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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.50 Lisboa dez. 2023  Epub 21-Fev-2024

https://doi.org/10.34619/pscr-fr2c 

Recensões

Pereira, A. C. (2021). Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país: Igualdades que Abril abriu. Bertrand Editora (264 pp.).

i PlanAPP - Centro de Competências de Planeamento, de Políticas e de Prospetiva da Administração Pública, 1069-123 Lisboa, Portugal. Email: manuel.abrantes@planapp.gov.pt


Quando pensamos em mudanças históricas, a nossa atenção tende a recair sobre transformações ocorridas na esfera pública, sobre práticas institucionais, sobre disputas explicitamente travadas no espaço coletivo. Mais raro - e mais difícil - é perscrutar as transformações íntimas, as alterações dos modos como sentimos e pensamos, como nos interpretamos e questionamos. Assim escreveram Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (2010, p. 3): “Só de vinganças, faremos um Outubro, um Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos?”

Se a célebre pergunta das Novas cartas portuguesas constitui a epígrafe do livro de Ana Cristina Pereira, não se trata apenas de uma homenagem: a autora leva a pergunta muito a sério. Enfrenta-a logo no capítulo inicial, narrando experiências vividas por si própria e por outras mulheres da sua família, pequenos incidentes do quotidiano, pequenas discussões de parentes, que a conduzem a grandes interrogações acerca do que fizeram, do que fazem e do que farão as mulheres de si mesmas.

É o ponto de partida para cerca de uma vintena de capítulos nos quais conhecemos uma ampla variedade de mulheres. Têm em comum a ligação ao arquipélago da Madeira. Muitas nasceram e residiram até hoje na Madeira ou no Porto Santo; outras nasceram ali e partiram para diferentes latitudes; outras, ainda, estabeleceram-se no arquipélago a dado momento da vida. Os capítulos são em larga medida autónomos e não seguem um encadeamento temático estrito. Ainda assim, a sua leitura sequencial permite traçar um arco coletivo que se inicia com as mulheres mais velhas, nascidas na ditadura salazarista e empregadas sobretudo na agricultura, no bordado e no serviço doméstico, e se estende até às mulheres nascidas nas primeiras décadas da democracia, protagonistas de experiências mais diversificadas e mais consentâneas com as suas aspirações. Em todos os relatos abundam os obstáculos e as dúvidas, as desilusões e as superações, mas as circunstâncias são brutalmente distintas consoante a geração e a classe social.

As experiências individuais - de “educação e trabalho, amor e parentalidade, opressão e liberdade, expetativa e frustração, perda e sonho” (p. 23) - vão abrindo portas para sínteses históricas. Por exemplo, o talento culinário de Joana Oliveira e Freitas convoca a história da alimentação e da fome no arquipélago, assim como os cuidados prestados às videiras por Águeda Ribeiro ou por Cristina Nóbrega convocam a história da viticultura. Com Naidea Nunes Nunes, professora de Linguística, descobrimos vocabulário regional e, palavra puxa palavra, o desenvolvimento da indústria local do açúcar. Com a florista Cecília Rodrigues ou a guia turística Josefina Mendonça, é o crescimento do turismo que se desvenda. As enfermeiras Isa Oliveira e Helena Lemos Nunes expõem as exigências da pandemia da covid-19. Rute Fernandes e Susana Sousa apresentam-nos as conquistas extraordinárias das mulheres lésbicas, bissexuais e trans. Graça Melim, Dimitra Papathanasopoulou e Samantha Teixeira, entre outras, protagonizam fluxos migratórios - antigos e persistentes - que têm dispersado tantas famílias pela Europa, África e América.

Estas são apenas algumas das pontes que o livro constrói entre o pessoal e o político, o individual e o coletivo, apoiando-se também em contributos das ciências sociais, os quais culminam no posfácio da socióloga Sofia Aboim. Ao longo do livro encontramos ainda ilustrações de artistas que, também com origem ou residência atual na Madeira, aceitaram o desafio de conceber imagens alusivas às histórias ali narradas.

Procurando aferir o contributo da obra para os estudos de género, feministas e sobre as mulheres, merecem destaque três aspetos. O primeiro consiste naquilo a que tipicamente chamamos o “género” ou o “estilo” de um livro: este é um livro não categorizável, na melhor aceção do termo. Tem algo de reportagem, algo de ensaio; é jornalismo com uma camada robusta de ciência social; é testemunhal, mas também, em alguns momentos, autobiográfico; pode ser percorrido como um livro de viagens; e não enjeita a oportunidade de transcrever canções populares e receitas de culinária. Esta demolição das fronteiras está longe de ser fortuita: permite discernir melhor os laços entre experiência e interpretação, singularidade e pluralidade. Desafiar deste modo os espartilhos literários, como fazem Alexievich (2016) ou Ernaux (2020), é um passo para construir uma obra à medida do seu conteúdo e requer um extraordinário empenho em várias frentes: além da recolha de informação, longa e intensa, além da análise e seleção dessa informação, igualmente árdua, há ainda o desafio de uma redação que saiba acolher e libertar quem lê. Em todas estas frentes, o presente livro de Ana Cristina Pereira é ambicioso e bem-sucedido.

O segundo aspeto a salientar prende-se com a principal matéria do livro. Escrever a partir de testemunhos pessoais é sempre um labor de minúcia. Mergulhados que estamos na nossa circunstância pessoal, dificilmente logramos uma perceção clara da realidade que nos rodeia e do nosso próprio contributo para transformar tal realidade: é a perspetiva externa que procura iluminar esse estranho processo. O sentimento é descrito por Duras (2017) quando escreve: “A história da minha vida não existe. Isso não existe. Nunca há um centro. Não há caminho, nem linha” (p. 12). A experiência das mulheres entrevistadas por Ana Cristina Pereira é complexa, é multiforme, é perpassada por ambivalências e contradições: só pode ser compreendida com atenção e delicadeza.

O terceiro contributo do livro a sublinhar é a constatação da centralidade do trabalho na experiência das protagonistas - notória em todas as classes sociais, gerações e idades. Também a este respeito existem ambiguidades: o trabalho proporciona uma via para a independência económica, mas reproduz desigualdades; é fonte de opressão, mas dele podem medrar movimentos de ação coletiva que alteram leis e dignificam profissões; e, para algumas das mulheres mais jovens, é simultaneamente compromisso e experimentação.

São precisamente os relatos sobre as mulheres mais jovens a suscitar uma interrogação importante que fica por responder. A sua vasta diversidade de experiências - desde logo laborais, mas também amorosas, migratórias, criativas - é encarada sobretudo como prova de liberdade. Traduz, sem dúvida, uma liberdade que as mulheres antecedentes não tiveram. No entanto, trata-se também, em muitos casos, de uma consequência da precariedade laboral, a qual coloca evidentes constrangimentos à liberdade e, em particular, à consolidação de identidades profissionais, quer individuais, quer coletivas. Importa recordar que o estabelecimento do regime democrático em Portugal, em 1974, foi seguido pela violenta expansão de uma mundividência capitalista e neoliberal, a qual procura entronizar a escala individual do êxito e do fracasso. Eis porventura um ponto de partida para futuras investigações sobre mulheres nas etapas iniciais da sua vida adulta: onde traçar as fronteiras entre liberdade e precariedade, entre fluidez e solidão?

Em suma, não faltam motivos para que esta obra de Ana Cristina Pereira constitua uma leitura oportuna no ano em que se completam cinco décadas sobre o 25 de Abril.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alexievich, S. (2016). A guerra não tem rosto de mulher (The unwomanly face of war). Elsinore. (Original work published 2002) [ Links ]

Barreno, M. I., Horta, M. T., & Costa, M. V. (2010). Novas cartas portuguesas (New Portuguese letters). Dom Quixote. (Original work published 1972) [ Links ]

Duras, M. (2017). O amante (The lover). Relógio d’Água. (Original work published 1984) [ Links ]

Ernaux, A. (2020). Os anos (The years). Livros do Brasil. (Original work published 2008) [ Links ]

Nota

1 CIÊNCIAVITAE: https://www.cienciavitae.pt/portal/9F1E-07CE-898F.

Aceito: 19 de Novembro de 2023

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