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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.49 Lisboa jun. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.34619/ppip-lz32 

Retrato

Adriana Boscaro (1935-2022): A verdadeira cosmopolita

Clara Silvai  1

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: clarasilva.press@gmail.com


© Arquivo familiar.

Adriana Boscaro 

Na pequena autobiografia escrita por Adriana Boscaro na terceira pessoa como introdução ao seu currículo, a professora italiana dava destaque às suas “melhores recordações”: as viagens à boleia feitas com as amigas pela Europa nos anos 1950, numa altura em que isso era impensável, “mais ainda para raparigas da Escola do Sagrado Coração” (Curriculum Vitae di Adriana Boscaro).

Terá sido nestas viagens pela Escócia, Irlanda, Alemanha, Países Baixos e Dinamarca, às vezes durante cinco semanas, que Boscaro, na altura com vinte e poucos anos, começava a pôr em prática a sua paixão por línguas, alimentando, nas suas palavras, o seu “espírito um pouco errante”.

Os pais geriam um hotel na turística Riva degli Schiavoni, em Veneza, e Adriana, tal como a irmã mais velha, Paola, viveu no alojamento turístico até os pais se reformarem, já depois da adolescência da filha. Nos corredores, Adriana cruzava-se com outros viajantes, com quem também praticava línguas estrangeiras, chegando a criar “amizades duradouras”, como conta na sua pequena autobiografia.

Os livros faziam parte do quotidiano da família, recorda por telefone Antonella Peloso (comunicação pessoal, 11 de Maio de 2023), sobrinha de Adriana Boscaro. “Havia uma grande estante em casa”, conta. “O meu avô (pai de Adriana) tinha livros em todas as línguas: espanhol, alemão, francês... Literatura e também ensaios.”

Boscaro já tinha frequentado uma escola de idiomas e dominava o inglês, o espanhol e o francês. “Adorava todas as línguas”, sublinha Peloso. Em 1957, quando o IsMEO - Instituto Italiano para o Médio e Extremo Oriente abriu, em Veneza, cursos de três anos de árabe, chinês e japonês, Boscaro, na altura com 22 anos, decidiu escolher o último.

A razão foi apenas uma, explica no texto introdutório do seu currículo: “O professor dava mais garantias de não faltar. Morava em Veneza, enquanto o de chinês (vivia) em Paris e só apareceria uma vez por mês.”

As aulas do professor Shigeru Tsuji, crítico de arte e especialista no trabalho do pintor Giorgione, abriram-lhe o apetite para a cultura japonesa e acabaram por mudar a sua vida: “Foi amor à primeira vista.” De tal forma que Boscaro decidiu aprofundar os estudos orientais sozinha, como autodidacta, com a ajuda do que considerava ser o “tesouro bibliográfico” do Istituto Venezia e l’Oriente da Fundação Giorgio Cini. Começou por publicar pequenos ensaios sobre o Japão e travou amizade com estudiosos da cultura japonesa, como o professor britânico Richard Storry (1913-1982) e o fotógrafo e antropólogo italiano Fosco Maraini (1912-2004).

Só mais tarde, em 1965, a universidade Ca’Foscari, em Veneza, abriria cursos de línguas orientais, com Paolo Beonio-Brocchieri (1934-1991) a liderar o ensino de japonês. Adriana Boscaro inscreveu-se no curso e licenciou-se quatro anos depois, defendendo a tese “Japão no século XVI: o momento sociopolítico e o momento cultural nos primeiros contactos com a Europa Ocidental”.

No dia seguinte a obter o diploma, “saltava para o outro lado do banco”, recorda a sobrinha: “Licenciou-se e no dia seguinte já era professora, era assim que ela era, realmente boa” (comunicação pessoal, 11 de Maio de 2023).

Até 1971, foi bolseira na Universidade de Tóquio e traduziu para o italiano uma centena de cartas pessoais do líder militar Toyotomi Hideyoshi (1536-1598), mais tarde compiladas no livro 101 Letters of Hideyoshi - The Private Correspondence of Toyotomi Hideyoshi (1975).

Antonella Peloso lembra-se das primeiras viagens que a tia fez ao Japão nos anos 1960. “A comida era diferente, não havia queijo nem muitas raízes, e lembro-me de a minha mãe lhe mandar vitaminas para suplementar essa perda” (comunicação pessoal, 11 de Maio de 2023).

Quando voltou, em 1971, Boscaro dedicou-se àquela que considerava ser “uma das tarefas mais gratificantes” da sua vida: o ensino. Essa outra “viagem”, como lhe chamou no currículo, duraria trinta e três anos, até à sua reforma, em 2004. Depois disso, Boscaro continuou ligada à universidade como investigadora, até à sua morte, em Agosto de 2022.

Um dos seus principais interesses eram as “afinidades entre certas cidades italianas e japonesas em determinados períodos históricos”, afirma Luisa Bienati (2009), antiga aluna de Boscaro na Ca’Foscari, numa biografia sobre a professora e amiga.

Uma dessas ligações era entre Veneza, a cidade onde Boscaro nascera em 1935, e Edo, atual Tóquio. “Cidades em cima de água, cidades de comércio, cidades com estruturas urbanas similares, cidades de entretenimento, com os seus bairros de prazer, casinos e mulheres bonitas, pintadas por artistas e elogiadas por poetas” (Bienati, 2009, p. 9).

Boscaro procurou os relatos dos primeiros viajantes europeus ao Japão e estudou a representação cartográfica da ilha de Ezo em antigos mapas italianos, franceses, portugueses, ingleses e holandeses, “apontando erros e discrepâncias” (Bienati, 2009, p. 11). A professora e investigadora destaca o interesse de Boscaro no “século cristão”, o período de quase cem anos da missão jesuíta no Japão (1549-1636), “uma fonte inesgotável de descobertas”.

A literatura era outra das suas paixões. Aliás, realça Bienati, Boscaro tornou-se a “especialista italiana” no escritor japonês católico Shūsaku Endō (1923-1996), de quem também foi amiga.

Na sua autobiografia, Boscaro dá relevo à tarde passada em Kamakura, em 1970, com o escritor japonês Kawabata Yasunari (1899-1972), dois anos depois de ser distinguido com o Nobel da Literatura (foi o primeiro escritor japonês a conseguir o feito).

A professora deu aulas de literatura japonesa e organizou seminários sobre escritores. Além de Yasunari e Shūsaku Endō, Boscaro debruçou-se sobre o trabalho de Ryūnosuke Akutagawa e Jun’ichirō Tanizaki. Ao último, dedicou vários anos de estudos, com traduções e edições das suas obras, reunidas no livro Tanizaki in Western Languages: A Bibliography of Translations and Studies (2000).

Em 1995, Boscaro organizou na Aula Magna da Universidade de Veneza um simpósio internacional sobre o trabalho de Tanizaki, o primeiro dedicado a um só escritor japonês, “um evento histórico que ainda hoje é relembrado com carinho” (Bienati, 2009, p. 11). O colóquio, que reuniu duas centenas de alunos e investigadores de todo o mundo, deu origem à obra A Tanizaki Feast: The International Symposyum in Venice (1998), editada por Boscaro e Anthony H. Chambers, uma referência nos estudos sobre o escritor, publicada em inglês e em japonês.

Dois anos depois, Boscaro lançava Japanese Fiction: One Hundred Years of Translations (2000), onde catalogava todas as traduções italianas de literatura japonesa. Segundo Bienati, a publicação revelava um facto importante: “obras de muitos autores, incluindo de Tanizaki, foram traduzidas para o italiano muito antes de serem traduzidas para outras línguas” (Bienati, 2009, p. 12).

Segundo Bienati, dos inúmeros cargos que Boscaro ocupou, incluindo o de co-fundadora da Associação Europeia de Estudos Japoneses e da Associação Italiana de Estudos Japoneses, nada a orgulhava tanto como ser responsável da colecção japonesa da editora Marsilio, “a primeira em Itália e na Europa dedicada à literatura clássica japonesa” (Bienati, 2009, p. 12).

Com o nome “Mille Gru”, uma homenagem ao livro com o mesmo nome de Kawabata Yasunari (em Portugal Chá e Amor, editado pela Nova Vega), a colecção tem mais de trinta volumes em italiano, com introduções sobre os autores escritas por especialistas.

Bienati acabou por tornar-se co-editora da colecção. “Embora no início fosse destinada principalmente a um público académico, a colecção atraiu o interesse do público em geral e os volumes foram reeditados várias vezes” (Bienati, 2009, p. 12).

Durante a sua carreira, Boscaro foi distinguida em diversas ocasiões. Em 1990, recebeu o Prémio Okano, pela promoção da cultura japonesa em Itália. Em 1999, foi galardoada pela tradução de A History of Japanese Literature, de Shūichi Katō. No mesmo ano, recebia também do governo japonês o prémio da Ordem do Sol Nascente.

“Quem conheceu a Adriana vai guardar na memória uma pessoa dinâmica, cheia de energia e iniciativa, movida por um amor inesgotável pelo Japão” (Gatten & Schulman, 2022), como afirmou um colega, Giorgio Amitrano, à Associação de Estudos Asiáticos aquando da morte de Boscaro, aos 87 anos, em 2022.

Tiziana Lippiello, reitora da Ca’Foscari, considerou Boscaro “um exemplo para gerações de alunas e alunos, investigadoras e investigadores”. “Como aluna, recordo com carinho e gratidão a vastidão de interesses e a curiosidade incansável que alimentavam as suas inesquecíveis aulas sobre as relações entre a Europa e a Ásia” (site da Universidade Ca’Foscari de Veneza).

Na introdução a The Grand Old Man and The Great Tradition (2009), um conjunto de ensaios de Tanazaki em homenagem a Adriana Boscaro, o historiador e tradutor de japonês Edward Seidensticker (1921-2007) descreve-a como “inteligente” e “imaginativa”, com “uma presença enriquecedora” (Seidensticker, 2009, p. 23). “Ela é genuinamente cosmopolita. Académicos do continente europeu e académicos de países onde se fala inglês tendem a não prestar atenção a outras facções. Isso não é verdade em relação a Boscaro. Sempre mostrou interesse no que estávamos a fazer” (Seidensticker, 2009, p. 23).

Já a sobrinha, Antonella Peloso, recorda-a como uma pessoa “ocupada e dedicada ao trabalho”, mas também “generosa, feliz e amigável”. A sua mãe, irmã de Boscaro, licenciou-se em línguas clássicas, casou-se e seguiu uma vida mais “tradicional” (comunicação pessoal, 11 de Maio de 2023).

A tia acabou por ser a sua inspiração, até porque Peloso escolheu estudar árabe. “Talvez tenha herdado isso no meu DNA”, pondera. “É a pessoa (da família) de quem me sinto mais próxima, na maneira de viajar, nas ideias, na curiosidade por outras culturas...” (comunicação pessoal, 11 de Maio de 2023).

Apesar de todas as viagens por vários continentes, Adriana Boscaro considerava o regresso a Veneza “o momento mais bonito e comovente”, como escreveu na autobiografia. Como “verdadeira veneziana”, mais do que cidadã do mundo, não conseguia estar longe por muito tempo e não ter como “canção de embalar” o bater da água no canal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bienati, L., & Bonaventura, R. (2009). The grand old man and the great tradition: Essays on Tanizaki Jun’ichiro in honor of Adriana Boscaro. University of Michigan Press, Center for Japanese Studies. https://www.jstor.org/stable/10.3998/mpub.9340226.5Links ]

Boscaro, A. (n.d.). Curriculum Vitae di Adriana Boscaro (Curriculum vitae of Adriana Boscaro). https://unive.academia.edu/AdrianaBoscaro/CurriculumVitaeLinks ]

Boscaro, A., & Chambers, A. H. (1999). A Tanizaki feast: The international symposium in Venice. University of Michigan, Center for Japanese Studies. https://doi.org/10.3998/mpub.18566Links ]

Boscaro, A., & Novieli, M. R. (2000). Tanizaki in Western languages: A bibliography of translations and studies. University of Michigan Press, Center for Japanese Studies. [ Links ]

Gatten, A., & Shulman, F. J. (2022). Adriana Boscaro (1935-2022). Association for Asian Studies. https://www.asianstudies.org/adriana-boscaro-1935-2022/Links ]

Seidensticker, E. (2009). The modern Murasaki in The Grand Old Man and the Great Tradition: Essays on Tanizaki Jun’ichiro in honor of Adriana Boscaro. University of Michigan Press, Center for Japanese Studies. https://www.jstor.org/stable/10.3998/mpub.9340226.5Links ]

Università Ca’Foscari Venezia. (2022). È mancata la professora Adriana Boscaro (Professor Adriana Boscaro passed away). https://www.unive.it/pag/14024/?tx_news_pi1(news)=13011&cHash=387abb01b0731f00a606c21cb7a72233Links ]

NOTA

1 Jornalista e estudante do Mestrado de Estudos sobre as Mulheres (NOVA FCSH).

Aceito: 04 de Junho de 2023

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