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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.49 Lisboa jun. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.34619/yzfc-pfll 

Recensões

Barros, J. L. (2022). Veva. A aristocrata intelectual e excêntrica que desafiou Salazar e os costumes da sua época. Oficina do Livro (262 pp.).

Natividade Monteiroi  ii  iii  1
http://orcid.org/0000-0002-7944-8363

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH), História, Território e Comunidades (HTC-CFE), 1069-061 Lisboa, Portugal.

iiUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH), Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal.

iiiUniversidade Aberta, Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais (CEMRI), 1269-001 Lisboa, Portugal. E-mail: nati.monteiro@netcabo.pt


Este livro de Joana Leitão de Barros, embora apresentado como um romance histórico, é, sem qualquer dúvida, uma excelente biografia de Genoveva de Lima Mayer Ulrich (1886-1963), uma mulher invulgar que se distinguiu pela ousadia, a extravagância e a teatralidade que imprimiu à sua vida pública, mas também pelas causas e valores que defendeu.

A escrita biográfica é um campo de tensões entre a literatura e o discurso historiográfico. Situada entre a narrativa científica e ficcional, a sua construção textual consolida-se a partir da pesquisa e análise documental até chegar à elaboração de uma história vivida, recorrendo à ficção apenas quando não encontra respostas nas lacunas documentais (Avelar, 2010). A biografia permite destacar e reconstituir o percurso e os papéis desempenhados por uma personagem, em articulação com os acontecimentos individuais e colectivos, ocorridos nos múltiplos espaços e tempos e nas relações da convivência humana. A biografia de Veva de Lima tem interesse, não tanto por representar um padrão de muitas outras mulheres, mas sobretudo pela singularidade e excepcionalidade de uma identidade que sobressai entre as demais na sociedade do seu tempo.

Joana Leitão de Barros não é uma estreante no género biográfico. Em 2019, publicou com Ana Mantero Leitão de Barros: A biografia roubada, obra distinguida com o Prémio Sophia da Academia Portuguesa de Cinema. O estudo do vasto espólio do avô deu-lhe a conhecer protagonistas do mundo das artes, da cultura e da política, sendo que Veva de Lima foi o nome que se impôs, pela força da sua personalidade e pela forma como ousou desafiar preconceitos de classe e de género na sociedade da época. A autora procedeu a uma rigorosa investigação do espólio documental da Fundação Maria Ulrich2, dos periódicos da época e de bibliografia específica para reconstituir o tempo e a vida desta personagem multifacetada, que viveu apaixonadamente, rodeada de glamour, fortuna e glória, mas também marcada pela tragédia do suicídio do pai e do filho, e pela insatisfação e a tortura das enfermidades da alma. A autora é minuciosa na contextualização dos acontecimentos e na descrição dos ambientes e revela grande sensibilidade na abordagem da biografada e da imensa teia das suas relações e sociabilidades.

Veva de Lima era uma “mulher excêntrica”, que passeava o seu leopardo pelas ruas de Lisboa, organizava “festas exuberantes” no seu palacete, viajava sozinha e perseguia “caça grossa” na selva africana. Dotada de um espírito livre e aberto aos novos movimentos artísticos e literários e às novas correntes de pensamento social e político, conviveu com a alta aristocracia europeia, inclusive com a família real britânica, e cultivou amizades nos círculos intelectuais nacionais e estrangeiros. Em entrevista a João Ameal (1902-1982), confessou interesse e curiosidade pelo movimento modernista e pelo bolchevismo, estando a ponderar entrar numa “associação revolucionária”. A educação que recebeu do pai, os anos que viveu em Biarritz e em Londres, bem como as viagens pelo mundo, moldaram o seu espírito independente, irrequieto e em permanente ansiedade pelo novo e o diferente.

A autora mostra como as tertúlias literárias e o convívio de Veva com escritores, poetas e artistas, inspiraram louvores, entusiasmos e amores platónicos, como o que a unia a Afonso Lopes Vieira (1878-1946), mas também rivalidades e maledicências. Como escritora, esperava a consagração literária com os artigos publicados sobre questões sociais e políticas e com as peças dramáticas que fez representar, arrastando para os palcos da capital a fina-flor da aristocracia. Contudo, a sua escrita era tida “como um capricho da bonita mulher do professor Ruy Ulrich, figura respeitável da banca e da sociedade, monárquico conservador e fundador do Integralismo lusitano” (p. 14). Embora prezasse e promovesse a carreira do marido, por vezes, na ânsia de construir um caminho próprio, Veva contrariava o que ele defendia, o que o deixava desarmado pela extravagância das opiniões e pelo prazer do confronto. Apesar de Ruy lhe recomendar contenção e bom senso, insistiu em publicar as crónicas de viagem de Aquém e Além-Mar, o que espoletou críticas, ódios e ameaças. Veva rebelava-se contra a ideia de vedar às mulheres o direito de pensar e a liberdade de agir e decidir.

No entanto, o Diário Nacional considerou-a “verdadeira autora dramática” e Carlota Serpa Pinto (1872-1948) elogiou o seu desempenho na pele da protagonista da peça A Borboleta, com palavras que ilustram bem como a autora se retratou na personagem principal: “uma mulher moderna, arrebatada e cheia de ideais, educada e verdadeiramente livre de preconceitos, que conhece a literatura actual, conduz automóveis” e exerce o mister de enfermeira (Lima, 1917). Veva de Lima ambicionava o reconhecimento da sua obra literária pela crítica séria e descomprometida, não se satisfazendo com os elogios do seu público. As dúvidas sobre a sinceridade dos aduladores faziam-na descrer do seu talento, e o medo de decepcionar os mais próximos afrouxava o seu lado combativo sem o vencer.

Eternamente insatisfeita, continuará a escrever artigos, ensaios e novelas, construindo uma identidade própria e um caminho de liberdade quase sem limites. Retira-se para lugares românticos, bucólicos e inspiradores, como o Hotel do Buçaco, o moinho de Monsanto, “o seu lugar de prazer e desejo” a que dá o nome Hedoné, a deusa da mitologia grega, filha de Eros e Psique, a villa Roma, em Sintra, ou o Hotel Reid’s, na Madeira. Ela, que em criança andara ao colo de Eça de Queiroz e de outros “Vencidos da Vida”, amigos e companheiros do seu pai, Carlos de Lima Mayer (1846-1910), não perdoou a Teresa Leitão de Barros por não a ter incluído na obra Escritoras Portuguesas.

Veva foi também uma mulher de causas. Embora não se identificasse com a bondade piedosa da condessa de Ficalho, nem com as feministas ou as republicanas da Cruzada das Mulheres Portuguesas, colaborou com a Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra, associação monárquica e católica, criada em 1916 para apoiar os combatentes e as famílias desfavorecidas. A Veva de Lima se devem a iniciativa da organização das Festas da Flor em Lisboa para a angariação de donativos, que a Ilustração Portuguesa bem documentou, a defesa pública da liberdade de iniciativa privada e o direito que assistia às obras de assistência de gerirem os dinheiros a elas confiados, em prol dos soldados em campanha (Lima, 1917, p. 1).

Em 1918, obteve de Sidónio Pais a legislação que criou o Instituto Nuno Álvares, destinado ao tratamento dos militares com traumas de guerra. Os fundos angariados serviriam para organizar o hospital e ao Estado caberia a sua manutenção. Ela, que sempre sonhou com obra sua, teria um lugar na administração do hospício dedicado à saúde mental, mas o assassinato do Presidente da República pôs fim a uma ideia precursora da modernidade, visto que a doença do stress de guerra só seria reconhecida muitas décadas depois. Veva de Lima sempre participou nas campanhas de solidariedade em prol dos desfavorecidos, dos tuberculosos e das vítimas de catástrofes.

Como mulher do mundo, via e pensava muito além do acanhado meio social português e criticava a maioria das senhoras da alta sociedade por desprezarem as sufragistas e se contentarem com o voto feminino restrito, concedido por Salazar. Não se revia nas lutas das feministas, mas dizia que a igualdade não era uma utopia.

Joana Leitão de Barros mostra como Veva de Lima tentou conquistar Salazar para as reuniões em sua casa, a pretexto de conveniências políticas, e como o enfrentou quando o marido deixou o cargo de embaixador em Londres. Não lhe perdoou a sovinice de não os ressarcir dos gastos feitos com a decoração da embaixada, obrigando Ruy a vender a sua preciosa biblioteca para compensar os prejuízos.

Contudo, o ditador não foi imune ao charme de Veva, que se confessava “sua inimiga perpetuamente vencida” (p. 194). Atendeu o seu pedido para libertar o amigo José Luís de Saldanha Oliveira e Sousa, preso pela PIDE por ter afrontado o chefe de Estado publicamente nos jornais, assinando como «Barão de São Maduro». Salazar também terá ficado embaraçado quando, na II Guerra Mundial, ela se demarcou da neutralidade do regime, ao repudiar o fascismo e o nazismo e ao solidarizar-se com a Inglaterra, em defesa da vida e dignidade humanas. Veva de Lima, sempre surpreendente e desconcertante. Uma biografia a não perder!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A Venda da Flor (The flower sale). (1918, abril 29). Ilustração Portuguesa, 323-327. [ Links ]

Avelar, A. S. (2010). A biografia como escrita da História: Possibilidades, limites e tensões (Biography as history writing: Possibilities, limits and tensions). Dimensões - Revista de História da Ufes, 24, 157-172. [ Links ]

Barros, J. L., & Mantero, A. (2019). Leitão de Barros: A biografia roubada (Leitão de Barros: The stolen biography). Bizâncio. [ Links ]

Barros, T. L. (1924). Escritoras portuguesas: Génio feminino revelado na literatura portuguesa (Portuguese women writers: Female genius revealed in Portuguese literature). Tip. A.O. Artur. [ Links ]

Lima, V. (1917, junho 4). As obras de assistência privada em Portugal (The private assistance works in Portugal). Diário Nacional, 1. [ Links ]

Lima, V. (1918). A borboleta (The butterfly). Imprensa Libânio da Silva. [ Links ]

Lima, V. (1928). D’aquém & D’além-Mar: Crónicas de viagem (1923-1924) (From here and beyond the sea: Travel chronicles (1923-1924)). Imprensa Líbano da Silva. [ Links ]

Pinto, C. S. (1918, junho 5). Cartas à prima (Letters to the cousin). Diário Nacional, 1. [ Links ]

NOTAS

1 Investigadora.

2 Maria de Lima Mayer Ulrich (1908-1988), pedagoga e fundadora da Escola das Educadoras de Infância.

Aceito: 10 de Março de 2023

Natividade Monteiro. CIÊNCIAVITAE: https://www.cienciavitae.pt/portal/3513-2215-F504

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