inteligência e até em resistência física quando o bem da Pátria e da Raça o exigem” (Maggiolly, 1941).

O então patriarca de Lisboa, que fora seu condiscípulo em Coimbra, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, também abençoa Regina Quintanilha.

Outro tipo de homenagem frequente no livro é o que expressa admiração pelo caminho aberto por Regina às mulheres portuguesas no que concerne ao exercício de profissões forenses. A mais importante é, talvez, a constante “mensagem de abertura” do livro, feita pela sua “impulsionadora e organizadora”, D. Judite Maggiolli. Inicia-a de um modo extremamente bonito, quase poético:

Senhora, A gratidão é o mais formoso sentimento que vive em nós. (Maggiolli, 1941)

D. Judite justifica a elaboração do livro como forma de “exaltar as bodas de prata das vossas canseiras, vinte e cinco anos de vida ativa, do mais intenso dinamismo espiritual”. O discurso torna-se mais centrado na questão dos direitos humanos das mulheres, na parte em que não é manuscrita, mas dactilografada, para que possa ser facilmente lida por todos:

Em Portugal a legislação colocava a mulher numa situação jurídica semelhante à dos menores não emancipados e portanto de manifesta inferioridade legal. (…) Eis em que conta era tida a competência e a inteligência da mulher colocada em manifesta incapacidade civil e em deprimente inferioridade legal. Mas uma Senhora, D. Regina de Quintanilha, depois de ter feito em três anos o curso de Direito com distinção, inscreveu-se no Supremo Tribunal como advogada e este passou-lhe ‘carta’ autorizando-a a advogar nos tribunais da República. Depois apresentou em juízo procurações judiciais e foi admitida sem discussão nos tribunais civis, comerciais, criminais, militares, de árbitros avindores e acidentes de trabalho, Relação e Supremo Tribunal. Terminara, praticamente, a incapacidade civil das mulheres. A mesma Senhora, pouco depois, fez-se nomear notária e conservadora do registo predial para abrir o precedente de as mulheres poderem exercer tais cargos. (…) Desde que podia ser notário, podia, logicamente ser testemunha instrumentária, etc… um novo horizonte se abriu à atividade feminina. Conseguira uma Senhora trabalhando silenciosamente mais que todas as reclamações, manifestos, violências.1 (Pimentel & Melo, p. 59 e ss.)

Ao conseguir ser a primeira advogada, procuradora judicial, notária, conservadora do Registo Predial portuguesa, Regina Quintanilha contribuiu inegavelmente para um melhor exercício da cidadania por parte das mulheres portuguesas.

Regina faleceu em Lisboa, em março de 1967.

Referências bibliográficas

Ferreira, J. D. (1898). Código civil português anotado (Vol. III) (2nd ed.) (Portuguese civil code annotated). Imprensa da Universidade. [ Links ]

Maggiolly, J. (1941). Livro de ouro primeira advogada portuguesa. Primeira procuradora judicial. Primeira notária. Primeira conservadora do registo predial (Golden book first portuguese lawyer. First lady prosecutor. First notary public. First land register). s.n. [ Links ]

Pimentel, I. F., & Melo, H. P. (2015). Mulheres portuguesas (Portuguese women). Clube do Autor. [ Links ]

Vicente, A. (1991). R. Q. (1893-1967). In M. R. T. Silva & A. Vicente (Eds.), Mulheres portuguesas: Vidas e obras celebradas - Vidas e obras ignoradas (Portuguese women: Lives and works celebrated - Lives and works ignored). Comissão da Condição Feminina. [ Links ]

1 Vide, sobre este ponto, Irene Flunser Pimentel e Helena Pereira de Melo. (2015). Mulheres portuguesas, Clube do Autor, 59 e ss.

Aceito: 21 de Maio de 2022

Helena Pereira de Melo. Professora Associada com agregação em Direito Público Universidade NOVA de Lisboa, NOVA School of Law. Email: helena.melo@novalaw.unl.pt

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