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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.49 Lisboa jun. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.34619/2kp0-rpbt 

Homenagem

condenado à morte uma homenagem a Marguerite Duras

Miguel Bonnevillei  1

iAutor independente. E-mail: office@miguelbonneville.com


o meu problema em escrever sobre duras é a minha sensação de que já foi tudo escrito. e não só - depois de anos a pensar que nunca teria a coragem de interferir com a sua obra, considerando-me apenas um lugar aberto que produz vazios, espaços onde as suas palavras podem reverberar e provocar efeitos, acabei por criar um espectáculo e escrever um livro em sua homenagem.

não é que ela fosse intocável, eu é que tinha medo de falhar. era-me demasiado próxima - também isso era incompreensível - e, consequentemente, a responsabilidade era desmedida.

então, depois de dois anos a colocar-me em estado de receptividade, e de mostrar finalmente o que resultou dessa condição auto-imposta, agora parece não restar nada. esse nada que faz parte da sensação de alívio de não haver coisa alguma para dizer.

e, no entanto, surge um convite para se dizer alguma coisa.

e, no entanto, diz-se que sim, porque apesar do vazio, duras está sempre presente.

porque há um impulso de consentimento quando a dificuldade nos confronta.

e agora, com a dificuldade nas mãos, escreve-se sobre isso. sobre o acto de falhar logo ao princípio. sobre falhar enquanto se escreve - o desastre do texto.

*

qual é a abordagem certa para escrever uma homenagem a duras?

ou melhor, uma outra homenagem a duras.

a preocupação é sempre a mesma: dizer a verdade. mas dizer a verdade sobre o quê quando estou por dentro de - e perante - um corpo esgotado?

corpo que é resultado de todas as torturas burocráticas, todas as avalanches tecnocratas pelas quais foi devorado nos últimos tempos, que o foram deixando cada vez mais incapaz de formular ideias, cada vez mais incapaz de ser criativo.

parece que o que resta é escrever sobre isso.

ou escrever à volta disso.

e eu não quero repetir o que já disse, não quero repetir o que já escrevi - mesmo que ninguém me tenha ouvido, mesmo que ninguém me tenha lido. mesmo que, apesar dos seus nomes distintos, a obra seja uma e una, seja sempre a mesma.

*

sobre o que é que uma barata escreve? provavelmente sobre a experiência de ser uma barata. sobre as suas inúmeras tentativas de sobreviver.

diz a verdade, então. diz a verdade. é o que repete vezes e vezes sem conta, apenas para si mesma.

implodiu.

implodi.

enquanto a inteligência artificial se entretém a escrever contos e a fazer desenhos, os artistas arrancam a pele que lhes sobra a escrever candidaturas para tentarem sobreviver à malaise dos nossos tempos.

talvez aquela ideia romântica de que iremos ter o privilégio de trabalhar menos porque as máquinas o farão por nós esteja errada - os súbditos, ao que parece, continuam a ser os mesmos. e tudo indica que a história continuará assim.

implodi.

estou exausto. já não me identifico com nada do que se diz.

é o fim, sem que tenha havido princípio.

*

e é aqui que, depois de reorganizar parágrafos, e de sentir que estou a conseguir fazer o mínimo de sentido - para quê? -, vou à procura de uma citação:

já não vale a pena fazer cinema de esperança socialista. de esperança capitalista. já não vale a pena fazer cinema de uma justiça que há-de vir - social, fiscal ou outra. cinema do trabalho. do mérito. das mulheres. dos jovens. dos portugueses. dos malianos. dos intelectuais. dos senegaleses.

já não vale a pena fazer cinema do medo. da revolução. da ditadura do proletariado. da liberdade. dos vossos espantalhos. do amor. já não vale a pena.

já não vale a pena fazer cinema do cinema.

não acreditamos em mais nada. acreditamos. alegria: acreditamos: em mais nada. não acreditamos em mais nada.

já não vale a pena fazerem o vosso cinema. já não vale a pena. deve fazer-se cinema com essa consciência: de que já não vale a pena.

que o cinema caia em perdição, esse é o único cinema possível.

que o mundo caia em perdição, que caia em perdição, é a única política possível.2

substitua-se a palavra cinema por outra arte qualquer. ou apenas por arte mesmo. aqui está o meu estado de espírito.

estado. espírito. barata.

implosão.

deixo-me ruir então.

faço o que tem de ser feito sempre que há a necessidade de exercer um movimento criativo: matar-me. no texto, como no teatro, existe também essa dimensão do sacrifício. essa agonia que precede a ausência.

*

escrevo deitado na cama, rodeado de livros e de fantasmas, encenando para mim mesmo uma espécie de doença da morte. uma doença de inúmeras pequenas mortes. numa cama com vista para a cidade - de onde não se vê nem se ouve o mar. numa cama que é palco privado, partilhado com leitores e escritores do meu corpo. esses que me devolvem o meu corpo; a minha própria história - reescrita. corpos cheios de morte à partida. e nenhum deles sabe o seu papel de cor. todos ausentes de memória. por momentos, pelo menos, ausentes. perdidos no tempo.

é sobre eles que eu escrevo. em cima de, por cima de, e acerca de.

a escrita começa quando os nossos corpos se apagam.

a escrita começa quando os nossos corpos acabam.

é a partir do fim que começa o princípio.

*

só posso conhecer duras - dar a conhecer duras - através da escrita. do meu próprio processo de escrita.

e se quando escrevo sobre ela é sobre mim que escrevo, então imagino que o reverso também possa ser admitido.

dizer a verdade - é o que me resta. escrever a verdade. sabendo que a verdade conta cada vez menos na farsa que se tornou o quotidiano.

sabendo também que, ao contrário de woolf, não estou de todo convencido de que, se mergulhar mais fundo, atingirei a verdade. porque sei que, chegando ao fundo, encontraria outros fundos por debaixo desse - e a verdade teria de continuar a ser desenterrada. provavelmente, infinitamente - desenterrada, a verdade.

seja como for, procurá-la parece-me mais interessante do que possuí-la.

talvez seja impossível falar de duras.

quando muito, talvez se possa falar da impossibilidade de falar de duras.

*

há que abrir um lugar na noite para que a escrita possa acontecer. um lugar para eu escrever como se fosse eu. uma noite artificial. um hábito de mascarar esse espaço indefinido. escrever como se não fosse necessário fazê-lo.

(o meu reflexo na noite, apesar de translúcido, é visível.)

escrever -

sabendo que ao pôr-do-sol, verei vénus fulgir intensamente, logo acima do horizonte.

e à medida que a noite avança, ensombrecendo as casas, os monumentos, e o rio, orion ficará visível a sudoeste.

sabendo que o texto será dobrado pela minha própria voz. que o texto vai perturbar a memória. que se vai tornar solidão desmesurada, passível de ser devorada. noite em torno da qual serei solvido.

*

vou deixando aqui ficar a minha invisibilidade.

ainda não comecei a pensar. estou à procura do texto. à procura de duras. à procura do lugar. para lá das paredes do quarto. à procura de um prazer até aqui desconhecido.

ou melhor, à espera.

fico à espera do texto.

à espera.

do erro.

o tempo não passa.

e, ignorado pelo texto, implodo.

*

eu gostaria que o texto abarcasse a experiência de duras, em vez de a substituir por ideias. ou por conclusões. ou até por palavras. gostaria que ele ensaiasse ser duras - e que isso pudesse ser vivido -, que um pudesse ser experienciado através do outro. que o texto se tornasse audível para si mesmo. que abraçasse o corpo do leitor quando este se encontra sozinho perante as palavras. que houvesse movimento, independentemente da língua. que de um corpo tão frágil saísse um grito vindo do mais profundo dos tempos.

que no meio de todos os outros textos, de repente, este texto fosse um gesto, um golpe quase imperceptível, mas muitíssimo violento. ali, revelado subtilmente, o inexprimível.

implosão da leitura.

implosão do leitor. atrito.

detrito de texto.

*

poderia sobrepor as nossas biografias -

o cuidarmos das nossas mães doentes, o ocuparmos o vazio deixado pelos nossos pais ausentes. o nunca termos sido amados o suficiente. a necessidade de ter controlo sobre o nosso sofrimento.

não é tudo -

vemos no rosto um reflexo da morte.

apaixonamo-nos por isso.

e ainda:

nos textos, as traduções de estados de espírito.

no quotidiano, o fardo de vivermos fora dos livros.

nos sonhos, um mundo novo, voluptuoso. mundo que dá primazia à indolência. mundo ocupado pelo erotismo. lugar de incompetentes. lugar de lunáticos e de livros.

não é tudo -

pergunto-me se em vez de lutarmos por manter a beleza no mundo, não deveríamos simplesmente vivê-la, acontecesse o que acontecesse?

e ainda:

dizer a verdade para quê, quando quem a defende é quem acaba por ser punido?

não é tudo -

ela sabe quem eu sou.

isso torna menos avassaladora a incompreensão dos outros.

e ainda:

abraçamos a solidão em conjunto.

transformamos a dor - tornamo-la palavra.

abrimos espaço para abarcar as dores dos outros.

amor comunitário -

amor de uma comunidade de solitários.

ainda não é tudo.

ainda.

*

faço parte de uma comunidade que desconheço. o facto de me identificar de forma praticamente indiscritível com duras, torna tudo ainda mais obscuro - uma vantagem. confundir-me com ela é confundir-me com uma ideia. dela. com a sua escrita. com a incorporação da sua escrita. como se eu tivesse sido inventado por ela. palavra criada no delírio.

faço parte de uma comunidade que desconheço. porque não sei até que ponto os que a lêem, os que a vêem, se desfazem das suas próprias histórias, se desfazem dos seus próprios enredos.

houve um ou outro comentário, uma ou outra vez, mas não pude deixar de os achar superficiais. românticos. talvez seja impossível descrever o abalo. talvez porque ela também se presta à superfície.

digo que faço parte de uma comunidade que desconheço porque nunca conheci ninguém com uma predisposição para morrer. só assim, simplesmente. morrer de palavras. morrer de espaços em branco - espaços abrasadores, em branco. morrer dessa espécie de deserto que se abre.

comunidade talvez então daqueles que sabem que quem vai para o deserto, vai para morrer. comunidade inalcançável de fantasmas. comunidade cheia de sede.

*

ninguém ficou para conversar depois de son nom de venise dans calcutta désert. ninguém pôde partilhar a agonia. foi como se tivéssemos visto demais. como se tivéssemos acedido ao arquivo das nossas mortes e isso nos tivesse ferido. o texto escreveu-se sozinho. o filme também. tornou-se impossível distinguir as ruínas umas das outras.

procurei um lugar por debaixo da pele da comunidade.

i racine. li blanchot. li lacan.

li madame de la fayette.

li kristeva. michelet e ainda robert antelme -

mas não consegui acabar de o ler.

li sobre crimes e vampiros, cinema, som, estudos e biografias.

li o eclesiastes e outras partes da bíblia.

li wittig. kierkegaard.

e deixei em repouso o homem sem qualidades.

encontrei pistas, mas não consegui resolver o crime.

faço parte de uma comunidade de cabeças cortadas, perdidas, nunca reencontradas, esquecidas por aí.

e é com as cabeças decepadas que falamos a mesma língua, que comunicamos a partir de uma interioridade feita de uma língua que as antecede. comunidade de fumo.

ainda não é tudo.

*

fora dessa comunidade tornou-se um problema admitir que se pode ser outro. ser-se tão inevitavelmente outro que praticamente não se é ninguém. parece ser impensável permitir que uma personagem fale sobre a sua própria criação.

até porque não sou mais do que isso: personagem. amigo imaginário. jorro de tinta. nada. um lugar longe da mente.

fui extraído do problema da página em branco. ela extraiu-me de si mesma. nasceu, como eu, de si mesma. é simples. em vez de matar, escreveu-me. criou para si mesma a oportunidade de viver uma outra vida. criou um lugar para poder olhar para o figurante que eu sou - e eu ocupo o lugar da testemunha. e ela observa-me a observá-la. o que eu sou, ou o que eu era, derrete-se e torna-se paisagem. torno-me imagem na caverna.

sem cabeça, sem palavra, sem vestígio de crueldade.

não é tudo.

ainda.

*

ela observa-me, mas eu não actuo -

leio.

leio-a enquanto ela me escreve. tudo num mesmo movimento. e a inteligência rodeia-nos e espera - observando-nos por sua vez também. à espera do cansaço ou de uma distracção qualquer para nos tomar de assalto. para reencontrar o caminho até aos princípios do mundo.

eu sou a história - embora não tenha predisposição para ela - e ela também.

não é tudo.

ainda.

*

existimos sem lei numa lucidez que mata. as palavras ocupam o nosso lugar. procuramos o nosso lugar no livro. e repetimos o enigma.

o tempo talvez torne os nossos amores obsoletos, mas é certo que não faz o mesmo com o desejo.

aquele corpo que ainda me atormenta, talvez se mantenha tão vivo na memória porque me era proibido. o desejo era um rosto, uma silhueta, uma disrupção no conhecimento do mundo.

obscuro, difícil, autobiográfico.

peço-lhe -

que me devolva de uma vez ao inorgânico.

*

nem homem, nem mulher -

um texto.

e não é tudo -

o texto é um caso de resgate, de memória necessariamente adulterada, ressuscitada.

em torno do texto, o corpo -

nem homem, nem mulher.

a fadiga, monumental.

condenado à morte -

nem homem, nem mulher -

sou já o corpo morto - porque há que quebrar com a ordem das coisas.

colocar o corpo disponível para todos.

colocar o texto disponível para todos.

deixar-se ser manuseado.

é dentro dos corpos que os livros brilham. e os livros estão abertos -

à mercê do tempo -

lesionados, cheios de vida.

*

faço parte de uma comunidade de amantes que perderam os seus nomes para sempre -

durante um curto período de tempo, para sempre.

comunidade com outra noção de tempo.

despimo-nos de outras maneiras.

beijamo-nos de outras maneiras.

caídos em perdição.

caídos em perdição como o cinema.

*

se eu a colocasse em frente ao ecrã e a filmasse, a sua imagem ver-se-ia projectada até ao infinito. numa dessas repetições, adivinhar-se-ia o meu rosto.

insólito, de novo, morto. desgastado.

quando tudo falha, fica o crime -

duras.

e não é tudo -

vejo-a iluminada, recortada pela noite, em deauville, a ser empurrada pelo vento. é 1986.

ela olha para cima e aponta para o vazio. talvez para o único caminho que nos possa conduzir a um estado primitivo.

*

se pouco existia antes de este texto ser escrito, agora sou praticamente inexistente.

talvez me tenha repetido, esgotado até à obscenidade.

talvez tenha ficado aqui, algures, nos interstícios.

sozinho no meio da minha comunidade.

o ventilador pára.

aguardo.

aguardo mais um momento.

parece que anoiteceu, finalmente.

parece que desisti, que deixei de o esperar, ao texto.

no entanto, pude vê-lo a escrever-se da única maneira que foi possível para mim - perdendo-o antes que acontecesse.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Duras, M. (Director, Writer). (1977). Le camion (The truck) (Film). Cinema 9, Auditel France. [ Links ]

NOTAS

1A rasura no nome está relacionada com a exploração da identidade de género e da fluidez da identidade em geral. Ao rasurar o seu nome, Bonneville desafia as noções tradicionais de identidade e género, que são usualmente definidas de forma rígida e binária. A rasura pode ser vista então como uma forma de expressar visualmente essa ideia.

2Anexo do argumento do seu filme ‘O Camião’ (1977).

Aceito: 28 de Março de 2023

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