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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.47 Lisboa June 2022  Epub Aug 01, 2022

https://doi.org/10.34619/sdjm-r4wj 

Retrato

Os mundos de Maria Archer

Olga Archer Moreira


Na senda das pesquisas para vos apresentar Maria Archer, uma escritora incómoda (1982), encontrei-me com estas palavras de Mário Soares em 2012: «Nos poucos contactos que com ela (Maria Archer) tive e os livros dela que li com muito agrado percebi a força das suas convicções e o indiscutível conhecimento da vida e a inteligência que dela emanavam» (Gomes & Moreira, 2012).

Mulher autodidata mas dona de uma cultura exuberante, Maria Archer nasceu em 4 de janeiro de 1899, num dia de Inverno, em Lisboa, na freguesia das Mercês, Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira, a mais velha de uma prole de seis. Viveu a sua infância entre Lisboa e terras de África, rumando ora a Moçambique, ora à Guiné.

Com apenas 13 anos, publicou o seu primeiro artigo num jornal em Moçambique.

Em 1914, Maria regressou a Lisboa e foi residir em Algés, e mais tarde em Santo Amaro, com os pais e os irmãos. E é aqui, já com 16 anos, que consegue permissão para terminar o 4.º ano a nível oficial no Colégio Europeu.

A nova incursão por terras de África aconteceu em 1916. Desta vez rumou até à Guiné, “a verdadeira África maravilhosa” (Archer, 1940, p. 43), onde viveu durante dois anos.

Na Guiné deu voz e alma à tertúlia Lides Literárias. A chama literária iluminou-lhe a alma e em 1918 publicou o seu poema “Desejo mórbido”, nesta colónia, onde é reconhecida, ainda hoje, como a “poeta do exotismo” (Amado, 1990).

Em agosto de 1921, já em Faro, casou com Alberto Teixeira Passos, que tinha conhecido anos antes na ilha de Moçambique. De novo atravessou os mares e aportou em Moçambique, agora com o marido. Os primeiros cinco anos de vida do jovem casal foram vividos em Ibo, Moçambique. Retornou a Lisboa em 1926 com o marido e o afilhado e balançou a sua vida entre Faro e Vila Real de Trás-os-Montes. Estreou-se nas letras pátrias nos semanários O Algarvio e o Correio do Sul, ambos de Faro (Câmara Municipal de Faro, 2010).

Após a separação, Maria Archer terá feito uma carta precatória para depósito de mulher casada, dizendo que estava a viver em casa de família em Lisboa (Botelho, 1994, p. 34). Em 1931 encontrava-se divorciada. Nesse ano navegou até Angola para viver com os pais. De novo África a acolheu e a deslumbrou, e aí permaneceu até 1935, ano em que publicou o primeiro livro, Três Mulheres, em parceria com António Pinto Quartim, em Luanda. No mesmo ano, o seu livro África Selvagem viu a luz do dia em Lisboa. Foi reconhecida pelos críticos literários da época como «a revelação da literatura portuguesa de 1935, com uma obra de linguagem rica, de uma perfeita plasticidade e de um colorido brilhante como só grandes escritores sabem utilizar» (Quartim, 1936).

Mário Soares afirmou em 2012: «Na verdade conheceu muito bem esses países, então antigas colónias portuguesas. As suas flores, as suas faunas e obviamente as pessoas - eram para Maria Archer, um enigma desvendado. Conheceu a África de expressão portuguesa como pouca gente» (Gomes & Moreira, 2012, p. 42).

Após o divórcio, Maria Archer dedicou-se à escrita e viveu do seu trabalho como escritora, jornalista e conferencista.

Os seus livros são consequência da ousadia e da coragem que a caracterizam, ciciam-nos de forma gritante as desigualdades existentes entre os homens e as mulheres. A par desta luta pela igualdade da mulher e do homem, Maria escrevia sobre África, continente que a maravilhou e seduziu e onde passou parte da sua vida juvenil. Escreveu novelas, romances, livros de viagens que divulgam a diversidade antropológica de África e que Gilberto Freyre tanto elogia no prefácio do livro Herança Lusíada (s.d.): «A portuguesa Maria Archer poderia ser hoje em língua portuguesa uma espécie do que a anglo-americana Margaret Mead é em língua inglesa (…). Herança Lusíada é um verdadeiro estudo sociológico escrito por uma atenta socióloga e antropóloga» (s.d., pp. 9-11).

Também na literatura para crianças Maria Archer se aventurou e esteve presente. Publicou semanalmente, entre 1935 e 1937, contos infantis no jornal infantil O Papagaio, onde sua irmã Isabel também escrevia. Para as crianças Maria escrevia contos de encantar sobre África. Aos sobrinhos contava contos de encantar repletos de expressividade, de cor e de sons africanos. Seu sobrinho, Luís Filipe Archer Moreira, recorda: «Eram histórias densas, pesadas, que acalmavam a miudagem. Era um encanto ouvi-la» (Gomes & Moreira, 2012, p. 53).

Em 1938, conquistou o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, com o livro Viagem à Roda de África. E, apesar de ter ganho o prémio, ainda nesse ano, e em 1947, viveu a desventura de ver alguns dos seus livros apreendidos (Ida e Volta duma Caixa de Cigarros e Casa sem Pão).

O Dicionário de Educadores Portugueses, dirigido por António Nóvoa, refere Maria Archer como um dos pedagogos portugueses tendo em atenção o seu trabalho na área da literatura para a infância e juventude e os seus estudos antropológicos, para os quais António Sérgio chamou a atenção de Gilberto Freyre.

A mulher ousada, sem medo, foi a única autora feminina a publicar seis dos setenta títulos que integram a coleção Cadernos Coloniais, editados entre 1935 e 1941. Quando o seu livro Há-de Haver uma Lei… viu a luz do dia, em outubro de 1949, assim foi elogiado por João Gaspar Simões: «Esperem o juízo do tempo, e verão! Quando em 2049 se celebrar o centenário do aparecimento de Há-de Haver uma Lei… todos os editores portugueses dignos desse nome baixarão os olhos, envergonhados, ao ouvir esta tremenda efeméride: em 1949 Maria Archer, autora de duas dezenas de volumes, teve de publicar a expensas suas o seu livro de contos Há-de Haver uma Lei… pois não havia então em Portugal um único editor capaz de perceber que este livro era uma colecção de obras-primas do conto português» (Simões, 1949, pp. 15-16).

Em 1945, Maria Archer aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD), um movimento que surgira em oposição a Salazar e ao Estado Novo no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial.

A propósito do livro Nada lhe Será Perdoado, Ferreira de Castro escreve em 1953: «O seu Nada lhe será perdoado engloba as qualidades diferentes que estamos habituados a ver, separadamente, nas obras dos homens e das mulheres. De umas tem a sensibilidade, a penetração subtil, os sentimentos delicados, dos outros a força, a largueza de vistas e a profundidade. E tudo isso com uma segurança e homogeneidade singulares» (Castro, 1954, citado em Gomes & Moreira, 2012, p. 68).

Como disse Artur Portela, «a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante» (1953, citado em Gomes & Moreira, 2012, p. 68).

Apesar do reconhecimento dos críticos da época, em 1955, inconformada, Maria Archer navega até ao Brasil, após a PIDE lhe ter invadido a casa e apreendido um manuscrito sobre o julgamento de Henrique Galvão. No Brasil viveu vinte e quatro anos. Ali a sua intervenção política visou uma resistência ao regime salazarista através dos inúmeros artigos publicados nos jornais O Estado de São Paulo, Semana Portuguesa, Portugal Democrático e de intervenções públicas em conferências e palestras. Foi preceptora, jornalista, escritora, conferencista, e, em 1971, colaborou no Plano de Alfabetização de adultos.

A saudade foi-se instalando no espírito da escritora e a esperança de um novo dia e de um novo país também. Em abril de 1970, Maria confidenciou-nos que «de quando em quando sinto a esperança de se aproximar o dia em que regresso a Portugal…»1. Aliada à esperança do regresso, havia a esperança de poder ser deputada da oposição para, em Portugal, pugnar pelos direitos das mulheres.

São trinta e um os livros que se conhecem de sua autoria, escritos entre 1935 e 1963.

Maria Archer regressou a Lisboa em 26 de abril de 1979, desejando morrer em Portugal, e com um dos seus sonhos concretizado: Portugal vive as cores da liberdade. O verde da esperança e o vermelho da conquista e da alegria. Neste regresso ainda se vislumbrou a mulher de outrora. Mas a doença e a idade estavam presentes.

Deixou-nos em 23 de janeiro de 1982.

O jornalista Orlando Raimundo (1982), escreveu um artigo com o título Maria Archer faleceu abandonada num asilo, onde nos dá a conhecer esta mulher: «...uma intelectual importante da cultura portuguesa deste século, censurada, perseguida e exilada. Maria Archer passou os últimos três anos da sua vida internada. O País, agora democrático, negou-lhe a dignidade de pessoa humana por que sempre se bateu... Esquecida por (quase) todos...». E Raul Rego (1982), no artigo intitulado Maria Archer publicado dias após a morte, recorda-nos: «Maria Archer... Singular destino o desta mulher que poderia ter tido os êxitos intelectuais e mundanos, a tranquilidade económica e satisfação dos seus caprichos e que, só por sentir e prezar a liberdade de pensamento e de expressão, morre, quase a roçar os oitenta anos, num asilo, após tempos de angústia, sem nome» (p. 3).

Elisabete Baptista (2011) elucida-nos: «A literatura de Maria Archer singrou as águas do Índico, do Atlântico e aportou no Brasil. Pode-se dizer que, assim como a força unificadora da língua de expressão portuguesa, a sua produção criativa provou ter vocação marítima, pois transpôs os hostis entraves das fronteiras geográficas, e passou a ser abertura para o estreitamento dos laços» (p. 17).

Em 2012 Alberto Teixeira Passos - mtoto -, afilhado de Maria Archer e filho do ex-marido, relembrou a sua madrinha e confidenciou-nos: «Maria Archer tinha mundo e precisava de mais mundo para além de Vila Real» (Gomes & Moreira, 2012, p. 60).

Mulher, escritora, tradutora, conferencista, jornalista, defensora dos direitos das mulheres, oposicionista ao regime vigente em Portugal na época, Maria Archer foi silenciada por alguns e excluída da memória cultural do nosso país.

Ousou ser Maria Archer, sem pseudónimos… Como agradecimento, viveu o isolamento e a marginalização da sociedade de então.

Referências bibliográficas

Aguiar, M. M., & Mendes, M. G. S. (2011). Encontro mundial de mulheres portuguesas na diáspora (Conference sessions). Fórum da Maia. [ Links ]

Amado, L. (1990). A literatura colonial guineense (Guinean colonial literature). Revista ICALP, (20-21), 160-178. [ Links ]

Archer, M. (1940). Roteiro do mundo português (Roadmap of the Portuguese world). Edições Cosmos. [ Links ]

Archer, M. (1982, Janeiro 24). Uma escritora incómoda (A troublesome writer), p. 9. [ Links ]

Botelho, D. (1994). Ela é apenas mulher (She’s only a woman) (Dissertação de mestrado). Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. [ Links ]

Câmara Municipal de Faro. (2010). Deliberações 2010. Atribuição de Topónimos - Proposta n.º 85/2010CM. (Anexos) [ Links ]

Castro, F. (1954, Agosto 30). Maria Archer vista pela crítica. Edições S.I.T. [ Links ]

Gomes, R., & Moreira, O. A. (Eds.) (2012). Vida e obra de Maria Archer: Uma portuguesa da diáspora (Life and work of Maria Archer: A Portuguese woman in the diaspora). Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. [ Links ]

Nóvoa, A. (Dir.) (2003). Dicionário de educadores portugueses. Edições Asa. [ Links ]

Portela, A. (1953, Agosto 3). Maria Archer vista pela crítica. Edições S.I.T. [ Links ]

Quartim, P. A. (1936, Janeiro). Ilustração de Angola. [ Links ]

Raimundo, O. (1982, Janeiro 25). Maria Archer faleceu abandonada num asilo (Maria Archer died abandoned in an asylum). Diário Popular. [ Links ]

Rego, R. (1982, Fevereiro 2). Maria Archer. Diário Popular, p. 3. [ Links ]

Rocha, F. C. (2003). Calvão (Vagos) 09/12/1933 - Aveiro 18/11/1996. In A. Nóvoa (Dir.), Dicionário de educadores portugueses (pp. 1195-1199). ASA. https://ria.ua.pt/handle/10773/10555Links ]

Simões, J. G. (1949, Outubro 30). Livro do mês (Book of the month) (pp. 15-16). Átomo. [ Links ]

1Correspondência de Maria Archer.

Aceito: 10 de Maio de 2022

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