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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.50 Lisboa dic. 2023  Epub 21-Feb-2024

https://doi.org/10.34619/e5ez-ptkv 

Dossiê - O género: percursos sociais e académicos

Faces de Eva: um percurso singular nos estudos sobre a mulher em Portugal

Faces de Eva: a special case in the development of women’s studies in Portugal

Regina Tavares da Silvai 
http://orcid.org/0009-0005-2701-0086

i Investigadora independente. Email: reginatavaresdasilva@gmail.com


RESUMO

Resumo: Aborda-se, em termos coloquiais1, o percurso dos Estudos sobre as Mulheres em Portugal e a sua progressiva afirmação e legitimação. Numa linha de continuidade são recuperadas algumas obras significativas desde o século XVI até ao nosso tempo, em que o tema “mulher” é abordado sob os mais diversos ângulos: desde o tom laudatório até às obras de tom crítico e didáctico, depois a defesa da emancipação e dos direitos das mulheres e, mais recentemente, a abordagem analítica e sistemática do tema até à sua progressiva legitimação a nível académico, quer como área específica de estudo, quer como dimensão transversal a todas as áreas. Analisa-se o contexto global em que Faces de Eva constitui um caso singular pelo enfoque global e multiplicidade de iniciativas prosseguidas.

Palavras-chave: estudos sobre as mulheres; percurso histórico; legitimação académica; Faces de Eva; Portugal

ABSTRACT

Abstract: Description in colloquial terms, of the development of Women’s Studies in Portugal and of their progressive acceptance and legitimation. Some significant writings are recalled in which the subject “women” is approached under different perspectives, since the XVI century until nowadays. Laudatory writings, but also critical and didactic works, then writings on women’s rights and emancipation, and in recent years a more analytical and systematic approach leading to a progressive legitimation at the academic level, both as a specific area of research and as a mainstreaming approach in all areas of study. A global context in which Faces de Eva is a special case, both for the global approach adopted and for the many initiatives undertaken.

Keywords: women’s Studies; historical development; academic legitimacy; Faces de Eva; Portugal

Em primeiro lugar, quero agradecer o convite, que muito me honra, para dizer algumas palavras neste momento de celebração dos 25 anos de Faces de Eva. Palavras sobre o seu percurso e contributo para os Estudos sobre as Mulheres, denominação hoje alargada a Estudos de Género e Estudos Feministas.

Permitam-me, no entanto, que comece por dirigir uma saudação particular à pessoa que esteve na origem desta iniciativa e que a ela deu e continua a dar inspiração e força - a sua fundadora, Dr.ª Zília Osório de Castro, também primeira Directora da Revista Faces de Eva. E igualmente à sua continuadora nestas funções, Dr.ª Isabel Henriques de Jesus, que segue na linha traçada, com energia e novas e diversificadas iniciativas. E ainda a toda a equipa, porque é de um trabalho de equipa que se trata, com todo o dinamismo e vontade que, mesmo quem é um pouco outsider, testemunha. A todas e a todos os meus parabéns por este aniversário e por todo o património e riqueza que ele comporta.

Foi-me sugerido que fizesse uma reflexão sobre o projecto Faces de Eva, as suas propostas e evolução, e aquilo que ele significa no percurso dos Estudos sobre as Mulheres em Portugal, os seus primeiros passos e os caminhos percorridos.

Caminhos tanto mais difíceis quanto se trata de um tema que enfrentou, e enfrenta ainda, resistências significativas em geral, e na vida académica em particular, que só lentamente vai adquirindo legitimidade científica e o consequente reconhecimento. Legitimidade científica que, no entanto, é hoje uma certeza no projecto Faces de Eva. Um projecto que foi progressivamente conquistando novos espaços e alimentando novas ambições, de forma coerente e integrada. Pessoalmente, considero que este é um processo singular a nível nacional no contexto dos Estudos sobre a Mulher.

Sempre denominado Faces de Eva, uma designação simbólica da realidade múltipla e diversificada que o próprio nome contém, foi primeiro um projecto de investigação, sediado no Instituto Pluridisciplinar de História das Ideias, depois uma equipa alargada de investigação, no âmbito do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.

Neste percurso, em que sempre adoptou uma perspectiva pioneira de interdisciplinaridade, promoveu e promove inúmeras acções de investigação, formação e divulgação, conferências, seminários, colóquios, jornadas, ciclos de estudos, cursos livres, tertúlias literárias, etc., etc. Em termos institucionais, organizou primeiro um curso de pós-graduação, depois o Mestrado em Estudos sobre as Mulheres - As Mulheres na Sociedade e na Cultura, e posteriormente o grau de Doutoramento, num consórcio com outras instituições da UL e da NOVA.

Mas, como referi, além das actividades académicas institucionais, desenvolveu e desenvolve muitas outras acções, desde cursos livres, ciclos temáticos a actividades pontuais. Entre elas, as Escolas de Verão sobre questões pertinentes para uma melhor compreensão da situação das mulheres, quer na perspectiva histórica - Um Século de Feminismos 1900-2000 -, quer na perspectiva da actualidade - Perfis e Vozes de Mulheres na Sociedade Contemporânea. E tantos outros temas!

Foram também realizados encontros e ciclos de estudos sobre mulheres e relações de género, designadamente sob o mote inspirador “Falar de Mulheres”, abordando, por exemplo, a Declaração e Plataforma de Acção de Pequim e as suas áreas críticas, bem como os compromissos que estes documentos comportam na vida política e na organização social. Do mesmo modo, não foram esquecidos temas decorrentes da Agenda 2030 que é hoje um farol político para a governação a nível global.

O mote “Falar de Mulheres” também tem expressão em publicações como Da igualdade à paridade (2003), que reúne as comunicações do I Curso Livre de Estudos sobre a Mulher, ou Falar de Mulheres: Dez Anos Depois (Jesus et al., 2016), que relembra e comemora o centenário da criação do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e o seu contributo na luta das mulheres pelos seus direitos. E tantos outros cursos e publicações: História e Historiografia (2008), Género e Memória (2004) e, mais recentemente, Falar de Mulheres: Percursos e Desafios Latino-Americanos (2020), etc. etc. Todos eles trouxeram até nós figuras emblemáticas de diferentes épocas - desde Leonor da Fonseca Pimental, a Portuguesa de Nápoles e revolucionária do século XVIII, a Florbela Espanca, Ana de Castro Osório, Maria Barroso, Maria Archer, Alice Sampaio ou a pensadora de época recente María Zambrano, revisitada nos seus escritos. E tantas outras...

O grande objectivo de divulgação da situação e história das mulheres foi ainda prosseguido através da dinamização de inúmeras publicações, de que aponto o monumental trabalho que conduziu aos Dicionários: primeiro o Dicionário no Feminino (Séculos XIX-XX) (2005) e depois o Feminæ: Dicionário Contemporâneo (2013), os quais constituem uma fonte inestimável de informação sobre mulheres e organizações, as mais diversas, que, mesmo tendo tido uma presença visível na sociedade em que viveram, foram depois apagadas sob um manto de invisibilidade e esquecimento. No dizer dos autores do primeiro volume, havia que resgatar do “esquecimento em que caíram nomes que, em Portugal, marcaram no feminino as artes, as ciências, as letras, enfim a cultura, e que a pouco e pouco fizeram emergir as mulheres na vida da sociedade para aí ocuparem os lugares a que os seus talentos davam jus” (Castro & Esteves, 2005, p. 7). O segundo volume, Feminæ: Dicionário Contemporâneo, continua e enriquece este percurso com novos nomes, que “concorreram à sua maneira, para a afirmação da cidadania feminina” (Esteves & Castro, 2013, p. 11).

Por outro lado, além dos projectos próprios de Faces de Eva, de seus colaboradores e colaboradoras, há que referir que muitos projectos têm sido impulsionados em colaboração com outras entidades, de que é exemplo a acção desenvolvida no âmbito das celebrações do centenário da República, designadamente a Exposição intitulada Percursos, Conquistas e Derrotas das Mulheres na I República (CML e FE) (2010), que foi acompanhada por um belíssimo catálogo. Relevo ainda para a publicação, com título semelhante, Mulheres e I República: Percursos, Conquistas e Derrotas, de 2010, que dá continuidade ao tema com textos de investigação que abarcam vertentes políticas, sociais, artísticas e outras.

Mas este é apenas um exemplo de projectos comuns que têm sido prosseguidos em colaboração com outras instituições nacionais e de outros países, universidades ou outras entidades sobre temas que abordam aspectos tão diversos como Mulheres Escritoras no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo ou Liderança no Feminino na área da saúde ou outros. Igualmente significativos foram as Conversas à Volta, os Roteiros Feministas, etc.

Seria longa a enumeração de todas as acções empreendidas, pelo que obviamente não a farei. Permitam-me apenas uma referência especial à revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, de publicação semestral ininterrupta desde 1999, até porque é talvez a Face mais visível das Faces. É uma Face particularmente bonita de uma realidade múltipla e diversificada que o próprio nome contém. Por outro lado, uma realidade viva, não apenas no seu já longo percurso, mas no seu conteúdo, com vertentes que se completam: além da homenagem prestada a mulheres portuguesas e estrangeiras alternadamente, destaca-se uma vertente de natureza académico-científica que divulga estudos, ensaios ou resultados de pesquisas no âmbito dos estudos sobre as mulheres, e outra de carácter mais geral que dá a conhecer mulheres, suas vidas e percursos, bem como organizações e projectos relevantes no que à situação das mulheres diz respeito. A apresentação do primeiro número da revista, pela pena da sua fundadora, identifica claramente o projecto: “procura mostrar que ser mulher significa viver como tal, na plenitude da sua humanidade, ou seja, na plenitude do exercício dos direitos que lhe pertencem e ocupando os lugares compatíveis com as suas capacidades” (Castro, 1999, p. 7). No seu conjunto é uma revista de notável fôlego, pela abrangência de temas, variedade de secções e artigos. “Um projecto extremamente original”, como o classifica a Profª. Maria Luísa Ribeiro Ferreira em artigo na própria revista (n.º 30). Um projecto, ainda segundo a mesma fonte, “cujo objectivo é divulgar a condição, o modo de vida, a história e de um modo geral, o pensamento das mulheres de ontem e de hoje, com um particular relevo dado às correntes feministas...” (M. L. R. Ferreira, 2013, p. 12). Por outro lado, “O nível de rigor e de cientificidade demonstrado (…) levaram a que esta revista se constituísse como uma referência incontornável para todas e todos que se dedicam à condição das mulheres, aos seus problemas e interesses, às suas reivindicações e aspirações” (M. L. R. Ferreira, 2013, p. 20).

Através destas e de tantas outras iniciativas, o projecto Faces de Eva deu visibilidade e conferiu legitimidade aos Estudos sobre as Mulheres, área de estudo e de investigação que vai avançando, um pouco por toda a parte, em escolas e centros de investigação, em associações e grupos especializados, com publicações, estudos, artigos, teses, conferências, seminários, etc., sobre a realidade da situação das mulheres e aspectos conexos da condição feminina - e também na formulação mais recente de questões de género.

Esta área de estudos só nas últimas quatro décadas adquiriu relevância em Portugal, ao contrário do que se verifica noutros países, particularmente anglo-saxónicos, onde se desenvolve investigação sobretudo desde os anos 1960, década designada como dos “novos feminismos”.

Naturalmente que estudos e escritos sobre as mulheres, a sua situação e os seus direitos têm existência muito anterior entre nós. E acho que vale a pena recordá-lo, até porque muitos dos conceitos e preconceitos sobre as mulheres, expressos e transmitidos ao longo dos tempos e das gerações, têm ainda ecos nos dias de hoje.

Assim, vale a pena lembrar que um dos primeiros livros impressos em Portugal, da autoria de Ruy Gonçalves, lente da Universidade de Coimbra, abordou exactamente a temática dos “direitos” das mulheres. Intitula-se Dos Priuilegios & Praerogatiuas que o Genero Feminino tem por Direito Comum & Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino (Gonçalves, 1557). Editado em 1557 e reeditado em 1785, em homenagem à Rainha D. Maria I, é considerado o primeiro livro “feminista” português, no sentido de nele se assumir a defesa das virtudes e dos direitos das mulheres, num conjunto de 106 prerrogativas, entre direitos e medidas protectoras de vária ordem relativas a: a dotes, heranças, isenção de prisão por dívida ou crime no caso de mulheres honestas, direito de falarem em primeiro lugar nas assembleias, etc. E depois ao longo dos séculos, há uma lista considerável de obras diversas, profundamente laudatórias umas, profundamente críticas e até maldizentes outras, aliás, na linha da visão ambivalente que tem caracterizado o discurso sobre as mulheres.

Em 1790, é publicado um Tractado sobre a Igualdade dos Sexos ou Elogio do Merecimento das Mulheres Offerecido, e Dedicado as Senhoras Illustres de Portugal, por uum Amigo da Razão. É mais uma vez a veia laudatória, porque não se trata exactamente da igualdade dos sexos, mas antes de um elogio às mulheres e às suas muitas capacidades. Segundo o autor: “As Mulheres são iguaes aos Homens na capacidade da alma, facilidade e faculdade de adquirirem conhecimentos, e apllicallos a hum fim racionavel, sabio, e justo, segundo os seus projectos, e intentos” (Tractado, 1790, p. 17). Esta veia laudatória ocorre em muitos dos escritos sobre as mulheres, atingindo por vezes níveis extremos de pensamento e de linguagem.

Vejamos só 2 ou 3 exemplos, de que os próprios títulos são elucidativos:

  • - Portugal ilustrado pelo sexo feminino, notícia historica de muytas heroynas portuguezas, que florescerão em virtudes, letras e armas (1734), de Diogo Manoel Ayres de Azevedo;

  • - Teatro heroino, abecedario historico, e catalogo das mulheres illustres em armas, letras, acçoens heroicas, e artes liberaes (1736, Tomo I; 1740, Tomo II), de Damião de Froes Perym.

De data anterior, e abordando apenas as virtudes, é o Tratado en loor de las mugeres, y de la castidade, onestidad, constancia, silencio, y justicia, Com otras muchas particularidades, y varias historias (1592), de Christoval Azevedo. Redigida em língua castelhana, procedimento usual na época, a obra assume um tom encomiástico: “Que seria el mundo sin mujeres? Sino vna confusion, y continua guerra: vn Cielo sin sol; sin Luna, y sin estrellas, que nos alumbrassen?” (Acosta, 1592, p. 30).

Mas não são só louvores que se ouvem ao longo dos tempos. São também censuras, muitas censuras... Depois das virtudes e feitos, vêm as maldades e defeitos. Apenas dois exemplos: Malícia das Mulheres é o título de uma pequena publicação da autoria de Balthasar Dias, em que a partir de uma história de comadres se tecem as maiores críticas às mulheres. Este folheto terá circulado desde o século XVII até ao século XX, com sucessivas edições e aditamentos, quer no título, quer no texto. Na capa de uma das edições mais recentes, não datada, as comadres são comparadas à “raposa surrateira e astuciosa, à víbora que morde, envenena e mata ou até à aranha que arma redes e laços onde os incautos apanha...” (Verdadeira malícia e maldade das Mulheres, n.d.). No texto intitulado Espelho Critico no qual se vem alguns defeitos das Mulheres fabricado na Loja da Verdade pelo Irmão Amador do Dezengano, que póde servir de estimulo para a reforma dos mesmos defeitos (1761), os defeitos apontados são tantos e tais, que as mulheres são classificadas como “naufrágio do homem, tempestade da caza, captiveiro da vida, animal malicioso”, mas “mal necessário” (Dezengano, 1761, p. 4).

Uma visão das mulheres e das suas fraquezas a que também alguns dos nossos eminentes pensadores e escritores de séculos mais recentes não escaparam. Só uma pequena frase sarcástica, já no século XIX. De quem? De Eça de Queiroz que, embora crítico da educação tradicional das raparigas e da futilidade das suas vidas, não deixa de pôr limites às suas capacidades. Em Uma Campanha Alegre das Farpas (II volume, 1891), escreve: “Entre nós nenhuma senhora se dá às sérias leituras da ciência, não da profunda ciência (o seu cérebro não a suportaria) mas dos lados pitorescos da ciência, curiosidades da botânica, história natural dos animais, maravilhas dos mares e dos céus” (Queiroz, 1927, p. 148).

Para outros, pelo contrário, o grande mal das mulheres é quererem ser doutoras. Por exemplo, segundo Oliveira Martins, em texto incluído em Dispersos: Artigos Políticos, Económicos, Filosóficos, Históricos e Críticos (1924): “Elas podem ser ‘caixeiras’, ‘compositoras’ ou ‘boticárias’, mas ‘doutoras’…” E pior ainda: “Não é só a doutorice, porém, que seduz hoje em dia… o mulherio…. Além da doutorice é a politiquice” (Martins, 1924, Vol. I, p. 159). E o autor acha ainda a participação política da mulher como o cúmulo do absurdo, merecedor de “surriada estrondosa” (Martins, 1924, Vol. II, p. 162).

A concluir este breve olhar sobre o passado, que me parece relevante para o presente, diria que há, ao longo da história, uma ambiguidade relativamente ao papel e aos direitos das Mulheres, que vem de tempos imemoriais, que em alguma medida ainda permanece e que é preciso continuar a desmontar. Uma tarefa que, sobretudo com as feministas da I República, teve um progresso assinalável com a publicação de obras mais “sérias” e objetivas defendendo os direitos das mulheres, sobretudo os da educação e do voto, bem como a independência social e económica e a denúncia de uma situação geral de menoridade e opressão. Como dizia de forma cristalina uma dessas feministas, até das menos conhecidas, Elisa Curado: “A Mulher precisa de saber o que foi, o que é, e o que pode ser” (Lopes, 2023, p. 65). Ou como diz de forma igualmente impressiva: é preciso que, pela educação, a mulher se “transforme, com relação ao homem, primeiro numa rebelde, depois numa emancipada, e por fim, numa igual” (Lopes, 2023, p. 66).

Foi notável a acção das feministas da I República, embora exercida em círculos limitados e elitistas e num curto período de tempo. A ele se seguiu um longo silêncio, em que apenas algumas vozes se fizeram ouvir, designadamente as de Maria Lamas e Elina de Guimarães...

Só nos nossos dias é que a questão da situação das mulheres/condição feminina ou, em fórmula mais recente, a chamada igualdade de género, ou ainda a questão do lugar das mulheres na sociedade e na história, se tornou tema de relevo. Com efeito, a partir do 25 de Abril, o tema da Mulher e dos seus direitos assume maior relevância e visibilidade, através de artigos de jornais e revistas, programas de rádio e televisão...

Note-se, contudo, que um pouco antes, no final dos anos 1960, e depois de décadas de silêncio, houve um tímido renascer do tema Mulher, designadamente em meios académicos, ao nível quer das reivindicações, quer da reflexão sobre a situação. Recordo um Ciclo de Conferências promovido pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa sob o tema A Mulher na Sociedade Contemporânea, cujas actas foram publicadas em 1969 e em que participaram nomes de relevo como Elina Guimarães, Manuela Palma Carlos, Sophia de Mello Breyner, João dos Santos, Rui Grácio, Isabel da Nóbrega, Urbano Tavares Rodrigues, entre outros. Destaque ainda para publicações em círculos intelectuais, como o volume Sobre a Condição da Mulher Portuguesa, editado em 1968, em que alguns dos nomes se repetem, como os de Urbano Tavares Rodrigues ou Isabel da Nóbrega, e outros se estreiam como Augusto Abelaira, Agustina Bessa-Luís ou Isabel Barreno. De modo geral, estes autores evocavam questões jurídicas ou relativas ao estatuto, educação e trabalho das mulheres, sexualidade, ou ainda estereótipos e condicionalismos culturais e sociais que moldavam o papel da mulher na sociedade.

Também ao nível das camadas estudantis surgiram artigos de questionamento sobre a situação da mulher. Recordo particularmente um artigo publicado no jornal Via Latina, órgão da Associação Académica de Coimbra, em 1961, que deu brado na época, intitulado “Carta a uma jovem portuguesa” (1961). O autor, um jovem universitário, que assinava apenas A., constatava: “A minha realidade é igual à tua. (…) A minha liberdade não é igual à tua” (p. 1), porque “Há um determinismo social que te oprime e te define” e ao qual é preciso resistir. Só assim “Serás autónoma e livre. Mas para isso é preciso que saibas que o não és, porque o não és, e que queiras, decidida e firmemente, sê-lo” (p. 4). Lembro-me bem da polémica, quase escândalo, que este texto levantou no meio universitário - o questionamento, as concordâncias e discordâncias acaloradas, a mostrar como a questão da condição feminina, do papel social e dos direitos das mulheres começavam a emergir.

Eram questões que estavam na ordem do dia do debate e da reflexão em muitos países e que entre nós se foram progressivamente afirmando. Nesse contexto, a publicação do livro Novas Cartas Portuguesas, das “Três Marias”, em 1972, teve inegável ressonância na sociedade portuguesa e internacional com todo o processo que suscitou.

No entanto, foi só no pós-25 de Abril que se tornou visível o interesse pelas questões relativas às mulheres e à sua situação, com artigos, pronunciamentos, iniciativas, organizações e grupos que surgiram e se afirmaram. A este propósito é relevante notar a coincidência da data da nossa revolução democrática, e as conquistas que ela trouxe às mulheres, com o evoluir das mesmas questões a nível político global.

Recordo que 1975 foi declarado pelas Nações Unidas o Ano Internacional da Mulher. A I Conferência sobre as Mulheres teve lugar na Cidade do México, um Plano de Acção Mundial foi aprovado, foi consagrada a década de 76 a 85 como a Década da Mulher e em 1979 foi adoptada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, ainda hoje o documento normativo fundamental nesta área. Foi um momento de grande entusiasmo, mas que não foi apenas de celebração: teve uma enorme visibilidade e marcou o início da assunção destas questões como questões políticas globais e não meras questões sociais ou arroubos feministas.

E o que fez ocorrer tal mudança? Lembremo-nos de que a década de 1970 foi a segunda Década para o Desenvolvimento das Nações Unidas. Na primeira Década (anos 1960) dera-se a entrada de um número significativo de países em desenvolvimento na Organização e questões relacionadas com desenvolvimento, recursos, pobreza... assumiram importância particular, sendo também motivo para uma tomada de consciência da situação de desvantagem das mulheres, cujo contributo, sendo efectivo, não era valorizado. Neste contexto, a 2.ª Década para o Desenvolvimento assumiu um objectivo específico: “a plena integração das Mulheres no esforço global de desenvolvimento deve ser encorajada” (Second United Nations Development Decade - UN General Assembly Resolution - A/RES/2626(XXV), 1971-1980, para. 16 (h)). O ano de 1975 foi assim um momento-chave para que a comunidade internacional olhasse para as questões relativas às mulheres, para o seu papel e os seus direitos, em termos nacionais e internacionais. E foi ainda nesse ano que se assistiu pela primeira vez à legitimação da Igualdade como questão política a nível global, um momento de grandes proclamações e de grande entusiasmo que vivi na Conferência do México.

E, como referi, foi um momento que coincidiu - coincidência feliz - com a mudança política e social em Portugal - Revolução de Abril de 74/Verão Quente de 75 -, uma época de agitação e perturbação, de ruptura com o passado, mas também de novas perspectivas, idealismos e até utopias.

Em termos de investigação sobre a situação das mulheres, surgem nesta altura, promovidos pela Comissão da Condição Feminina, os primeiros estudos - e respectivas publicações - sobre a situação das mulheres do ponto de vista de análise estatística, incluindo designadamente aspectos ligados a demografia, educação, trabalho, desemprego, discriminações salariais, participação na vida sindical, cívica e política, etc. (Romão, 1976a, 1976b, 1976c, 1977a, 1977b, 1977c). Levantamento este que vai de par com uma análise do ponto de vista da imagem das mulheres transmitida na publicidade (Silva et al., 1979, p. 10), nos manuais escolares e na literatura infantil (Leal, 1979, p. 11, 1982, p. 16). Ambos os estudos eram necessários para a definição de políticas desenhadas a partir de um efectivo conhecimento da realidade.

Estávamos na década de 1970, mas só na década seguinte o tema dos Estudos sobre as Mulheres começa a ser assumido entre nós enquanto área e óptica de investigação e de estudo, com categoria e formulação autónomas.

Permitam-me que evoque muito brevemente um pouco desta pré-história que conduziu à progressiva abertura aos Estudos sobre as Mulheres em Portugal, de que Faces de Eva é parte integrante. Pré-história a que estive profundamente ligada e que teve momentos interessantes. Assim, houve um momento marcante a nível global para a aceitação destas questões, do ponto de vista institucional e político. Teve lugar no âmbito da II Conferência das Nações Unidas sobre as Mulheres, que se realizou em Copenhaga, em 1980, e em que, poderá dizer-se, o tema dos Estudos sobre as Mulheres entrou na agenda política, sobretudo pela via das Organizações Não-Governamentais reunidas em Conferência paralela à Conferência Mundial.

Para esta entrada na agenda política foi decisivo o contributo de um Relatório da UNESCO, da autoria de Margherita Rendell, que dava conta do panorama dos Women’s Studies em diferentes países, regiões e culturas e avançava recomendações no sentido do seu reconhecimento, legitimação e desenvolvimento (Rendell, 1980). Na então Comissão da Condição Feminina, agarrámos no tema com entusiasmo, iniciando contactos com a Academia - personalidades e instituições -, particularmente da área das Ciências Sociais e Humanas, e apresentando propostas junto dos respectivos Conselhos Científicos no sentido do reconhecimento do tema, quer como possível área específica de análise, quer ainda como perspectiva nova a introduzir nas várias áreas de investigação. Foram curiosas as respostas obtidas, e curiosas em dois sentidos. Nuns casos, a reacção foi de interesse e de vontade de organização de algumas iniciativas como workshops, conferências, seminários... Noutros, a reacção foi de estranheza, de dúvida sobre o interesse de tal abordagem e até de rejeição, baseada no argumento de que a ciência é só uma e como tal deve ser estudada, não havendo, pois, lugar a especificações de homens e mulheres, de masculino e de feminino.

Tudo era então assaz novo, e recordo até a discussão sobre a própria tradução da designação adoptada internacionalmente, Women’s Studies. Deveria ser “Estudos sobre as Mulheres” ou “Estudos sobre a Mulher”; ou antes, “Estudos Feministas” ou “Estudos Femininos”? E a opção foi “Estudos sobre as Mulheres”, tradução literal que pareceu então ser a mais adequada.

Neste percurso a primeira grande concretização foi a realização do Seminário intitulado exactamente Estudos sobre as Mulheres, que teve lugar na Fundação Gulbenkian, em Novembro de 1983. Nele participaram investigadoras estrangeiras, que nos deram a visão global de tais estudos em Espanha e França, e representantes da nossa Academia, designadamente das áreas de História, Literatura, Linguística, Economia... O Seminário teve um acolhimento interessado de vários sectores da Academia, particularmente da FCSH, e as respectivas Actas estão publicadas em número especial do Boletim da Comissão (Seminário de Estudos sobre a Mulher, 1984). Recordo a intervenção do Prof. Mattoso, que, após várias considerações sobre o objecto da História enquanto disciplina, considerou que “até aqui só se fez a história que é própria do Homem”, que assim se tornou “unilateral, logo deturpada, enganadora”; havia por isso que reescrevê-la, “ver a outra face, a face até aqui obscura, esquecida”. Uma visão nova da História que incluiria, ainda segundo ele, novos itens como “a família, a sexualidade, o sentimento, a ecologia, o pensamento simbólico, a magia, a fecundidade (não apenas a demografia), a maternidade, a divisão sexual do trabalho, o imaginário masculino-feminino”, etc. (Mattoso, 1984, pp. 82-83). O Seminário foi acompanhado de uma Exposição Bibliográfica sobre a Mulher que incluiu um conjunto de 181 obras, do século XVI ao século XX, de que dá conta o respectivo Catálogo. Esta publicação integra ainda belíssimas imagens das folhas de rosto de um número significativo de obras, algumas das quais mencionadas neste texto (Silva, 1983). Paralelamente à exposição de livros, houve uma exposição de obras de arte (escultura e pintura) sobre o tema Mulher do espólio da própria Fundação, que procurava chamar a atenção para a dimensão temporal do tema, a riqueza do património existente nesta área e a necessidade de o ter em conta nestes estudos.

Passados dois anos, em 1985, a comunidade académica agarrou definitivamente no tema e registaram-se duas grandes iniciativas. Em Coimbra, promovido pelo Instituto de História Económica e Social, realizou-se um grande Colóquio sobre A Mulher na Sociedade Portuguesa: Visão Histórica e Perspectivas Actuais. Em Lisboa, teve lugar o Colóquio Mulheres em Portugal por iniciativa do Instituto de Ciências Sociais.

Dir-se-ia que todos os dados estavam lançados, mas as resistências continuavam, por vezes jocosas. Lembro-me, por exemplo, do eco que teve na imprensa da época, em 1986, um Seminário organizado mais uma vez pela Comissão da Condição Feminina, que teve lugar no LNETI, sob o tema A Mulher e o Ensino Superior, a Investigação Científica e as Novas Tecnologias e que contou com um largo grupo de investigadores/as e interessantes comunicações. Pois, no dia seguinte, havia notícias do evento, referido em termos como Mulheres dominam Faculdades ou Faculdades no Feminino… Para alguns parecia ser este o alcance de tal seminário!

Chegados os anos 1990, há um avolumar de iniciativas com acções específicas, números monográficos de revistas, integração do tema em conferências ou em revistas de carácter geral, um número crescente de teses, etc. E também muitas iniciativas - conferências, seminários, colóquios, etc., etc. Por outro lado, são constituídas as primeiras associações dedicadas ao tema - a APEM, em 1991, na sequência de uma primeira Rede de Estudos sobre as Mulheres, e a APIHM, em 1997.

Por iniciativa das Organizações Não-Governamentais de Mulheres do Conselho Consultivo da então Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, foi instituído em 1990 o Prémio Carolina Michaëlis de Vasconcelos para trabalhos de investigação nestas áreas, que, aliás, segundo creio, também viria a ser atribuído a Faces de Eva.

Em 1994 houve um momento interessante, pelo entusiasmo e adesão que suscitou por parte de investigadores/as de diversos países e zonas do mundo. Foi o Congresso Internacional sobre O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa, que teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian e que contou com 140 comunicações publicadas e cerca de 600 participantes, vindos de países da CPLP, da União Europeia, e ainda dos EUA, Índia, Japão, China, Rússia, Polónia, Roménia (1995, Congresso Internacional “O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa”, 2 vols.). Estava-se em meados da década de 1990, e de novo a evolução a nível internacional da vertente política do tema Mulher foi decisiva. Note-se que esta década foi caracterizada pela realização de grandes conferências internacionais promovidas pelas Nações Unidas, que abordaram o que se considerou serem os grandes problemas do mundo no presente e na perspectiva do futuro. Recordando brevemente:

  • Conferência do Rio 1992 - ambiente e desenvolvimento;

  • Conferência de Viena 1993 - direitos humanos;

  • Conferência do Cairo 1994 - população e desenvolvimento;

  • Cimeira de Copenhaga 1995 - desenvolvimento social;

  • Conferência de Pequim 1995 - situação das mulheres.

Foi uma década especial, em que a comunidade internacional, no seu conjunto, não só reflectiu sobre os grandes problemas do mundo, mas também sobre as estratégias e metas para o futuro.

Esta reflexão conduziu depois à definição dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, em 2000, e posteriormente, após balanço da situação efectuado em 2015, à adopção da nova agenda global - Agenda 2030 - que define os objectivos e estratégias para o futuro - os chamados Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (https://sdgs.un.org/2030agenda). Deles consta obviamente a questão da Igualdade de Género e do Empowerment das Mulheres, não apenas como um objectivo específico, que é, mas também como uma dimensão que integra o cenário global, porque atravessa e condiciona o sucesso de todos os outros objectivos. Efectivamente, não é mais possível pensar as questões globais do mundo em termos neutros, sem que as mulheres façam parte integrante desse cenário. Há que pensar a solução dos problemas em termos do seu impacto de género.

Assim, e voltando a 1995, vinte anos depois do México, a Conferência de Pequim constituiu um novo marco para uma definitiva legitimação das questões relativas à situação das mulheres no mundo e para a prossecução da investigação sobre o tema. Todas conhecemos a Plataforma de Acção de Pequim e as suas doze áreas críticas da situação das mulheres, bem como as metas e estratégias para as ultrapassar. Em todas essas áreas se recomenda a investigação sobre a situação das mulheres, bem como a integração sistemática da dimensão de género em todos os programas e políticas. Revista em 2000, na área específica da Educação, entre as medidas a adoptar inclui-se: “Apoiar e desenvolver a investigação e os estudos de género em todos os níveis de educação, especialmente a nível de pós-graduação por instituições académicas, e aplicá-los na elaboração dos curricula, inclusive os universitários, nos manuais escolares e nos meios auxiliares, assim como na formação de docentes” (United Nations (ONU), 2001), Plataforma de Acção de Pequim 1995 e Iniciativas e Acções Futuras: Igualdade de Género, Desenvolvimento e Paz para o Século XXI, para. 83g, p. 59).

Entretanto, entre nós, o tema dos Estudos sobre as Mulheres na academia continuou a fazer caminho. E o tema da Mulher começa a surgir cada vez mais, não só em colóquios e seminários de carácter mais geral, mas em momentos específicos de abordagem do tema. Um exemplo significativo foi a conferência que teve lugar em 1997 na Universidade de Coimbra - a Third European Feminist Research Conference, sob o tema Shifting Bonds, Shifting Bounds: Women, Mobility and Citizenship in Europe -, com larga participação de especialistas de diversas áreas de investigação, de mais de trinta países, constituindo novo ímpeto para o avanço destes estudos (V. Ferreira et al., 1998). A nível institucional, em 1995 foi criado o primeiro Mestrado em Estudos sobre as Mulheres, na Universidade Aberta.

Em 1998 nasce Faces de Eva, com as suas progressivas fases e iniciativas, com o lançamento da revista no ano seguinte. Aliás, curiosa coincidência, o mesmo ano em que começa a revista da APEM.

Entretanto, surgem inúmeras iniciativas em outras universidades - umas mais pontuais, outras de carácter mais permanente; umas mais simbólicas, outras mais estruturais.

A década de 2000 dá um novo impulso a este processo, para o qual terá contribuído também a criação pela FCT de uma linha de financiamento para projectos de investigação na área de relações sociais de género e políticas para a igualdade, o que deu nova e decisiva legitimidade a este tipo de investigação, designadamente no meio universitário.

Assim, as iniciativas prosseguem nas instâncias universitárias. Em 2002, a Universidade Aberta cria o primeiro doutoramento em Estudos sobre as Mulheres, e em 2003 surge o primeiro curso de pós-graduação de Faces de Eva, mais tarde mestrado em Estudos sobre as Mulheres: As Mulheres na Sociedade e na Cultura; o doutoramento tem lugar em 2006. Um levantamento publicado em 2003 em Notícias CIDM, referente a doze universidades (do Minho ao Algarve, incluindo Lisboa, Coimbra e Porto, Évora e Beira Interior, Açores, etc.), elenca uma série de iniciativas, concretizadas em doutoramentos, mestrados, cursos de pós-graduação, disciplinas opcionais, ciclos de conferências, seminários, linhas e projectos de investigação, duas revistas, etc. (Sousa, 2003, pp. 21-22).

Por outro lado, são identificados projectos em áreas científicas variadas; não apenas nas áreas mais habituais de História, Sociologia ou Literatura, mas também em Economia, Psicologia, Ciências da Saúde, Ciências da Educação, Antropologia, Ciências Políticas...

Passaram duas décadas desde então e muita coisa aconteceu neste período de tempo. Não vou fazer essa história; ela, aliás, tem sido parcialmente feita em artigos publicados, designadamente, nas revistas ex aequo e Faces de Eva, entre outras publicações. De qualquer modo, é de registar a expansão de tais estudos que fomos acompanhando numa multiplicidade de instituições do ensino superior sob diversas formas e com diversos graus - na Faculdade de Ciência Sociais e Humanas, nas Faculdades de Letras das Universidades de Coimbra e de Lisboa, no ISCTE, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, mas também nas Universidades de Évora e do Minho, entre outras...

Pareceu-me ser importante recuperar um pouco desta memória, não em termos de análise substantiva, do carácter específico ou interdisciplinar, de estatuto disciplinar ou de sustentabilidade, mas em termos do interesse suscitado por este tema e da multiplicidade de iniciativas. Quis apenas registar o movimento que se gerou, não obstante as resistências e a inegável realidade de uma menor legitimidade académica que é ainda experimentada por quem se aventura nestas novas vias.

E Faces de Eva aventurou-se de uma forma particular e determinada, e esta é a mensagem que eu gostaria de acentuar. Enquanto em muitos casos se trata de iniciativas parcelares - sem dúvida, interessantes, válidas e necessárias -, com Faces de Eva tratou-se, e trata-se, de uma abordagem que é global e abrangente. Não é apenas um curso, ou uma disciplina ou um projecto, ou um grau académico, ou um ciclo de conferências, muitas vezes com carácter marginal ao funcionamento da academia; é antes uma perspectiva global e integrada na própria academia e por direito próprio. Como referi, com graus académicos, com investigação e com projectos, com seminários e ciclos de conferências, escolas de Verão e exposições, com publicações várias e biblioteca especializada, com uma revista de referência - e com tudo o que isto significa em termos de requisitos de sustentabilidade, de reconhecer os sinais dos tempos e de lhes dar resposta e (atrevo-me a dizê-lo) possivelmente também com tudo o que isto significa em termos de muita paciência e persistência. Na minha qualidade de membro de Faces de Eva, membro pouco actuante, como já confessei, embora de alma e coração com os seus objectivos e o seu trabalho - gostaria de terminar prestando a minha homenagem a todas as pessoas que integram este percurso de legitimação dos Estudos sobre as Mulheres, hoje também Estudos de Género e Estudos Feministas, quer na sua dimensão substantiva e académica, quer na sua dimensão prática e organizativa e sobretudo na sua mensagem e na sua visão. Visão com que, na voz da sua fundadora, se procura “Dar visibilidade ao invisível”, isto é, dar voz e rosto às mulheres. E continua: “Durante longos anos - diríamos séculos - as mulheres constituíram a parte oculta da realidade humana. Mas elas estiveram presentes. Com a sua identidade e potencialidades” (Castro, 2000, p. 5). O projecto Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, no seu conjunto, é uma expressão desta mensagem de presença e acção das mulheres e é um quebrar do silêncio e da invisibilidade.

A revista Faces de Eva é talvez a face mais visível desse projecto. Segundo a nota de abertura do primeiro número da revista em 1999, é uma face que se apresenta “sorridente e ao mesmo tempo séria, umas vezes leve outras profunda, variada sem esquecer a unidade, olhando o passado e projectando o futuro, com os olhos postos nas estrelas e os pés caminhando a terra dura das realidades”. Um projecto para o qual convidava “quem quiser entrar nesta aventura de olhos nas estrelas e sem esquecer os caminhos da terra” (Castro, 1999, p. 7).

Pois bem, a aventura continua, e nós, hoje e aqui, também somos parte dela!

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Nota

1 Nota de edição: O texto aqui apresentado reproduz a conferência proferida pela autora, no contexto de um evento comemorativo dos 25 anos de Faces de Eva. Pela sua relevância e adequação à presente edição da revista (n.º 50), e equipa editorial decidiu mantê-lo na forma original.

Recebido: 03 de Novembro de 2023; Aceito: 30 de Novembro de 2023

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