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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.50 Lisboa Dec. 2023  Epub Feb 21, 2024

https://doi.org/10.34619/5gnn-h1d9 

Recensões

Medina Martins, M., Cunha, M. & Pinto de Albuquerque, P. (Org.) (2022). Direitos humanos das mulheres. Universidade Católica Editora (526 pp.)

i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CICS.NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal. Email: mira.rita@gmail.com


Direitos Humanos das Mulheres é um livro editado pela Universidade Católica Editora que surge da iniciativa da Associação de Mulheres Contra a Violência, da Associação contra o Femicídio e do Doutor Paulo Pinto de Albuquerque, reunindo textos elaborados por um colectivo de autoras com distintas formações e experiências profissionais nas áreas do Direito e da Justiça, da Academia, dos Media e da Sociedade Civil.

Promovendo um olhar crítico e multidisciplinar sobre a situação dos Direitos Humanos das Mulheres na Europa, a obra tem como mote central a reflexão sobre “os recentes desenvolvimentos internacionais na área dos Direitos Humanos das Mulheres, à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos” (p. 11), dado o seu papel relevante neste domínio. Partindo de decisões e opiniões separadas sobre Direitos Humanos das Mulheres, como direito à integridade física e psíquica, direito à autodeterminação sexual e direito à maternidade, direito ao livre desenvolvimento da personalidade, direito ao trabalho, direito de acesso à habitação e à assistência social, o livro contribui para um maior entendimento sobre os preconceitos sexistas e discriminatórios que persistem sobre as mulheres em sistemas jurídicos e medidas de política pública de Estados Partes da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (a seguir “Convenção”), bem como sobre os progressos, legislativos e jurisprudenciais, que visam uma maior protecção desses direitos.

A escolha do título é abordada no início: “é certo que os direitos humanos (…) se aplicam indistintamente a mulheres e homens, não é menos certo que as mulheres continuam a ser tratadas de modo diferente e pior que os homens pelo simples facto de serem mulheres” (p. 15). O sujeito de direito não é um ser abstracto e universal, mas um ser contextualizado com as especificidades da realidade em que vive, atendendo às suas pertenças, nomeadamente de género, e à sua posição económica, social e cultural (Sottomayor, 2019).

Os estudos feministas do Direito têm vindo a denunciar que os valores ocidentais e masculinos se “infiltram” na interpretação e aplicação das normas jurídicas (Chamallas, 2003), ocultando as desigualdades reais em que vivem as mulheres e outros grupos marginalizados ou oprimidos, questionando o cânone mais tradicional do Direito (Sunder, 2007). Reconhecem que o Direito tem contribuído historicamente para a reprodução e legitimação das relações desiguais entre mulheres e homens, mas analisam também o seu papel na produção de mudança, “passando, paulatinamente, a assumir um papel inverso, mostrando e contrariando o que em muitos contextos era tido como natural e inevitável, quando não oculto: a diferenciação hierárquica de direitos, estatutos e valor entre homens e mulheres” (Duarte & Beleza, 2022, p. 9). A instância jurídica é, assim, um importante espaço de reflexão crítica e um recurso para a defesa dos Direitos Humanos das Mulheres, sendo a presente obra disso exemplo.

O primeiro capítulo analisa decisões sobre a violência contra as mulheres nas relações de intimidade e contra as crianças na família, enquadrando a violência doméstica como uma forma de tortura (art. 3.º da Convenção). É exigido aos Estados a implementação de mecanismos jurídicos adequados que assegurem que as pessoas não sejam tratadas de forma degradante ou desumana por parte de entidades públicas ou sujeitos privados, como se verifica na violência doméstica, condenando aqueles por violação de deveres positivos de prevenção e protecção efectiva das vítimas.

Na análise desta responsabilidade, é abordada a importância de adoptar uma perspectiva de género, sendo “a exigência da iminência do perigo injusta e desnecessária para criar um específico acrescido dever de protecção do Estado” (p. 65). É ainda necessário valorizar o risco em que se encontram as crianças, perspectivando-as como vítimas “enquadráveis em planos de segurança especiais” (p. 106).

O capítulo seguinte analisa situações em que persistem preconceitos sexistas relativamente à autodeterminação sexual e reprodutiva das mulheres que pressupõe “o direito de tomar decisões sobre a sua fertilidade e sexualidade de forma livre e informada” (p. 203), impondo a obrigação negativa de abstenção do Estado em restringir liberdades e obrigações positivas que assegurem o seu exercício efectivo. Ao longo da História têm existido práticas que silenciam a sexualidade das mulheres e o direito que possuem sobre o seu corpo, com impacto na desvalorização dos crimes sexuais e de outras formas de violência contra as mulheres, como a violência obstétrica e ginecológica.

Este capítulo aborda também o Direito das Crianças a ter uma família e à protecção do Estado no alcance desse direito, não devendo ser separadas da sua família “a não ser em caso de absoluta necessidade” (p. 263). A actuação do Estado deve suprimir as dificuldades da família, nomeadamente financeiras, respeitando o superior interesse da criança em manter os vínculos afectivos da filiação.

A obra prossegue com a análise de casos de pornografia e de abuso da imagem de crianças e mulheres, proporcionando uma reflexão aprofundada sobre a necessidade de o Tribunal Europeu tomar uma posição clara sobre a pornografia violenta ou extrema. Os comentários afirmam a relevância de se reconhecer a ligação entre pornografia e violência sexual contra mulheres e raparigas, devendo os Estados limitar o direito de liberdade de expressão (art. 10.º da Convenção) com o motivo legítimo de criminalizar “formas de pornografia mais extremas, como as que fazem a apologia ou a banalização da violência sexual contra as mulheres” (p. 317). Do mesmo modo, não é “defensável menorizar a pornografia como ficção, mera fantasia ou inócuo entretenimento” (p. 323), uma vez que os contornos predominantemente sexistas da cultura da pornografia têm forte impacto na reprodução de modelos de comportamento que perpetuam a desigualdade de género e a violência contra as mulheres.

Neste capítulo, é feito um enquadramento legal exaustivo da criminalização da pornografia infantil e exploração sexual de crianças com base em imagens, em termos internacionais e nacionais, perspectivando a criança como sujeito de direitos fundamentais.

Tendo como foco central a protecção das vítimas de violência sexual, cujo tempo é distinto do tempo da Justiça, operando este desencontro como um forte “obstáculo ao acesso e à compreensão da justiça” (p. 353), alerta-se para a desvalorização social e jurídica de práticas de violência sexual sem contacto físico entre autor e vítima.

No capítulo IV são analisadas situações de tráfico e exploração de mão de obra feminina e de discriminação no trabalho baseada no sexo, afirmando “a obrigação positiva (…) de os Estados procederem à identificação e apoio de potenciais vítimas de tráfico humano” (p. 426), independentemente do processo penal e da jurisdição. No que diz respeito à discriminação no trabalho, destaca-se a importância do gozo da licença parental por ambos os progenitores, “de modo a assegurar o direito das crianças a um desenvolvimento saudável, um direito familiar fundamental” (p. 429). Contudo, a igualdade formal não assegura a igualdade substancial “na partilha de cuidados e tarefas, no uso do tempo, de remunerações, progressão na carreira, acesso ao poder e à representação” (p. 440).

Por fim, a obra debruça-se sobre uma situação de discriminação no acesso à habitação e à assistência social prevista na Lei da Habitação dos Países Baixos, violando os direitos fundamentais de livre escolha da habitação e igualdade. Os comentários fazem uma crítica à decisão do Tribunal Europeu, juntando-se à opinião dissidente do Juiz Pinto de Albuquerque, segundo o qual não é defensável a prática de discriminação baseada na precariedade social, com efeitos nocivos sobretudo para mulheres e crianças, uma vez que atinge particularmente as mulheres, em especial mães de famílias monoparentais.

Esta obra é um valioso contributo para o conhecimento aprofundado da jurisprudência europeia em matéria de Direitos Humanos das Mulheres, constituindo uma ferramenta fundamental para a sua defesa, sendo crucial adoptar uma interpretação da Convenção “sensível ao género” (p. 524).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Chamallas, M. (2003). Introduction to feminist legal theory. Aspen Publishers. [ Links ]

Duarte, M., & Beleza, T. (2022). Desafios feministas ao direito: resistências e possibilidades (Feminist challenges to the law: resistance and possibilities). ex æquo, (45), 9-13. [ Links ]

Sottomayor, M. C. (2019). Os direitos humanos das mulheres e das crianças na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do TEDH (The women and children rights in the jurisprudence of the Constitutional Court and the ECHR). In Tribunal Constitucional (Ed.), Estudos em homenagem ao Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro (Vol. II) (pp. 119-152). Almedina. [ Links ]

Sunder, M. (Ed.) (2007). Gender and feminist theory in law and society. Ashgate Publishing Limited. [ Links ]

Notas

1 Investigadora.

Aceito: 13 de Novembro de 2023

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