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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.50 Lisboa dez. 2023  Epub 21-Fev-2024

https://doi.org/10.34619/6ku5-azlr 

Pioneira

Celeste Fortes - Antropóloga, académica militante e feminista

Isabel Henriques de Jesusi  ii  1
http://orcid.org/0000-0002-8172-4224

Raquel Landeiraiii 

i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal. Email: misabeljesus@fcsh.unl.pt

ii Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT), 1069-061 Lisboa, Portugal

iii Investigadora independente. Portugal.


Celeste Fortes 

Académica e ativista cabo-verdiana, Celeste Fortes considera-se uma “académica feminista negra do Sul”. O seu trabalho desenvolve-se em torno da descolonização do conhecimento, do feminismo e das questões de género, em Cabo Verde e em África. Voz ativa na luta contra o patriarcado, a violência de género, o machismo e o silenciamento das mulheres em Cabo Verde, participa na discussão sobre a importância da voz do Outro na produção do conhecimento e na pesquisa etnográfica.

CABO VERDE

Maria Celeste Monteiro Fortes nasceu no dia 27 de abril de 1981 em Cabo Verde, entre as montanhas da Ilha de Santo Antão. Filha de Bia e de António Fortes, é a quinta de sete irmãos e irmãs, com quem cresceu. Na infância, o trabalho do seu pai, no Ministério da Agricultura, obrigava a transferências frequentes, e desde cedo a sua vida foi marcada por deslocações e rompimento de laços. Aos três anos, a família mudou-se para a Ilha de Santiago, onde ficaram até Celeste ter 16 anos. Aí fez o ensino básico e tornou-se uma menina curiosa e uma leitora ávida. As brincadeiras e brigas dos irmãos e o rebuliço de uma casa cheia marcaram a sua infância feliz, de que se recorda com ternura.

A mãe, “dona Bia”, sempre trabalhou a partir de casa, sendo uma presença constante na vida dos filhos. O pai, apesar de presente na família, passava mais tempo fora, em trabalho. Dona Bia fazia rendas, bolos e outros trabalhos domésticos, com os quais sustentava a família. Segundo a filha, era “daquelas mulheres com duplas e triplas jornadas de trabalho”. Bia tentava esconder a exaustão dessa vida de trabalho e educou os filhos para que levassem a sério a escola e reconhecessem a importância de estudar. Costumava dizer-lhes: “Estuda para não teres a mesma vida que eu tenho.” Estas palavras tiveram um grande impacto em Celeste e vieram a inspirar o título do seu projeto de doutoramento.

“As mães”, afirma celeste, “labutam por nós, nesta sociedade que insiste em se dar a ver como patriarcal, mas que é também matrifocal. Ensinam-nos a estudar para que não tenhamos a vida que têm ou tiveram.” O papel das mães é especialmente relevante no contexto cabo-verdiano, onde as mulheres têm uma função fundamental na economia familiar e na sociedade em geral, apesar da persistente desigualdade de género. Em muitos casos, as mulheres são as principais provedoras da família, frequentemente assumindo duplas e triplas jornadas de trabalho - como Dona Bia fez pelos seus filhos.

Embora historicamente a educação formal não tenha sido sempre acessível a todos em Cabo Verde, as mães têm sido as principais impulsionadoras da educação. Reconhecem que a educação é uma ferramenta vital para melhorar as condições de vida e garantir um futuro melhor para as gerações futuras. A educação também pode proporcionar mais oportunidades para as mulheres, ajudando a combater a desigualdade de género e a alcançar uma maior autonomia. Celeste destaca a sua importância:

Elas, cujas mãos estão calejadas, as costas doridas e a voz silenciada de tanto pegarem noutras enxadas, mais pesadas. Elas, cuja luta diária não lhes permite ter direito ao descanso e a contemplar outras possibilidades de existência ou saborearem a doce sensação de lazer e de libertação das amarras do machismo e do patriarcado. Estas nossas mães nunca têm tempo para pousar as pesadas enxadas. (Fortes, 2022, para. 18)

ESTUDOS - DE MENINA TRABALHADORA E CURIOSA A MULHER INDEPENDENTE

O desejo de fazer a universidade no estrangeiro manifestou-se cedo, uma vez que esta era, à época, a melhor opção para quem quisesse prosseguir os estudos. Apesar de um fascínio inicial pela República Checa, onde primos mais velhos tinham estudado, ainda nos tempos da União Soviética, Celeste decidiu-se por Portugal. Esta opção deveu-se à proximidade das realidades portuguesa e cabo-verdiana: das semelhanças culturais à língua partilhada, ambas são herança do colonialismo português. Esta influência permeia a sociedade cabo-verdiana e muitas vezes ofusca as particularidades e as necessidades da nação. A relação de Cabo Verde com Portugal reflete-se em todos os aspetos: a língua oficial é o português, usado nas escolas, nas universidades, na administração pública e na imprensa. No entanto, se o português é a língua oficial das instituições e da diplomacia, o crioulo (criol ou kriolu) é a língua nacional, a língua do povo. Celeste encara o crioulo como a língua do sentimento, do coração, e realça a importância de lhe dar mais visibilidade e importância. Cada uma das dez ilhas do arquipélago tem a sua variante do crioulo (à exceção de Santa Luzia, que não é habitada). Celeste domina o sampadjudo e o badio. Para além do português e destas duas variantes do crioulo, fala também inglês. Com a filha, fala sobretudo sampadjudo, mas ocasionalmente introduz o badio e o português, explorando as possibilidades polifónicas do ato de reclamar a cabo-verdianidade através do uso, valorização e empoderamento da língua nacional.

Na sua tese de licenciatura, a autora explica: “ter um curso significa ter prestígio e uma posição social, fortemente valorizada” (Fortes, 2005). A mobilidade social da sociedade cabo-verdiana manifesta-se em grande parte através dos estudos, que, na juventude de Celeste, se faziam sobretudo no estrangeiro. Atualmente, com o desenvolvimento das universidades locais, já é possível ficar em Cabo Verde e ter acesso a uma educação superior de qualidade. No entanto, a sociedade cabo-verdiana é marcada precisamente pela mobilidade, pelo rompimento de relações - que a antropóloga encara como espaços para a construção de novas ligações e amizades, e não só de perda e saudades.

Apesar do prazer que sempre teve em ir à escola, o complexo contexto de racialização na realidade cabo-verdiana também se fazia sentir. Celeste relembra a insegurança que sentia perante as colegas por não ser considerada “bonitinha”, rodeada como estava de meninas que tinham cabelos lisos e olhos e peles claras, traços muito mais adequados ao ideal de beleza eurocêntrico e ocidentalizado que ainda hoje prevalece. “Menina negra, de cabelos crespos e pele escura”, vinda do interior das ilhas, deparou-se desde cedo com esta herança da presença portuguesa no país e a relação conturbada de Cabo Verde com as questões identitárias ligadas ao sentimento de pertença ao continente africano, temas que explorará mais tarde no seu trabalho. Através da sua prática académica e ativista, pode agora desconstruir e explorar estas questões.

Quando finalmente “fugiu” para Portugal, no ano 2000, com apenas 19 anos, não era só a experiência académica com que sonhara que a esperava em Lisboa. Era também o seu Dô, que ainda hoje é o seu parceiro e com quem tem uma filha nascida em novembro de 2019, Ayo Akira.

Juntos há 25 anos, Celeste e Zé (“Dô” para os amigos) conheceram-se quando esta tinha 16 anos e acabara de se mudar de Santiago para São Vicente. Foi amor à primeira vista, confessa, mas a juventude de ambos ditou que fossem, antes de mais, os melhores dos amigos - até ser hora de ele partir. Zé mudou-se para Lisboa, em 1998, para frequentar o Instituto Superior Técnico. Na despedida, aperceberam-se de que sentiam algo mais, e de que o sentimento era mútuo. Já nessa altura era forte e determinada; escreveu-lhe uma carta com uma declaração e um pedido de namoro. O seu amor à distância sobreviveu através das muitas cartas que trocaram durante os dois anos de separação. São testemunho daquilo que foi o começo de uma relação duradoura e saudável, e ainda hoje são guardadas com carinho.

LICENCIATURA

Celeste escolheu o curso de Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com o intuito de aprender mais sobre as questões socioculturais que lhe interessavam. Apesar das saudades de casa e da família, a integração na nova vida, em Lisboa, foi “tranquila”. Foi viver com o parceiro, e não tardou muito para que fizesse amigos de todas as nacionalidades, essenciais para a sua formação. Fala do conceito de “pessoa compósita” para descrever a forma como teve - e tem ainda - diversas influências que enformam a sua evolução como pessoa, o seu crescimento e a permanente transformação. A exposição a uma miríade de novas ideias, pessoas e ambientes diferentes, ajudou-a a crescer nos primeiros anos em Lisboa.

Apesar das saudades de casa, e sobretudo da mãe, Celeste não tardou a criar laços. Considera que as pessoas são a nossa casa, mais do que os lugares. Esta grande abertura para se dar a conhecer e fazer novos amigos e a paixão pelos estudos tornaram a licenciatura num tempo marcante e feliz.

Terminou o curso em 2005, ano em que escreveu a tese final, que se intitula Nu Bem Djobi Nós Inxada - Viemos Procurar a Nossa Enxada: Estudantes Cabo-Verdianos em Lisboa, (Re)Construções Identitárias (2005). Este trabalho explora as formas como os estudantes cabo-verdianos em Lisboa constroem a sua identidade cultural e como a experiência de estudar fora do país de origem afeta essa construção. A “inxada” (enxada) é um objeto que representa os meios de subsistência da população rural cabo-verdiana e é utilizada para representar as raízes culturais e a busca de identidade dos estudantes cabo-verdianos. Através de entrevistas e análise de discursos, Celeste conclui que a experiência de estudar no exterior pode ser um desafio para a identidade cultural, mas que os estudantes cabo-verdianos usam essa experiência para construir uma identidade mais complexa e rica.

APRENDER SEMPRE - PROSSEGUIR OS ESTUDOS

Entre agosto e outubro de 2007, Celeste realizou o Curso de Formação para Formadores, pelo qual recebeu o Certificado de Aptidão Profissional, reconhecido pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional de Portugal. Em 2013, fez um breve curso em estudos pós-coloniais: Atlânticos Sul, através do Instituto Camões. Quando uma professora lhe disse que tinha perfil para seguir para doutoramento, assim fez. Com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2007-2010) - bolsa para a qual ficou em primeiro lugar -, Celeste decidiu especializar-se em Migrações, Transnacionalismo e Etnicidade, e terminou o doutoramento com a classificação Muito Bom por Unanimidade. O título que escolheu para a sua tese foi M’ t Estuda pam k Ter Vida k nha Mãe Tem/Estudo para Não Ter a Mesma Vida da Minha Mãe. Relações de Género e Poder: Narrativas e Práticas de Mulheres Cabo-Verdianas em Portugal e Cabo Verde.

Este trabalho aborda uma série de temas e problemáticas que desde então a autora tem vindo a explorar e a aprofundar no seu trabalho de campo e teórico. O estudo examina as relações de género e poder, dando ênfase às narrativas e práticas de mulheres cabo-verdianas em Portugal e Cabo Verde. Através de entrevistas em profundidade e de observação participante, o estudo destaca como as mulheres cabo-verdianas percebem as suas vidas e lutas por poder e agência em diferentes contextos. Afirma, no entanto, que seria incorreto e redutor utilizar a designação “mulher cabo-verdiana” para uma categoria homogénea, sem considerar outras particularidades. Esta generalização é reminiscente de outra problemática mencionada pela antropóloga: a homogeneidade com que o Norte epistemológico trata África, sem reconhecer as diversas condições socioeconómicas, culturas, línguas dos países do continente. Curiosamente, estes países - e respetivas capitais - do continente africano, Celeste sabia-os de memória. Decorara-os quando era pequena, nas suas brincadeiras com um globo, e certamente terá reparado que, apesar da proximidade do continente africano, Cabo Verde estava, em todos os outros aspetos, muito mais próximo de Portugal, mesmo com a independência do país ainda tão fresca na memória.

Esta (não) identificação com o continente está relacionada com a discriminação racial dentro da própria sociedade cabo-verdiana. A autora acredita que é importante amplificar o conhecimento produzido pelo Sul epistemológico - e que este deve ser escutado e levado a sério pelo Norte. Considera que se deve ensinar e desenvolver o crioulo, e o governo está já a trabalhar para poder estabelecê-lo como língua oficial do país. A infraestrutura da sociedade devia estar virada para as necessidades e circunstâncias particulares dos cabo-verdianos, não para as dos seus ex-colonos. As ligações com África devem ser preservadas e celebradas com orgulho, comenta a investigadora.

Uma das principais conclusões da tese é de que as mulheres cabo-verdianas entrevistadas, em Cabo Verde e em Portugal, enfrentam desafios semelhantes em ambos os contextos, incluindo discriminação, desvantagens socioeconómicas e normas culturais restritivas. No entanto, as respostas e estratégias das mulheres em relação a esses desafios variam. Muitas enfatizam a importância da educação e do trabalho para a sua autonomia económica e empoderamento. Algumas também dizem desafiar as normas de género tradicionais, assumindo papéis não estereotipados e apoiando as mulheres nas suas comunidades. No entanto, ao mesmo tempo que algumas mulheres enfrentam obstáculos significativos para alcançar a autonomia e exercer a sua agência, outras internalizam e reproduzem as normas de género restritivas.

Muitas mulheres entrevistadas relatam a influência das experiências das mães nos seus objetivos de vida, tal como a própria investigadora, que, com o apoio inabalável da mãe, trabalhou arduamente para ser a mulher forte e a académica militante que hoje é. Globalmente, o estudo sugere a importância de uma abordagem crítica ao género e ao poder, que leve em consideração as dinâmicas culturais e socioeconómicas contextuais, bem como a diversidade de experiências das mulheres. Parte da pesquisa realizada em Portugal decorreu no âmbito da participação, enquanto investigadora e colaboradora, no projeto De muitas e variadas partes ao Portugal do século XXI: novas oportunidades, novos padrões nas relações de género, microfamiliares e interétnicas, coordenado pela sua orientadora, a Professora Doutora Susana Trovão.

A PRÁTICA ACADÉMICA MILITANTE - O IMPACTO DAS INSTITUIÇÕES NA VIDA QUOTIDIANA

A Antropologia mostrou a Celeste que podia fazer a diferença, lutar pelas suas crenças e procurar ser militante na prática académica; que não tinha de se cingir a uma perspetiva formatada, nem de ceder à tentativa institucional de se tornar passiva, atitude que manteria a sua mente refém das instituições e poderes (pre)dominantes. Do seu ponto de vista, uma Academia que não tem abertura para fora não cumpre o seu papel, está ultrapassada e precisa de se revitalizar, valorizando a partilha e a troca de conhecimento. A autora fala de “conhecimento útil”, isto é, conhecimento que tenha uma aplicação prática na vida das pessoas, em oposição a um trabalho meramente teórico que se cinge ao contexto académico e não produz resultados que beneficiem a sociedade.

Defensora da importância de devolver a voz ao Outro, questiona o papel dos especialistas, incluindo aqueles que fazem trabalhos de etnografia. Muitas vezes, esses especialistas, vindos de um contexto de pesquisa ocidentalizado e pertencentes ao Norte epistemológico, desvalorizam os sujeitos de pesquisa e “roubam as suas vozes”. A solução proposta é um exercício de escuta, algo que muitos académicos não sabem fazer. “Escutar e ouvir são coisas diferentes”, explica. “Escutar deve ser um ato transformador.” Se o investigador sai diferente desta interação, então o trabalho originalmente encetado, do lado de fora, sobre um sujeito torna-se numa troca, num fluir recíproco de saberes. A antropóloga defende, por isso, metodologias participativas e uma relação de poder mais equilibrada entre as epistemologias do Norte e do Sul. A relação entre o especialista e os sujeitos de estudo - e mesmo entre professores e alunos no contexto académico - deve ser de transformação e transferência. Os produtos destes trabalhos devem ser apresentados e ser de fácil acesso, no sentido de democratizar e divulgar o conhecimento, para benefício da sociedade.

A antropóloga considera que as universidades do Sul são formatadas à luz das realidades do Norte, importando estruturas, regras, pensamento e avaliações do pensamento ocidental. Isso pode levar a um “rolo compressor” que impede o pensamento livre e a transgressão; assim, ao contrário, as universidades devem fomentar o surgimento de movimentos para a transformação da sociedade e para a promoção de políticas públicas. É necessário criar espaço para a transgressão e permitir o pensamento livre e transformador, ao invés de apenas reproduzir ideias importadas do Norte.

O trabalho de Celeste Fortes tem-se orientado para reflexões importantes sobre a escuta ativa e transformadora no contexto da pesquisa antropológica. A ideia de que escutar e ouvir são diferentes é interessante, uma vez que a escuta ativa implica uma atitude transformadora e envolve uma mudança tanto do pesquisador, quanto do sujeito estudado. A pesquisa enquanto troca de saberes é um desafio à conceção tradicional da mesma como atividade unilateral, em que o pesquisador tem a autoridade sobre o conhecimento produzido. A autora destaca a importância de dar voz aos sujeitos estudados sem mediação, ou seja, sem que o pesquisador imponha as suas próprias perspetivas e hierarquias. Isso sugere uma abordagem mais participativa e dialógica, em que o pesquisador se coloca num papel mais humilde e colaborativo, ouvindo e aprendendo com os sujeitos estudados.

A autora dá como exemplo o texto seminal de Gayatri Spivak (2021), “Pode o subalterno falar?”, que é uma crítica importante à autoridade etnográfica e às formas de poder que permeiam a pesquisa antropológica. Spivak argumenta que os subalternos, ou seja, aqueles que são marginalizados e oprimidos na sociedade, muitas vezes são silenciados e excluídos do discurso académico. Nesse sentido, a pesquisa antropológica pode reforçar essa exclusão se não permitir que essas vozes sejam ouvidas. A ideia é que a pesquisa deve ser uma forma de dar voz aos subalternos e de incorporar as suas perspetivas no discurso académico. Celeste defende precisamente a necessidade de fazer uma reflexão crítica e importante sobre a prática da pesquisa antropológica e de adotar uma abordagem mais participativa e dialógica, em que as vozes dos sujeitos estudados sejam ouvidas e valorizadas.

Sobre o papel da Academia, a autora considera que ela deve afetar as políticas públicas. No que se refere às questões de género, a Academia pode fazer a ponte com as entidades governamentais, devolvendo à comunidade o trabalho feito com e para ela. As políticas públicas devem ser um reflexo da pesquisa feita pela Academia, embora a análise gere, mais do que respostas, perguntas. Nenhum governo quer “sujeitos inconvenientes” a questionar as suas políticas. As ciências sociais e humanas podem representar um perigo, porque, quando livres, têm o potencial de criar estes sujeitos inconvenientes, esta inconveniência transgressora: o povo, através do poder de voto e de revolta, pode derrubar governos. Um povo desinformado e alienado é mais fácil de gerir. Esta desvalorização das humanidades parte também da influência de Portugal, uma vez que as políticas de Cabo Verde tendem a refletir as portuguesas.

ATIVIDADES MÚLTIPLAS

São muitas as organizações de que Celeste Fortes é ou foi membro: Associação de Jovens Investigadores Cabo-verdianos, Núcleo de Estudos Africanos e Associação de Cinema e Audiovisual de Cabo Verde. É também pesquisadora colaboradora do Centro de Investigação e Formação em Género e Família da Universidade de Cabo Verde. Como coordenadora executiva do M_EIA, integra um projeto de formação de jovens cineastas e produtores audiovisuais em Cabo Verde. Foi realizadora, correalizadora e pesquisadora de vários documentários: Amílcar - The African Utopias Maker, Bidon: Nação Ilhéu (vencedor do concurso DOC TV III da CPLP, 2018), Canhão de Boca (vencedor do concurso DOCTV CPLP, 2017) e Trazem um Kosa (curta-metragem). É também fundadora e presidente do Cineclube do Mindelo, que promove a exibição e discussão de filmes em Cabo Verde.

Esta ampla gama de atividades mostra o seu compromisso em contar histórias, através de diferentes plataformas, e em aumentar a consciencialização sobre questões sociais e culturais relevantes em Cabo Verde.

Celeste tem experiência na escrita e na produção de peças e filmes. Em Bidon - Nação Ilhéu (2019), os bidons - grandes recipientes de plástico que chegam ao país cheios de produtos enviados por familiares ou amigos que vivem no estrangeiro - são apresentados como “peça fundamental na economia e na sustentabilidade do país”. Este documentário, que Celeste correalizou com Edson Silva, conta a história de três personagens femininas e a relação de cada uma com o bidon que chega de fora. Uma das personagens é uma menina cuja relação com a mãe, que vive nos Estados Unidos, acontece através do envio de bidons. Outra personagem é uma senhora que tem o sonho de receber um bidon, mas nunca recebeu. A terceira é uma “rabidante”, que compra os produtos que vêm nos bidons para os vender, como forma de sustentar a família.

Em 2017 Celeste integrou o grupo de sete jovens líderes cabo-verdianos selecionados para o Mandela Washington Fellowship, um competitivo programa do ex-presidente dos EUA, Barack Obama, que leva mais de mil jovens do continente africano para uma estadia de seis semanas naquele país.

Mais recentemente, Celeste abraçou a rádio, com um programa em formato podcast intitulado “O G da questão” (2022)2, na Rádio Morabeza - já na sua segunda temporada. Em mais de 80 episódios repletos de coragem e ousadia, juntamente com a jornalista Lourdes Fortes, desbravam territórios (ainda) proibidos do universo feminino. Apesar de abordar tópicos tabus em Cabo Verde, o programa tem sido um sucesso retumbante. Sempre acompanhadas por uma convidada especial, discutem abertamente questões relacionadas com a sexualidade, o corpo e as suas mutações, o amor, a maternidade e outras dimensões da vida das mulheres. Estes são temas que frequentemente permanecem na obscuridade do espaço público, coisas que “experimentamos, vivenciamos, mas que guardamos para nós mesmas”, afirmam as autoras. Tendo despertado a curiosidade e o interesse de inúmeros ouvintes, ávidos por explorar novas perspetivas e descobrir novas verdades, as autoras lançaram o livro O G da questão, cuja edição impressa esgotou de imediato, estando, no entanto, disponível para download online.

PROJETOS FUTUROS

Celeste Fortes gostaria de transformar os capítulos da tese em artigos ou produtos audiovisuais que pudessem alcançar uma audiência mais vasta. Um desses projetos - em desenvolvimento - chama-se “Leite de Tribunal” e constitui uma pesquisa para um documentário sobre mães em Cabo Verde que procuram justiça na atribuição da pensão alimentícia para os filhos. Uma mulher entrevistada por Celeste expressou a sua insatisfação com o sistema de justiça e disse que o filho nunca beberia “leite de tribunal”, porque ele pertence à mãe e a atribuição da pensão deve ser da responsabilidade desta e não das instituições legais. A pesquisa revelou que cerca de 50% das casas cabo-verdianas são monoparentais, sendo a mulher a figura principal, e que 90% dos pedidos de pensão são feitos por mulheres. As leis da família em Cabo Verde são as mesmas de Portugal, mas não refletem as realidades sociais do país. Há uma pressão sociocultural para as mulheres estarem num relacionamento. A autora opõe-se à romantização da figura da mãe solteira como heroína ou mártir. Algumas mulheres acreditam que uma “casa de respeito” deve ter um homem, e por isso aceitam a poligamia informal, deixando o homem “permanecer” em casa, mesmo que seja uma relação problemática ou em que ele não contribua de todo.

Termina-se esta breve apresentação sobre a pessoa e o trabalho pioneiro de Celeste Fortes com a referência escolhida para o Simpósio “Memórias e Narrativas (Pós-)Coloniais, realizado no Mindelo a 24 e 25 de março de 2022:

Num dos armários do meu corpo em libertação, estavam escondidos vários desejos. Um deles era o de conhecer a minha história. O amor-próprio exige que falemos de nós. Mas como, se não conhecemos a nossa história? Como, se filhas do silêncio e removidas da história - masculinizadas na voz e nos protagonistas exclusivos -, não conseguimos transpor as barreiras do silêncio e vencer as amarras da história única? No meu país, as mulheres são vítimas do esquecimento coletivo e da história oficializada.”3

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fortes, C. (2005). Nu ben djobi nós inxada - Viemos procurar a nossa enxada: estudantes cabo-verdianos em Lisboa, (re)construções identitárias (Dissertação de Licenciatura em Antropologia). Universidade Nova de Lisboa. [ Links ]

Fortes, C. (2022). A (nossa) enxada libertadora.Etnográfica, (número especial), https://doi.org/10.4000/etnografica.1264 [ Links ]

Spivak, G. C. (2021). Pode a subalterna tomar a palavra?. Orfeu Negro. [ Links ]

Notas

2 https://expressodasilhas.cv/podcasts/o-g-da-questao.

3 Fortes, Celeste em https://www.buala.org/pt/da-fala/simposio-memorias-e-narrativas-pos-coloniais-i-mindelo.

Notas

1 CIÊNCIAVITAE: https://www.cienciavitae.pt/portal/0A12-7962-7826.

Aceito: 12 de Dezembro de 2023

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