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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.48 Lisboa Dec. 2022  Epub Feb 20, 2023

https://doi.org/10.34619/hhl3-rjd4 

Homenagem

Paula Rego: Génio, generosidade e coragem1

Paula Rego: Genius, generosity and courage

iUniversidade do Minho, Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas (ELACH), Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM), 4710-057 Braga, Portugal. Email: gabrielam@elach.uminho.pt


Se tivesse de escolher três palavras para descrever Paula Rego, seriam as do título.

Sempre que necessário, sempre que foi urgente intervir, tomar uma posição como mulher, artista e cidadã, Paula Rego fê-lo, de modo desassombrado e sem qualquer arrogância.

Denunciou a ditadura salazarista em imagens contundentes nos anos 1960, desafiando a censura, iludindo o censor, incapaz de ler nas suas colagens de inspiração surrealista a crítica mordaz ao regime do Estado Novo, a injustiça e asfixia social e os horrores da guerra colonial. Veja-se o belíssimo texto da autoria do seu amigo, o poeta Alberto de Lacerda, que acompanhou a sua primeira exposição a solo na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, em 1965, e que celebrou a pintora nos seguintes termos: “convulsiva e fluente, sonhadora e feroz”, afirmando que a sua obra exibia simultaneamente “terror e um corajoso triunfo” (Lacerda, 1978). Num texto posterior publicado na Colóquio Artes de 1989, intitulado “Paula Rego e Londres”, Lacerda escreveria: “Falar de Paula é, entre outras coisas difíceis, falar de um elevado número de contradições misteriosamente unificadas (...). Paula está sempre à solta, está sempre livre - mesmo quando se sente tímida, ou diz que está envergonhada”.

Já no início dos anos 2000, numa alusão à irrupção da guerra do Iraque, e como resposta sua a uma notícia e imagem do jornal (recorte que tinha na parede do seu atelier), criou uma impressiva tela, intitulada “A Guerra”, denunciando os seus horrores inumanos (2003), antropomorficamente representados na tela por animais ensanguentados, por ser inadmissível que humanos cometessem esses horrores, afirmava a pintora.

Por sua vez, a exposição que teve lugar em 2019, inaugurando a nova galeria britânica de Milton Keynes, intitulada “Obediência e Desafio”, revisitou sobretudo o período da sua pintura dos anos 1960-70, pela sua acutilância crítica e pela relevância do seu foco declaradamente político face à contemporaneidade, ainda que, paradoxalmente, em particular no Reino Unido, de escasso conhecimento público.

Em 1998-99 criou a série denominada “Sem Título”, que teve um papel fundamental na lei que viria a descriminalizar a prática do aborto, que, em Portugal, levou ao sofrimento, ao ostracismo e à morte de um número incomensurável de mulheres, geração após geração; após anos de debate e luta acérrima, face à derrota do referendo em 1998, o Parlamento viria finalmente a ratificar a lei em Fevereiro de 2007.

Seguiu-se a série de composições sobre o tráfico humano, particularmente de mulheres e crianças e, após esta, a série sobre mutilação genital feminina (2009).

Mas é difícil isolar fases ou “ciclos” na obra de Paula Rego. Existe sem dúvida um continuum - de denúncia e de exposição da crueldade e da injustiça. Mas existe também, veemente na sua obra, o outro lado de tudo isto - a celebração da vida, o poder dos instintos, da sexualidade, o prazer do lúdico, da transgressão e da subversão (destaco, entre outras, a série “Mulher-Cão”, 1994). O empoderamento feminino percorre toda a sua obra, declaradamente expresso ao longo dos anos de múltiplas formas, assumindo uma diversidade de rostos e de representações, e que tem talvez em “Jane Eyre” (2001-02) a sua mais completa expressão - o elogio da rebeldia das mulheres e do seu direito à autonomia, à educação, a uma voz e um espaço próprios, plasmados na figuração que nos dá da coragem indómita da pequena Jane e da sua rejeição do medo e da vitimização. Impressionante imagem, nesta re-visão do inspirador romance de Charlotte Brontë, a da minúscula Jane, de pé num banco de escola, desafiando a autoridade inquisitorial do director do orfanato, Mr. Brocklehurst, rosto lívido do poder, igual a todos os outros que representam o poder e a autoridade. Impossível não falarmos do peso da literatura, das narrativas, mitos, contos e histórias populares no imaginário pictórico de Paula Rego e na criação do seu “teatro interior”, como a artista se lhe referia, fonte permanente de criatividade e imaginação. A sua ilustração das “Nursery Rhymes” (1989) (“Rimas de Embalar” na tradução portuguesa da poeta Adília Lopes) da tradição infantil e popular inglesa é desde logo a sua mais potente e sugestiva expressão.

Era sempre essa a primeira pergunta que me fazia quando a visitava em Londres, no seu atelier de Camden Town: “Conte-me o que há de novo na literatura em Portugal! Que livro recente leu? Preciso de histórias novas!”

Presença fulgurante também no continuum da obra de Paula Rego é a religiosidade - vista “do avesso”, com uma proximidade entre o humano e o divino verdadeiramente transgressiva. E são tantas e tão poderosas as composições que criou (beneficiando desse período de inspiração privilegiada que passou ao longo de 1990, enquanto artista residente na National Gallery de Londres, permitindo-lhe absorver e criar um diálogo próprio com a chamada Grande Tradição da Arte Ocidental, que ousou questionar e reinventar), que é difícil citar apenas algumas. O “Jardim de Crivelli” (1990-91) - o magnífico tríptico exposto na National Gallery contém de certo modo todos os outros, não tanto pela sua dimensão e grandiosidade, como pela intensidade mística que o percorre e pela diversidade de emoções que gera em nós. Talvez seja aí que a proximidade entre o humano e o divino esteja mais patente e nos interrogue com mais força. Um outro tríptico, composto em 1999, revisita a vida das três “mulheres santas” da vida de Jesus: “Marta, Maria e Madalena”, investindo-as de um novo e transgressivo poder, reescrevendo-lhes as vidas, empoderando-as como mulheres terrenas. O ciclo da “Vida de Maria” (2002) estabelece um diálogo profundo com as composições anteriores, re-encenando a vida de Cristo através dos olhos e do corpo de Maria. É talvez esta a mais completa homenagem que a artista faz ao universo feminino, desvelando inteiramente o rosto da mulher, o seu corpo, as suas emoções, os seus medos e angústias e o peso desmedido que a vida lhe impõe.

Talvez melhor que nenhuma outra série de composições, esta revela magnificamente o génio, a coragem e a generosidade de Paula Rego.

Termino com as palavras da pintora, aquando da primeira entrevista que lhe fiz em Londres, em 1999: “O meu tema é a minha história, a história que eu tenho para contar e a minha maneira de a contar” (Macedo, 1999).

Ana Gabriela Macedo, 8 de Junho de 2022.

Referências bibliográficas

Lacerda, A. (1978, Outubro). Art Monthly, 120. [ Links ]

Lacerda, A. (1989, Dezembro). Paula Rego e Londres. Colóquio Artes, 18-23. [ Links ]

Macedo, A. G. (1999, Maio 19). Jornal de Letras, Artes e Ideias. [ Links ]

Macedo, A. G. (2022, Junho 15). Paula Rego (1935-2022): Génio, coragem e generosidade. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1349, 4. [ Links ]

1 Este texto foi escrito no dia 8 de Junho de 2022, data do falecimento de Paula Rego, como uma homenagem pessoal à artista, com quem tive o privilégio de privar ao longo de mais de duas décadas, e à sua obra ímpar. O texto foi publicado no Jornal de Letras, 15/06/2022, p. 4.

Aceito: 17 de Outubro de 2022

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