SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue48Cais-do-Sodré Té Salamansa: Marginal existences in Orlanda Amarilis’ short storiesThe composition of “landscape-woman” in Charles Baudelaire’s Les Fleurs du Mal author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.48 Lisboa Dec. 2022  Epub Feb 20, 2023

https://doi.org/10.34619/1ws0-cddl 

Estudos

Porque precisamos de continuar a ler Novas Cartas Portuguesas 50 anos depois1

Why do we need to keep reading New Portuguese Letters 50 years after its publication

Manuela Sofia da Conceição Silvai 
http://orcid.org/0000-0002-1919-0292

iInstituto Politécnico de Tomar, Centro de Tecnologia, Restauro e Valorização das Artes (TECH&ART), 2300-313 Tomar, Portugal. Email: manuelasofia.silva@ipt.pt


Resumo

Novas Cartas Portuguesas, das “três Marias”, assinalam 50 anos (1972-2022) de atualidade e pertinência da sua mensagem. O texto constitui-se como uma reescrita progressista, subversiva e diferencial das Cartas Portuguesas atribuídas à freira de Beja, em que a clausura por imposição paterna, a figura de Mariana e o modelo discursivo epistolar são tópicos reinventados pelas autoras. Em Novas Cartas a história de Mariana e Chamilly é desconstruída, servindo de mote a um propósito marcadamente político-ideológico e feminista, sendo simultaneamente uma obra de ficção, cuja temática central é o amor livre e liberto da opressão dos sexos.

Palavras-chave: Cartas Portuguesas; desconstrução; amor; reescrita; património literário

Abstract

New Portuguese Letters of the “three Marias” mark 50 years (1972-2022) of relevance and pertinence of their message. The text is a progressive, subversive, and differential rewriting of the Portuguese Letters attributed to the nun of Beja, in which cloistered life due to paternal imposition, the figure of Mariana, and the epistolary discursive model are topics reinvented. The story of Mariana and Chamilly is deconstructed, serving as a motto for a markedly political-ideological and feminist purpose, and, simultaneously, it is constituted as a work of fiction whose central theme is love free and liberated from the oppression of the sexes.

Keywords: Portuguese Letters; deconstruction; love; rewriting; literary heritage

Cinquenta anos após a primeira edição de Novas Cartas Portuguesas (1972-2022), da autoria de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, importa assinalar a importância e a atualidade da mensagem que subjaz à obra. Em primeiro lugar, é de relembrar que se trata de um texto que marcou o seu tempo, tanto pelo contexto político e social em que surgiu, como pelo seu teor provocatório e erótico, que agitou as mentalidades da época em que foi dado à estampa. O desafio à ordem e à moral estabelecida e o atentado aos bons costumes valeram às “três Marias” a perseguição judicial2 pela censura do regime, sendo as autoras sujeitas ao pagamento de caução; ditou a apreensão do livro, acusado de pornográfico, levando ao encerramento da editora Estúdios Cor, dirigida por Natália Correia.

Considerado um livro feminista e um livro contra o regime, Novas Cartas Portuguesas é sobretudo um livro simbólico, que desconstrói as relações de parentesco e de género, questiona os papéis sexuais e sociais, abalando a estrutura patriarcal, negando o domínio masculino e a autoridade da ordem estabelecida. Neste sentido, estas Novas Cartas entram em conflito com as mentalidades da época, porque, como refere Maria de Lurdes Pintasilgo, no “Pré-prefácio (leitura breve por excesso de cuidado)”, é um livro de excessos “porque rompem, extravasam” (Barreno et al., 2010, p. XXVII) os limites de tudo o que até então tinha sido feito em literatura por mulheres. As “três Marias” tiveram a ousadia de quebrar todas as regras tradicionais e de decoro que convinham à mulher da época, ao expressarem publicamente a sua revolta contra a opressão masculina, tanto na esfera do público, isto é, do ponto de vista do papel social e profissional desempenhado pela mulher, como no domínio privado, ou seja, reivindicando o direito feminino à palavra, no seio da família e nas relações de parentesco, por meio da expressão do pensamento e do desejo pelo corpo.

É um livro simbólico “em que se reconhecem mulheres de todos os continentes e classes sociais”, funcionando, por isso, como uma “metáfora de todas as formas de opressão escondidas e ainda não vencidas” (Barreno et al., 2020, p. XXIX). Todavia, a par desta denúncia das desigualdades de género, é inegável que a obra representa igualmente um manifesto contra as políticas da época do Estado Novo, contra a guerra colonial, a emigração, a pobreza, a injustiça social, a discriminação entre os sexos, a violência doméstica, a censura e a falta de liberdade de expressão imposta pelo regime. Não obstante, seria errado considerar esta obra ultrapassada e desatualizada quanto à sua mensagem, ainda que tenha sido um livro datado, que fez história, que marcou uma época e uma geração. Na realidade, o livro, que parece ter caído no esquecimento após a revolução dos cravos, passando a “ser um incómodo para os sectores mais conservadores” (Amaral & Freitas, 2014, p. 56), tem sido “treslido e tomado erradamente por uma visão historicamente datada da sociedade ou por um manifesto feminista desatualizado” quando, na verdade, são abordadas e denunciadas questões bem atuais “como a da guerra, a da discriminação, a da feminização da pobreza, ou a da liberdade de expressão, as quais subjazem à própria ideia de democracia e continuam por responder nas sociedades contemporâneas” (Amaral & Freitas, 2014, p. 19).

As Novas Cartas refletem, portanto, acerca de questões universais e intemporais e de preocupações que dizem respeito a todos os tempos e a todas as gerações. Com efeito, é justamente por se tratar de um texto relevante na atualidade que esteve recentemente patente, no Museu do Aljube, entre os dias 6 de maio e 31 de dezembro de 2021, uma exposição subordinada ao tema “Mulheres e resistência - Novas Cartas Portuguesas e outras lutas”, fazendo um nobre tributo a todas as mulheres portuguesas que se destacaram, de algum modo, na oposição ao regime e na luta pelos seus direitos à voz e a um lugar na sociedade. Além disso, o destaque dado a este texto revela que a consciencialização histórica acerca das diversas formas de resistência é essencial, nos tempos que correm; da mesma forma, deve manter-se viva a memória das lutas passadas, de modo a não se cair em retrocessos nas mentalidades como as que assistimos atualmente, por exemplo, com a proibição da interrupção da gravidez em certos estados dos Estados Unidos da América.

Neste contexto, não será despiciendo recordar o texto de Maria Alzira Seixo (2001, pp. 179-187), intitulado “Quatro razões para reler as Novas Cartas Portuguesas”, redigido em 1999 para refletir acerca do que mudou desde então. A autora destacou quatro aspetos fundamentais na obra das “três Marias” que justificavam a sua releitura atenta. A primeira relaciona-se com o confronto dos tempos, isto é, a receção e a leitura político-ideológica que foi feita do texto; a segunda, com o carácter literário, enquanto reescrita das Lettres portugaises e dos amores de Mariana e Chamilly; a terceira, com as vozes do texto, repartidas entre as vozes das autoras (não individualizadas) e as vozes das personagens; e a quarta, relacionada com a voz de Mariana Alcoforado e o hibridismo intertextual que lhe subjaz.

Cinquenta anos depois, revisitar esta obra significa ainda compreender estes quatro aspetos, embora a primeira razão tenha deixado de se colocar, na medida em que a sua atualidade é indiscutível, assim como a sua relevância no que toca à crítica e às lutas sociais referidas, tendo, inclusive, deixado de ser recebido como um livro datado, fruto de uma determinada conjuntura social e política. Já o interesse literário desta reescrita subversiva, o hibridismo, a intertextualidade com as cartas da freira de Beja, concretizado numa polifonia narrativa de diversas vozes femininas, onde surgem diluídas as fronteiras entre géneros literários, próprios do discurso pós-modernista, ganhou uma relevância que até então lhe tinha sido, de certa forma, negada.

Com efeito, as Novas Cartas Portuguesas destroem os estereótipos relacionados com a identidade de género, mas rompem também com os modelos tradicionais do ponto de vista literário e desestabilizam, inclusive, a noção autoral habitual, por nenhum dos textos surgir assinado individualmente pelas autoras. A intertextualidade evidente e reconhecida com as Lettres portugaises atribuídas à freira de Beja, ponto de partida da reescrita das autoras, e o carácter híbrido do texto (incluindo uma variedade de enunciados como cartas, bilhetes, diálogos, poemas, fragmentos de notícias, anúncios publicitários, excertos de passagens do código penal ou traduções livres de poemas, escritos coletivamente e repartidos, sem assinatura pessoal) subvertem a ideia de autoria, questionada, aliás, no próprio hipotexto das Lettres, tanto atribuído a Mariana Alcoforado como a Guilleragues. Esta desconstrução da noção de autor vem também corroer a tradição e pôr em causa o estatuto do cânone, na medida em que o texto ultrapassa “todo o tipo de fronteiras, tanto estético-literárias como político-filosóficas, desestabilizando o cânone e inviabilizando classificações estáticas” (Mascarenhas, 2012, p. 69). Aliás, é a transgressão subjacente a esta obra, tanto do ponto de vista formal, como ao nível do conteúdo, e a dificuldade em categorizá-la, que permite as múltiplas leituras e interpretações, possibilitando o estabelecimento de diálogos intertextuais.

A escolha da personagem Mariana, freira em Beja e suposta autora das célebres Lettres portugaises, como figura central e como mote para o desenvolvimento do texto das “três Marias” não foi inocente e vai ao encontro do propósito traçado pelas autoras. Na obra, aliás, salientam “(aquela) novidade literária que h(avia) de vender-se” (Barreno et al., 2010, p. 6) e que também havia de agitar a sociedade, revolucionar as mentalidades, intervir e provocar alguma mudança, pelo significado simbólico e intrínseco que a freira adquire no contexto social contemporâneo das autoras, mas também pelo impacto das outras histórias de mulheres ali narradas.

Assim, podemos enunciar três aspetos que explicam a metáfora de Mariana e a preferência pelas Lettres portugaises como intertexto, plasmada desde logo no próprio título Novas Cartas Portuguesas. Em primeiro lugar, porque a freira enclausurada num convento, contrariada e por sujeição paterna, facilmente simboliza a clausura imposta pela sociedade patriarcal às mulheres, oprimidas pelos costumes e pelas mentalidades vigentes, como as autoras denunciam e condenam várias vezes ao longo do texto: “(e)m salas nos queriam às três, atentas, a bordarmos os dias com muitos silêncios de hábito, muito meigas falas e atitudes. Mas tanto faz aqui ou em Beja a clausura, que a ela nos negamos” (Barreno et al., 2010, p. 20), “(a) freio nos quererão domar e a rédea curta” (Barreno et al., 2010, p. 21); ou ainda a recusa da mulher em ser propriedade do homem, mesmo no amor: “eu tua terra, colónia, tua árvore-sombra-propaganda para acalmar sentidos. Também em ti me queres de clausura, tu próprio meu convento” (Barreno et al., 2010, p. 21); “ingrata será a mulher que se nega a querer a quem a queira, determinada que está desde nascença, a ter sua vida à espera” (Barreno et al., 2010, p. 70).

Em segundo lugar, Mariana constitui-se como uma personagem à margem da sociedade, na medida em que foi uma das primeiras mulheres a desafiarem a ordem estabelecida, ao invocar o seu amor por Chamilly e ao exprimir abertamente, e sem pudor, o seu desejo por escrito, revoltando-se contra a sua situação de clausura, contrariando e subvertendo todos os códigos sociais e morais da época, exigidos pela sua condição de freira e de mulher. Deste modo, a figura de Mariana extravasa os limites do individual e surge transmutada em diversos nomes próprios como Maria, Ana, Joana ou Mónica, significando um coletivo feminino, representativo de todas as mulheres, vítimas do espartilho social e político, da dominação masculina, reprimidas pelos usos, pelos costumes e pelo próprio amor - pois “quem nos tolhe o passo são aqueles que nos amam” (Barreno et al., 2010, p. 38) e igualmente limitam. Deste modo, a mulher reivindica a sua própria identidade relativamente ao homem e o direito à liberdade e à igualdade, numa sociedade conservadora e patriarcal, mesmo que, aparentemente, a sua situação tenha evoluído:

a mulher vota, é universitária, emprega-se; a mulher bebe, a mulher fuma, a mulher concorre a concursos de beleza, a mulher usa mini-saia; “hot-pants”, Tampax, diz “estou menstruada” à frente dos homens; a mulher toma a pílula, rapa os pêlos das pernas e de debaixo dos braços, põe biquíni; a mulher sai à noite sozinha, vai para a cama com o namorado; (…) até já contam anedotas obscenas, certos pormenores íntimos da cama e em segredo tomam certas liberdades de linguagem, e assim se modernizam, se libertam, se promovem… (Barreno et al., 2010, p. 221)

Na realidade, trata-se, antes, de uma ilusão de justiça social, de liberdade e de emancipação feminina, sendo um ‘engodo’ que no fundo só serve para salientar a dependência da mulher relativamente ao homem, pois ela “não tem uma cultura própria. Ela existe numa cultura onde o poder pertence aos homens, logo ela está, nesta cultura, alienada” (Barreno et al., 2010, p. 222)

Em terceiro lugar, a escolha do modelo discursivo das Lettres portugaises, o de “seguir de perto Mariana e as cartas” (Barreno et al., 2010, p. 26), conforme anunciado pelas autoras, é determinante nesta reescrita. Com efeito, a obra começa por ser um diálogo epistolar, uma correspondência imaginária entre as personagens, entre Mariana e o cavaleiro francês, a mãe, a ama, a amiga de infância (D. Joana de Vasconcelos), o cunhado ou o primo José Maria - e entre as próprias autoras, aliás. Porém, este modelo é rapidamente ultrapassado, transforma-se numa troca de textos vários, incluindo cartas, bilhetes, poemas, jogos de palavras, diversas histórias de mulheres (e alguns homens), e torna-se num texto híbrido, como referimos acima, cujo fio condutor reside na temática da clausura da mulher no seio de uma sociedade dominada pelo poder masculino.

Deste modo, distinguem-se na obra três tipos de cartas/textos: os que são escritos por Mariana e os que esta recebe; os que são trocados entre as autoras; e os textos que constituem diferentes histórias de vida de mulheres anónimas - personagens-tipo da sociedade contemporânea que exprimem as suas angústias. Além disso, o próprio carácter do discurso epistolar, de tom confessional e intimista, rompe, de certa forma, com as fronteiras entre a realidade e a ficção, e o leitor, o recetor último, reconhece facilmente que “as personagens ficcionais apontam para a existência quotidiana de pessoas que são vítimas das relações opressoras e de injustiças sociais de vária ordem, em que (…) podem encontrar os seus duplos reais” (Cunha, 2012, p. 7). Esta permeabilidade do discurso epistolar, que permite fundir o real e a ficção, funciona como um despertador de consciências para o leitor, na medida em que o leva a refletir acerca dos problemas sociais abordados nos textos, sendo, portanto, ideal para cumprir o projeto das autoras.

Apesar do carácter híbrido das Novas Cartas Portuguesas e da subversão inerente a todo o texto que o afasta, em diversos momentos, significativamente do mito da religiosa portuguesa para lhe dar um novo sentido, podemos distinguir três tópicos constantes que atravessam toda a obra e que permitem ao leitor reconhecer o texto das Lettres. O primeiro, e já apontado, é a presença da protagonista Mariana, metamorfoseada frequentemente em Maria, Ana, Joana ou Mónica, independentemente da sua idade ou condição social: criada, empregada, fidalga ou burguesa. Depois, a temática da clausura da freira, retomada ao longo do texto para significar a opressão a que estavam sujeitas as várias mulheres das histórias, no interior das suas próprias casas, vítimas dos maridos ou dos próprios pais. As mulheres são as eternas vítimas de um destino sempre infeliz e manipulado pelo poder instituído. Por um lado, se casam, sofrem a violência dos maridos, como no texto “Monólogo de uma mulher chamada Maria, com sua patroa”, onde a mulher é dominada por um marido agressivo e alcoólico que “desde que veio das guerras anda transtornado da cabeça e (lhe) mete medo grita toda a noite e dia, bate-(lhe) até se fartar e (ela) ficar estendida” (Barreno et al., 2010, p. 163) e onde subjaz igualmente a crítica à guerra colonial que deixa os homens traumatizados. Um outro texto, “Cárcere”, descreve uma cena doméstica em que o marido, anteriormente preso e torturado pela PIDE, insulta a mulher e, a pretexto de nada, a espanca brutalmente: “começou a dar-lhe pontapés meticulosamente, primeiro nas canelas, depois nas coxas, depois no sexo, (…) pela barriga, pelo peito, pelas costas, pela cabeça, (…) nos olhos, na boca, no nariz, (…), e ali ficou no chão sangrando e inchando” (Barreno et al., 2010, p. 170). A violência descrita nestes dois textos, longe de legitimar ou desculpar a agressividade para com a mulher, reforça a ideia de que a violência gera mais violência e de que tanto a guerra colonial como as perseguições da polícia do regime contribuíram para o adensar das injustiças sociais para ambos os sexos. Por outro lado, se as mulheres casam amando os seus maridos, como no caso de Mónica, não são felizes no amor porque não é um sentimento recíproco nem correspondido e, de igual forma, não escapam ao domínio masculino ou ao desprezo, à posse bruta do homem sobre a mulher (Barreno et al., 2010, p. 194). Do mesmo modo, no seio da sua família, a mulher sofre não só a repressão do pai, que abusa da filha (Barreno et al., 2010, p. 129), mas também da própria mãe, que não a deixa ser livre de escolher e de conduzir a sua vida (Barreno et al., 2010, pp. 117, 212 e 244). Aliás, as próprias mães sujeitam-se aos costumes, às leis discriminatórias e aos comportamentos impostos ao seu sexo, pactuando passivamente com as injustiças e com a segregação sexual - pois foram educadas para obedecer sem questionar -, repetindo e perpetuando modelos de conduta estereotipados às suas filhas, renovando um malfadado destino de resignação e subserviência, votando-as a um papel secundário e a uma vida infeliz, já que “o destino das mulheres é este” (Barreno et al., 2010, p. 245). Daí o choque intergeracional, presente nas relações mãe/filha descritas na obra, o conflito entre as mães que aprenderam a submissão e as filhas que a recusam, preconizando o inconformismo e a revolta.

A educação da mulher, na realidade, serve de veículo de reprodução destes modelos discriminatórios, constitui-se como a forma de repressão ideal, pois “é a que não é sentida por quem a sofre, a que é assumida, ao longo duma sábia educação, por tal forma que os mecanismos de repressão passam a estar no próprio indivíduo” (Barreno et al., 2010, p. 198). É incutida nos jovens, desde cedo, a ideia de diferenciação de papéis sociais entre homem e mulher, de distribuição de tarefas entre os sexos, as que competem ao sexo feminino e as que são da competência dos homens, num contexto em que a mulher é entendida como ser inferior e, portanto, subjugada e submissa à vontade e domínio masculinos por dever de nascimento. Estes estereótipos enraizados são ainda acentuados pelo discurso eclesiástico e pela própria família. Por exemplo, no texto “As tarefas” (redação de uma rapariga de nome Maria Adélia nascida no Carvalhal e educada num asilo religioso em Beja), a menina escreve que às mulheres cabem as tarefas subalternas e subsidiárias do homem, estando-lhes reservada a tarefa de “ter filhos, guardá-los e tratá-los nas doenças, dar-lhes educação em casa e o carinho”, pois, como diz o seu pai: “uma das tarefas das mulheres é obedecer ao homem” (Barreno et al., 2010, p. 225) e “as mulheres foram feitas para a vida da casa, que é uma tarefa muito bonita e dá muito gosto ter tudo limpo e arrumado para quando chega o nosso marido”; e o senhor Prior confirma que “uma das tarefas das mulheres é ser virtuosa”, cumprir com as suas obrigações e ter um comportamento exemplar sem contestar, nem discutir a autoridade. Além disso, a esposa ideal deve ser modelo de virtude, “calada e meiga” (Barreno et al., 2010, p. 258), com “a delicadeza das feições a refletir claramente a delicadeza da alma a quem nós, os homens, queremos anjos do lar e guardadoras fiéis de nossos anseios morais” (Barreno et al., 2010, p. 258). Isto é, a mulher deve evitar pensar e exprimir-se, remetendo-se ao silêncio, anulando-se enquanto pessoa e na sua própria identidade, pois esse é o seu dever. Por exemplo, no texto “As palavras”, redação de uma menina de Lisboa, de nome Mariana, aluna da quarta classe de um estabelecimento de ensino dirigido por religiosas, é interessante observar que a composição é o reflexo dessa educação manipulada que incute a inferioridade do sexo feminino: “vou inventar a palavra desinteligente que é o que eu acho que eu sou por causa da confusão que me fazem as palavras e de estar sempre calada. A escrever as palavras são feitas de letras e só se ouvem na minha cabeça. Fim” (Barreno et al., 2010, p. 230). Na realidade, esta confusão que lhe fazem as palavras, em virtude de estar sempre calada, representa precisamente a repressão de pensamento a que a mulher está condenada; as suas palavras, a sua voz, apenas se ouvem no interior da sua cabeça, nada é exteriorizado, pois as suas ideias e o seu pensamento são condicionados e reprimidos pelo poder masculino.

São também apresentados testemunhos de mulheres que fogem aos seus maridos em busca de um lugar no mundo, como no texto “A luta” (Barreno et al., 2010, p. 231); que se suicidam por não encontrarem outra saída para a vida de martírio que levam, tiranizadas pelos maridos, como Mónica M. e a mãe (Barreno et al., 2010, pp. 196, 206); que matam os maridos pelos mesmos motivos e como forma de libertação (Barreno et al., 2010, pp. 165, 191). São histórias de mulheres que viram os seus maridos emigrarem, abandonadas à sua sorte e com os filhos para criar (Barreno et al., 2010, p. 104); que ficaram privadas dos seus noivos, obrigados a desertar por causa do regime (Barreno et al., 2010, p. 188). Há também testemunhos de sofrimento e privações de homens na guerra do ultramar (Barreno et al., 2010, p. 177 e 218); alusões ao aborto (Barreno et al., 2010, pp. 117 e 205) e à gravidez indesejada, numa clara crítica ao papel da mulher enquanto fada do lar, reprodutora e cuidadora dos filhos do marido, por oposição a uma maternidade desejada e não forçada: “lhes daremos filhos, sim, mas em gosto gerados e paridos nossos” (Barreno et al., 2010, p. 76). Todas estas histórias encontram um paralelo, uma correspondência na sociedade contemporânea das autoras.

Por fim, o terceiro tópico que é retomado pelas Novas Cartas é o do amor, da paixão, que também serve de pretexto e de motivo para o exercício da escrita: “não interessa tanto a paixão, apenas o pretexto, mas antes o seu exercício” (Barreno et al., 2010, p. 3). O tema central, conforme enunciam as autoras, é “de passionar, passar paixão e o tom é de compaixão, é compartido com paixão” (Barreno et al., 2010, p. 7). Mesmo que o amor nunca seja um sentimento totalmente justo, recíproco e em igual medida entre o homem e a mulher, pois

na relação a dois, homem e mulher julgando-se sós e nos seus sexos, se vem imiscuir o que a sociedade fez e exige de cada um; porque relação a dois, e não só no casamento, é mesmo base política do modelo de repressão; porque se mulher e homem se quiserem sós e nos seus sexos, logo isso é sabido como ataque à sociedade que só junta para dominar (Barreno et al., 2010, p. 80).

Dito de outro modo, a relação amorosa é corrompida pelos costumes e vivida em concordância com as expectativas da sociedade, tendo em conta os papéis culturais, em que a mulher é sempre refém do homem: “no amor a mulher está no extremo do angustiante, repressivo e solitário destino que a sociedade lhe inventou” (Barreno et al., 2010, p. 205), o que torna o amor, no sentido em que as autoras o entendem, de impossível realização. Além disso, a própria tradição literária e “todos os mitos de amor dão-no como impedido e irrealizado, e todas as histórias de amor são histórias de suicidas” (Barreno et al., 2010, p. 80), trágicas e destinadas ao fracasso (vejam-se os amores de Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta). Por isso, as autoras se interrogam: “chegará tempo de amor em que dois se amem sem que uso ou utilidade mútua se vejam e procurem, mas apenas prazer, prazer só, no dar e no receber?” (Barreno et al., 2010, p. 82).

Ironicamente, a temática do amor, habitualmente associada à escrita e à sensibilidade femininas, é nas Novas Cartas desconstruída na medida em que

a paixão de Mariana Alcoforado ultrapassa os limites da história individual para se tornar em pretexto de análise aplicável a qualquer situação amorosa e sobretudo em exercício que interroga incansavelmente o estatuto das mulheres através dos tempos, num espaço tradicionalmente fechado (Besse, 2001, p. 53).

É a própria representação do interlocutor amoroso feminino que sofre transformações: “a imagem da mulher submissa e obediente aos dogmas religiosos e às ordens familiares, a negação do corpo, silenciamento da voz e apagamento da identidade” (Silva, 2017, p. 653) são desconstruídos numa verdadeira rutura ideológica contra os valores tradicionais. O amor perde a sua dimensão eufórica, associada ao sofrimento para se transformar num sentimento libertador, sobretudo no que se refere à mulher. Deste modo, o amor, o exercício do amor, o amor que une as autoras, o amor à escrita e às causas ou o amor que une a mulher ao homem - ou a sua negação - são o motivo que importa às autoras, ainda que subvertido e idealmente entendido como liberto de sentimentos de posse e de obsessão, sem uso um do outro, isto é, sem sujeição da mulher ao homem, nem do homem à mulher.

A ideia da freira apaixonada, abandonada à sua dor e desprezada pelo amante, digna da compaixão do leitor, é completamente subvertida em Novas Cartas. Aí encontramos uma Mariana manipuladora, possessiva e possessa de um amor excessivo que sufoca, que usa, que domina e destrói o outro, escondendo, na realidade, perversidade e excesso de amor-próprio: “de vós fujo e o confesso, sem qualquer vergonha ou remorso, pois sei até onde me usastes sem em abandono vos entregardes jamais” (Barreno et al., 2010, p. 55). Chamilly acusa-a de dissimulação e, inclusive, de maldade “por tanta malícia e ódio e egoísmo ter encontrado numa só mulher” (Barreno et al., 2010, p. 54); de estar cheia de si e dos seus sentimentos e de nunca o ter amado de verdade, mas tão-só amado o estado de se sentir apaixonada: “estais tão prenha de vós, Mariana, que jamais vosso ventre engendraria outra vida que não a vossa e a vossa ainda e sempre” (Barreno et al., 2010, p. 55). Embora confesse o seu amor por ela, “perdido (s)e encontr(ou) por (a) amar e achado desamado à força de, mau grado, (a) examinar, e em estado de razão (s)e ver forçado a afastar-(s)e” (Barreno et al., 2010, p. 55); por isso, só lhe resta fugir dela, e a ela aconselhar paciência, devoção e resignação ao estado que os pais lhe impuseram, “presa e obrigada à recusa do mundo” (Barreno et al., 2010, p. 54) naquele convento.

Numa segunda carta, redigida parcialmente em francês, na Sexta-Feira Santa de 1671, Chamilly informa Mariana de que as suas cartas correm o mundo, tocando todos quantos as leem, funcionando como um breviário do modo de amar e escrever cartas de amor: “on t’enjolive, Marianne, ton but est atteint, te voilà mise en pages et sacrée femme de l’esprit du monde” (Barreno et al., 2010, p. 84). De certa forma, o cavaleiro acusa a freira de se ter servido do seu amor e da sua ausência para se “lamentar (…) com arte” (Barreno et al., 2010, p. 86) em cartas cheias de chama e queixumes, sem nunca considerar a agonia do amante, mas tão-só o seu próprio prazer, reconhecendo apenas a medida do seu amor, de “son avidité aride que par mémoire et écriture” (Barreno et al., 2010, p. 87). O cavaleiro prossegue com um discurso pautado por recriminações a Mariana, por tê-la amado sinceramente, por ter sido usado e pelo estado a que ficou reduzido: “voilà sept ans que je ne fais que remuer ma vie de ton absence” (Barreno et al., 2010, p. 84) por amor a ela. Chamilly confessa a agonia e alienação de si próprio, por se ter deixado ludibriar por aquela mulher “seca e gasta de húmus apesar de ardente” (Barreno et al., 2010, p. 87), de quem lhe “veio clausura e fechamento” (Barreno et al., 2010, p. 88).

Na VI e última carta de D. Mariana Alcoforado, freira em Beja, ao cavaleiro de Chamilly, escrita no dia de Natal, no ano da Graça de 1671, Mariana agradece a Chamilly o facto de a ter seduzido e reconhece que o seu amor por ele apenas serviu de motivo, de rastilho, de incentivo para a descoberta de um amor maior, a escrita: “escrevi-vos cartas de grandes amores e penares, Senhor, e de tanto de vós não ter comércio, pus-me de amá-las e ao gesto de as compor mais que a vossa figura ou memória” (Barreno et al., 2010, p. 260). Assim, Mariana confessa que “mais não fez que possu(í-lo) e t(ê-lo) à mercê, como é de uso os homens fazerem com as mulheres” (Barreno et al., 2010, p. 262), invertendo, assim, os papéis tradicionais. Além disso, a freira reflete acerca da vocação para a escrita que descobriu amando Chamilly, imaginando o que poderia ter sido a sua vida se não tivesse vivido em clausura e caso tivesse nascido homem.

Curiosamente, é através do amor e do corpo que a mulher se liberta, detém o poder sobre si própria e consegue dominar o homem. O corpo da mulher é, aliás, sujeito a uma objetivação e simultaneamente é o lugar da resistência contra todas as formas de opressão (Haysom, 2018), tornando-se, com o amor, instrumento de poder. A não correspondência no amor surge como uma forma de superioridade feminina, de independência, de negação, de vingança da mulher contra o domínio masculino que tradicionalmente anula a sua identidade e a oprime.

Por um lado, Mariana subjuga e asfixia Chamilly de um amor paranóico, e por isso ele se afasta dela; por outro lado, a mãe de Mariana, D. Maria das Dores Alcoforado, também manipula o seu amante, que, julgando vingar-se de Francisco Alcoforado, seduziu a esposa; porém, “ao mesmo tempo (s)e aniquil(ou), pois sem passar (dela) não po(de)” (Barreno et al., 2010, p. 184), apaixonando-se verdadeiramente por ela, mas dela apenas “ódio e desprezo, recebidos ao mesmo tempo que o calor de (seu) corpo” (Barreno et al., 2010, p. 184). O homem confessa-se nesta carta, dirigida a D. Maria das Dores Alcoforado, completamente anulado enquanto pessoa e inteiramente submisso ao poder e vontade dela, acusando-a de chantagem ao “mant(ê-lo) preso do receio de (a) perder, condenando-(o) para sempre à dor do (seu) ódio” (Barreno et al., 2010, p. 184) e usando-se do seu amor por ela para o manipular com indiferença, revelando “gelo da alma maior que o do corpo” (Barreno et al., 2010, p. 185).

Na carta enviada ao cunhado (Barreno et al., 2010, p. 172), Mariana acusa-o de a querer cortejar a partir do momento em que soube dos seus amores com Chamilly. Simultaneamente, Mariana rejeita-o, humilha-o, ameaça-o e culpa as mentalidades que consideram a mulher “fêmea de troca em vez de uma infeliz” (Barreno et al., 2010, p. 173). Esta carta serve, mais uma vez, de crítica à sociedade, que nutre preconceitos quanto à figura feminina, e ao homem, que inferioriza a mulher, entendida como o sexo fraco, cuja obrigação é oferecer o seu corpo e submeter-se ao uso e à vontade masculina, desconsiderando a sua vontade e a sua dignidade.

A correspondência estabelecida entre Mariana e a sua amiga de infância, D. Joana de Vasconcelos, constitui um manifesto contra duas formas de clausura imposta: o hábito e o casamento. Nesta troca de cartas, D. Joana queixa-se a Mariana do seu destino, que, na verdade, não é mais que uma outra forma de opressão e de subordinação ao poder masculino. “As grades e os muros desse convento impedem-te os passos, mas assim te deixarem sem disso darem conta, liberdade de te imaginares, de viveres contigo própria, enquanto eu todos os dias me violento nos outros” (Barreno et al., 2010, p. 135), confessa D. Joana, que prefere o convento ao matrimónio, pois, ainda que presa por detrás das grades, pode ser livre da opressão masculina. D. Joana queixa-se dos modos do marido e acrescenta que é estéril - e que, por isso, é desprezada e incriminada. Contudo, simbolicamente, o facto de não poder ter filhos é uma forma de o seu corpo se recusar ao homem, uma espécie de vingança e de não submissão ao poder masculino. O final da carta serve para D. Joana se referir a um certo cavaleiro francês, Chamilly, de galantes modos e agradável figura - bem diferentes dos homens portugueses, aliás -, a quem a história de Mariana muito impressionou e que ela gostaria que Mariana conhecesse. Esta alusão a Chamilly representa um indício do triângulo amoroso que se estabelecerá entre estas três personagens. Na realidade, percebemos que, na “Carta de D. Joana de Vasconcelos para o cavaleiro de Chamilly, na véspera da partida deste para França” (Barreno et al., 2010, p. 150), os dois também foram amantes. Nesta carta, D. Joana acusa Chamilly de ter iludido e usado Mariana, que se perdeu de amores por ele, sem atender à já crueldade bastante do seu destino, entre as grades daquele convento, e agora presa ao seu amor por ele. D. Joana opõe a relação de Mariana e Chamilly à natureza da sua própria ligação com o cavaleiro francês, confessando que se abandonou a ele por simples “prazer, quem sabe se por vingança, se por cansaço, se por desafio” (Barreno et al., 2010, p. 150), sem nunca, contudo, o ter amado, servindo-se dele e preferindo “não arriscar (com ele) o amor e a dignidade, únicos bens que (lhe) restam intactos, (s)eus desde nascença e dos quais só e(la) disp(õe)” (Barreno et al., 2010, p. 150).

Deste modo, podemos afirmar que o amor nunca é correspondido em igual medida e é sempre representado de forma desequilibrada e assimétrica. A personagem Joana ama por simples prazer, sem sofrimento e sem esperar nada em troca; Chamilly ama de forma leviana várias mulheres e simultaneamente prende-se a Mariana e perde-se inexplicavelmente nela, por isso a abandona como referimos acima; e, por fim, Mariana ama o amor e o amor à escrita que descobriu através do amante.

Para além deste triângulo amoroso, estabelece-se um outro entre o primo de Mariana, D. José Maria Pereira Alcoforado, Mónica M. e o marido desta, cujo final se revela trágico. Nestas relações também o amor não existe em igual medida, nem tão-pouco é correspondido. Mónica, casando por paixão com o marido que a despreza, não consegue sentir amor por José Maria que a ama perdidamente. O amor sem saída só pode ser trágico: Mónica M. suicida-se, deixando um bilhete a D. José que não pôde amar (Barreno et al., 2010, p. 209); por sua vez, D. José enforca-se (Barreno et al., 2010, p. 159).

No próprio amor é instituída uma relação de poder, onde a mulher surge habitualmente como ser inferior e dominado e onde não há lugar para a igualdade; para o homem, “o amor de mulher (é) (…) entrega, obediência, serviço, gratidão” (Barreno et al., 2010, p. 143). Aliás, é precisamente por esse motivo que Maria Ana escolheu ser solteira, porque “amor, (ela) só o quereria na igualdade; por isso recus(ou) marido, recus(ou) homem” (Barreno et al., 2010, p. 142), para não compactuar com a hipocrisia da sociedade, que cultiva e louva o amor sentimental e submisso. Na verdade, “ninguém teme mulher exposta ao amor” (Barreno et al., 2010, p. 142), destinada que está ao casamento, mas mulher independente, que se revolta contra a ordem instituída e faz tremer os alicerces da sociedade: “quando a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto” (Barreno et al., 2010, p. 143).

Este conjunto heterogéneo de textos e tópicos diversos suporta uma temática mais ampla, de carácter político e feminista e de alcance crítico, que é a da clausura e opressão da mulher na sociedade. Neste sentido, estes textos são subversivos e transgressores da tradição alcoforadista, acrescentando possibilidades ao mito, através do uso da metáfora de Mariana, investindo-a de um novo significado, reconvertendo a clausura da personagem na clausura de todas as mulheres.

As autoras parecem querer resgatar a figura tradicional de Mariana, longamente cultivada pela literatura portuguesa, do protótipo de mulher apaixonada, obcecada, vítima de um destino imposto pela família e pelas regras sociais que limitam a vontade e a liberdade femininas. A mulher perde sempre e nem no amor ela logra encontrar a igualdade, tornando-se vítima e submissa ao homem que a iludiu e a abandonou. Assim, subtraindo-a à tradição da mitologia nacional, as Novas Cartas Portuguesas procuram, de certa forma, reinscrever Mariana na história de ficção e a Mulher na História, restituindo-lhe uma identidade própria através do poder da palavra. E quando a personagem de ficção foi recebida e aclamada como freira apaixonada, protótipo de bem exprimir o amor, a sua mensagem não foi entendida na sua real amplitude: o seu lamento, a sua personalidade excecional e marginal, renegando a clausura e proclamando livremente o seu amor - o seu direito à palavra escrita - e o seu desejo, contra todo o tipo de regras e de decoro, não foram devidamente interpretados. Por outro lado, também foi recusado à mulher um lugar na sociedade, onde tem sido continuamente silenciada, sem voz ativa e entendida como parente pobre, como uma costela do homem que este dispõe à sua vontade.

O discurso epistolar polifónico observado nas Novas Cartas substitui o discurso a uma só voz da paixão individual de Mariana das Lettres (Klobucka, 2012), possibilitando o cruzamento de várias vozes femininas contemporâneas com a da protagonista Mariana. Deste modo, e seguindo Dubois (1988, p. 38), podemos concluir que na obra das “três Marias” existem duas linhas que se entrecruzam a partir de um mesmo fio condutor que é a personagem Mariana e a sua paixão: a ampliação das Lettres portugaises através da reconstrução da vida da freira com base na informação contida nas cartas, do que se descobriu acerca dela, do que se julgou da sua família e do que se imaginou que poderia ter sido a sua história de amor; e os contextos modernos análogos e paralelos em que outras mulheres, Marianas, presas a uma sociedade conservadora, vítimas da opressão e do poder masculinos, denunciam a lei instituída e castradora da liberdade feminina.

As Novas Cartas Portuguesas são, não obstante o seu carácter inovador, subversivo e transgressor, tanto do ponto de vista do tratamento do mito alcoforadista, como a nível formal, um romance onde subjaz o amor. “O amor da transgressão integrável, essa é a verdade desta história e artes” (Barreno et al., 2010, p. 273), dizem-nos as autoras. Com efeito, todas as histórias giram em torno do amor, ainda que este seja sempre desigual e assimétrico; ainda que o amor justo e em igual medida, sem uso um do outro, seja utópico e tenha habitualmente um final trágico. É pelo amor que a mulher se liberta das amarras da opressão masculina, passando de dominada a dominadora do homem; é através do amor que a mulher encontra a resposta às suas angústias e pode aspirar a um lugar na sociedade e esperar a sua salvação. Mas é sobretudo pelo amor à escrita, à palavra, que a mulher pode quebrar os limites impostos ao seu sexo, ganha voz, poder e liberdade; é tendo esperança na revolução das mentalidades, na “morte do valor da diferença” (Barreno et al., 2010, p. 286) entre homem e mulher, é imaginando o amor em liberdade, que a mulher pode, na realidade, transformar o mundo.

Referências bibliográficas

Amaral, A. L., & Freitas, M. (Orgs.). (2014). Novas cartas portuguesas: Entre Portugal e o mundo (New Portuguese Letters: Between Portugal and the world). D. Quixote. [ Links ]

Barreno, M. I., Horta, M. T., & Costa, M. V. da (2010). Novas artas portuguesas. Edição comemorativa dos 50 anos (New Portuguese Letters. Commemorative edition of the 50th anniversary) (A. L. Amaral, Org.). D. Quixote. [ Links ]

Besse, M. G. (Ed.) (2001). As novas cartas portuguesas e o exercício da paixão (The New Portuguese Letters and the exercise of passion). In Percursos no feminino (pp. 49-59). Ulmeiro. [ Links ]

Cunha, P. C. R. da R. de M. (2012). A estratégia epistolar em novas cartas portuguesas (The epistolary strategy in New Portuguese Letters) (Comunicação em evento científico). In Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional de Literatura e Cultura. GELIC/UFS. Disponível em https://www.yumpu.com/pt/document/view/12741308/a-estrategia-epistolar-em-novas-cartas-portuguesasLinks ]

Dubois, E. T. (1988). A mulher e a paixão. Das lettres portugaises às novas cartas portuguesas (1669-1972) (The woman and the passion. From the lettres portugaises to the New Portuguese Letters (1669-1972)). Colóquio Letras, (102), 35-42. [ Links ]

Haysom, P. (2018). Formar um bloco com os nossos corpos: O(s) corpo(s) localizado(s) em novas cartas portuguesas (Building a block with our bodies: The body(s) located on New Portuguese Letters). Cadernos de Literatura Comparada, 39, 167-181. https://doi.org/10.21747/21832242/litcomp39a11 [ Links ]

Klobucka, A. (2012). Considerai, irmãs minhas: As negociações de parentesco e comunidade entre as lettres portugaises e as novas cartas portuguesas (Consider, my sisters: The negotiations of kinship and community between the lettres portugaises and the New Portuguese Letters). Cadernos de Literatura Comparada, (26/27), 41-62. https://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/article/view/102Links ]

Mascarenhas, M. (2012). Cartas portuguesas e novas cartas portuguesas: Releituras im-possíveis (Portuguese Letters and New Portuguese Letters: Impossible re-readings). Cadernos de Literatura Comparada, (26/27), 63-91. https://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/article/view/103Links ]

Seixo, M. A. (Ed.) (2001). Quatro razões para reler as Novas Cartas Portuguesas (Four reasons to reread the New Portuguese Letters). In Outros erros: Ensaios sobre literatura (pp. 179-187). Asa Editores. [ Links ]

Silva, G. (2017). A construção do interlocutor amoroso em Novas Cartas Portuguesas (The construction of the amorous interlocutor in New Portuguese Letters). In Anais do XXVI Congresso internacional da ABRAPLIP: Ensino e pesquisa da literatura portuguesa no Brasil e no mundo (pp. 647-658). Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa. https://www.abraplip.org.br/downloads/anais-e-resumos/AnaisABRAPLIP2017a.pdfLinks ]

Silva, M. S. da C. (2018). As Lettres Portugaises na literatura portuguesa contemporânea: Reescritas (Tese de doutoramento, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa). Repositório da Universidade de Lisboa. http://hdl.handle.net/10451/34784 [ Links ]

1 Este artigo foi desenvolvido a partir da tese de doutoramento de Manuela Silva (2018).

2 A propósito da censura à obra e da perseguição às autoras, veja-se Duarte Vidal. (1974). O Processo das três Marias: defesa de Maria Isabel Barreno. Futura. Ainda acerca deste assunto e do impacto da obra a nível internacional, veja-se também Ana Luísa Amaral e Marinela Freitas (Orgs.). (2014). Novas Cartas Portuguesas: entre Portugal e o mundo. D. Quixote.

Recebido: 26 de Julho de 2022; Aceito: 25 de Novembro de 2022

Manuela Sofia da Conceição Silva. CIÊNCIA ID: https://www.cienciavitae.pt/portal/BD1A-CDCA-046C

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons