O livro Música, Género, Sexualidades: Musical Trouble… After Butler assinala a primeira publicação portuguesa exclusivamente dedicada ao cruzamento disciplinar entre os estudos de género e as ciências musicais. O livro resultou de uma seleção de oito artigos inéditos da autoria de investigadores em música na NOVA FCSH, associados às unidades de investigação CESEM1 e INET-md, ativos nos campos do género e da sexualidade. Na introdução, Paula Gomes Ribeiro contextualiza2 a origem do volume após a primeira conferência internacional promovida pelo NEGEM3 em 2015, Musical Trouble... after Butler…, onde se propunha uma análise sobre o impacto e integração da obra de Butler na investigação musicológica portuguesa. Música, Género, Sexualidades: Musical Trouble… after Butler convoca o legado teórico de Judith Butler e o impacto da sua obra na teoria crítica feminista contemporânea, observando o género como um elemento performativo e fluido de expressão e representação sociocultural. Apesar de o volume não ter como objetivo discutir o estado da arte da investigação em género e musicologia, é apresentado um breve resumo de algumas das primeiras obras de referência neste campo de estudos como Feminine Endings (McClary, 1991), Queering the Pitch: The New Gay and Lesbian Musicology (Brett, Wood & Thomas, 1994) e Gender and the Musical Canon (Citron, 1993).
O livro apresenta três eixos temáticos: Binarismo de género e relações de poder; Personagens, narrativas e (re)definições de género; Músicas, espaços e dinâmicas sexuais. O primeiro capítulo, de Maria José Artiaga, descreve o percurso da maestrina e compositora austríaca Josephine Amann-Weinlich (1848-1887), pioneira que desenvolveu uma intensa atividade artística pela Europa e Estados Unidos da América no final do século XIX como regente da Orquestra de Senhoras de Viena. O estudo incide sobre as construções de género da época, sendo a vigilância dos corpos das mulheres instrumentistas evidente, desde a sua interdição na execução de instrumentos de metal às expectativas de feminilidade da sua apresentação em palco. O texto permite refletir sobre a necessidade de negociação da identidade feminina no contexto de um papel musical conotado com o masculino, como é o caso da regência de uma orquestra, bem como a dependência das relações patriarcais na construção da carreira da maestrina. No segundo capítulo é apresentado o estudo de Ângela Portela, onde é analisada a receção das atrizes-cantoras Cinira Polônio (1857-1938), Etelvina Serra (1882-1973) e Palmira Bastos (1875-1967) na imprensa escrita luso-brasileira do início do século XX. A autora afirma que regularmente a crítica antecipa a dimensão “mulher” na representação da figura artística feminina, avaliando-a primeiro através dos modelos de género esperados nessa sociedade, e só depois aplicando as expectativas transversais à proficiência artística. Este contexto prejudicou especialmente mulheres instrumentistas e compositoras, atuantes num campo tradicionalmente dominado por homens. A autora chama a atenção para os conflitos e contradições entre os valores dominantes na opinião pública e as aspirações de emancipação das mulheres, particularmente sentidos por artistas inseridas no mercado de trabalho da música na transição para o século XX.
No terceiro capítulo, Isabel Pina debruça-se sobre o papel da crítica musical Maria Helena de Freitas nas sociabilidades musicais portuguesas do século XX através da relação amorosa com o compositor Luís de Freitas Branco. A autora aponta a importância de Maria Helena na construção da carreira do compositor, sendo a crítica musical responsável pela organização da sua vida profissional, bem como pela gestão pessoal e emocional entre o “mestre” e o seu círculo social. O estudo discute como as estruturas sociais e pessoais puderam ditar um lugar de subalternidade a mulheres integradas em atividades artísticas, criticando a marginalidade de Maria Helena na narrativa histórica. No capítulo seguinte, Teresa Gentil propõe uma abordagem etnomusicológica ao percurso da cantautora angolana Aline Frazão (n. 1988), salientando a dimensão simbólica da sua música e a apresentação pública em conflito com as expectativas sociais e políticas sobre o seu género e etnia. Gentil reflete sobre as estratégias de afirmação musical de Aline enquanto intérprete e criadora, comparando os seus dois primeiros discos, onde fica patente uma fluidez de identidade de género na desconstrução de uma apresentação inicialmente delicada e feminina para uma presença mais dura e conscientemente andrógina. Apesar de este caso estar separado por mais de um século das mulheres analisadas nos capítulos anteriores, entende-se que a objetificação do corpo das mulheres, bem como os estereótipos de beleza e feminilidade a elas associados, permanecem enraizados. Segundo Gentil, a opressão de género força as mulheres a mudarem não apenas a sua produção musical e performance, mas também a sua personalidade, imagem e expressão.
No primeiro capítulo da segunda parte, Filipe Gaspar discute os papéis de género e representações de não normatividade na opereta portuguesa oitocentista. O autor analisa representações sobre género masculino e feminino nos libretos de obras músico-teatrais, revelando uma consciência sobre um modelo de masculinidade hegemónica e os seus processos de vigilância e punição. Esta análise permite aprofundar o conhecimento sobre o estatuto de homens e mulheres na sociedade portuguesa no final do século XIX, discutindo o papel das masculinidades associadas às perspetivas nacionalistas da época, a autodeterminação da mulher sobre o seu corpo, ou ainda o travestismo como um recurso teatral satírico e transgressivo. No capítulo seguinte, Joana Freitas considera a banda sonora da série televisiva Game of Thrones como ponto de partida para a análise das construções de género sobre duas protagonistas femininas. A autora revela como a música é um aspeto central na definição de poder e identidade das personagens Cersei Lannister e Daenerys Targaryen, através da utilização de leitmotive, da escolha da instrumentação e da densidade sonora, que acompanha o desenvolvimento da definição sociopolítica e psicológica das personagens na narrativa.
Na terceira e última parte de Música, Género, Sexualidades: Musical Trouble… after Butler, Júlia Durand centra o seu ensaio na utilização de música na produção audiovisual de pornografia. É abordado o papel da música na construção de ambientes que promovem a erotização dos filmes, estando as escolhas musicais associadas a construções sobre sexualidades e definição de públicos. A criação destes ambientes assenta num processo de categorização musical que identifica determinadas narrativas com expressões sexuais, considerando a autora que este é um território que possibilita o reforço ou a subversão de estereótipos de género e de sexualidades. No último capítulo do livro, Marco Freitas faz um estudo etnográfico sobre a dança do “engate” enquanto dimensão performativa de predisposições sexuais no contexto de três bares do Roteiro gay lisboeta. O autor chega a interessantes conclusões sobre a definição de disponibilidade sexual e designação de papéis sexuais e de género através da dança. Freitas destaca como regularmente estes papéis são transferidos de estereótipos heteronormativos para o domínio homossexual entre homens, implícitos nas conceções de “masculino” e “feminino” sob a forma do dualismo “ativo” e “passivo”. O autor reflete sobre a dimensão de poder implícita nestes discursos e comportamentos, operada em estruturas binárias entre dominador/dominado, concluindo que estes processos obedecem a uma manutenção de valores do tipo heteronormativo.
Eis um livro que convida a uma reflexão necessária e emergente no contexto português sobre os estudos de género como um campo teórico-metodológico útil e atual na abordagem a práticas musicais. Considerando que estas práticas traduzem códigos dominantes de masculinidades, feminilidades e sexualidades das culturas em que se inserem, a música é um território crítico de produção expressiva de identidades e estruturas de poder determinadas pelo género. A falta de consenso na academia portuguesa sobre a fundamentação das perspetivas da crítica feminista poderá ser uma das razões que justificam a implementação tardia deste campo de estudos, que contrasta com a expansão que se observa internacionalmente desde os anos 1990 (Pereira, 2021; Amâncio & Oliveira, 2014). Música, Género, Sexualidades: Musical Trouble… after Butler constitui assim uma obra inteiramente dedicada à interdisciplinaridade entre música e género, argumentando a pertinência inequívoca de se considerar o género como uma dimensão indispensável na musicologia portuguesa.