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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.15 no.1 Lisboa mar. 2014

https://doi.org/10.15309/14psd150106 

Resgatando o lugar de pais: uma proposta de promoção de saúde mental

Rescuing parents' position: a proposal for mental health promotion

 

Priscila Checoli Figueiredo, & Ivonise Fernandes da Motta

Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

A Unidade Básica de Saúde (UBS) é um equipamento do SUS (Sistema Único de Saúde, o sistema de saúde pública brasileiro), onde se prestam serviços relacionados com a Atenção Básica, de promoção de saúde e prevenção de doenças, bem como se realizam tratamentos de baixa complexidade tecnológica. A UBS recebe diariamente pais que buscam ajuda para minimizar algum sofrimento neles e em seus filhos. Muitas vezes, o Psicólogo é chamado para auxiliar na compreensão e para intervir em situações nas quais os pais se percebem impotentes para ajudá-los. A Psicologia deve contribuir para esta demanda social tomando o cuidado de respeitar as prerrogativas do SUS para os atendimentos em Saúde, e atuando, dentro da Atenção Básica, com vistas a realizar a Promoção de Saúde. Segundo Winnicott, o ambiente da criança, portanto sua família, tem papel fundamental para o desenvolvimento saudável do indivíduo. Winnicott demonstra também que é possível, realizando-se consultas terapêuticas, ajudar a criança na retomada de seu desenvolvimento saudável, desde que haja uma família que possa oferecer a “provisão ambiental” necessária para que este desenvolvimento aconteça. O suporte e o cuidado aos pais, procurando dar condições para que os mesmos viabilizem a retomada do desenvolvimento saudável da criança é, portanto, uma interessante estratégia de Promoção de Saúde. Este estudo apresenta, através da análise de um caso atendido na UBS, o uso das primeiras entrevistas enquanto consultas terapêuticas com a mãe e explicita sua eficácia no auxílio à família.

Palavras-chaves: Atenção Básica à Saúde. Promoção de Saúde. Consultas Terapêuticas.

 

ABSTRACT

The Basic Health Unit (UBS, acronym in Portuguese) is a SUS’s (Unified Healthcare System) facility where services related to Basic Attention, which comprises health promotion and disease prevention as well as low-complexity technological procedures, are performed. The UBS receives, on a daily basis, parents who seek help to alleviate sadness concerning themselves or their children. Frequently, the Psychologist is requested to help to understand the case and to intervene in situations in which the parents regard themselves as unable to help. Psychology should play a role in this social demand, taking care to respect the prerogatives that SUS has in healthcare and acting, within Basic Attention, aiming for Health Promotion. According to Winnicott, child’s environment, hence the family, has a fundamental role in the healthy development of the individual. Winnicott also demonstrates that it is possible, by the means of therapeutic consultation, to help the child to resume a healthy development, given that there exists a family that can offer the “environmental provision” necessary to that development. Therefore, support and care for parents, which aims to deliver the conditions that will make possible the resumption of the healthy development of the child, is a reasonable strategy in Health Promotion. This study presents, through the analysis of a case that occurred in a UBS, the usage of the first interviews as therapeutic consultations with the mother and illustrates its effectiveness in helping the family.

Keywords: Health Basic Attention, Health Promotion, Therapeutic Consultations.

 

O psicólogo inserido na atenção básica de acordo com o modelo SUS

A partir do Movimento da Reforma Sanitária no Brasil, nas décadas de 70 e 80, e principalmente com a VIII Conferência Nacional de Saúde, de 1986, a saúde passou a ser compreendida como um direito do cidadão e um dever do Estado. Os debates nacionais que incluíram a participação popular resultaram na implantação de um modelo de atenção à saúde garantidos pelo Estado, segundo a Constituição de 1988. De acordo com a seção Da Saúde da Constituição Federal, tem-se que os princípios básicos que orientam a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) são a universalidade (direito de todos os cidadãos), a integralidade (atendimento em todos os níveis de complexidade, da prevenção à assistência curativa), a equidade (garantia de acesso à saúde por todos os cidadãos, com investimentos maiores em áreas mais carentes), a descentralização (participação do governo federal, estadual e municipal no estabelecimento das políticas públicas de saúde) e a participação popular (através dos Conselhos de Saúde, que atuam na formulação e controle dos serviços públicos de saúde).

Em documento oficial que retoma a história da construção do SUS (Brasil, 2006a), formulou-se a compreensão de saúde como:

Um direito que se estrutura não só como reconhecimento da sobrevivência individual e coletiva, mas como direito ao bem-estar completo e complexo, implicando as condições de vida articuladas biológica, cultural, social, psicológica e ambientalmente, conforme a tão conhecida definição da OMS – Organização Mundial da Saúde (p. 18).

Assim sendo, as políticas públicas de saúde devem abarcar o ser humano de maneira integral, o que implica um olhar para além das doenças, em busca da promoção da saúde. Neste contexto, também as demandas referentes à saúde mental serão atendidas tanto nos âmbitos da promoção de saúde, e prevenção de doenças, como nos tratamentos e na reabilitação. Com isto, o psicólogo é chamado a se inserir em diversos aparelhos de saúde, como as Unidades de Saúde da Família, Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial, e Centros de Especialidades, entre outros, que devem atuar dentro de uma rede de cuidados (Brasil, 2007).

A Unidade Básica de Saúde (UBS) tem a característica de estar inserida no território onde se encontra a população que será atendida, atuando como uma das principais portas de entrada do usuário no Sistema de Saúde. Está incluída na Atenção Básica, e portanto deve cumprir seu papel de prevenir doenças e agravos, realizar a promoção em saúde e prestar assistência de baixa complexidade, acolhendo às demandas espontâneas e garantindo a continuidade dos cuidados necessários. Deve focar não somente a enfermidade, mas fornecer atenção integral sobre a pessoa (Starfield, 2002).

Cabe às equipes da Atenção Básica incorporar os objetivos da Política Nacional de Promoção de Saúde, de “promover a qualidade de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes” (Brasil, 2006b, p. 17).

Além da Promoção de Saúde, a UBS promove também tratamentos de baixa complexidade, como consultas, inalações, injeções, curativos, vacinas, coletas de exames laboratoriais, tratamento odontológico, encaminhamento para especialidades e fornecimento de medicação básica. Estes cuidados devem ser oferecidos por uma equipe mínima, composta por médicos especialistas em Clínica Geral, Ginecologia e Obstetrícia e Pediatria, Cirurgião-dentista, enfermeiro, técnico de enfermagem, de saúde bucal, agentes comunitários de saúde, entre outros (Brasil, 2006b).

Algumas Prefeituras Municipais, como é o caso desta onde se realizou o presente estudo têm optado por locar nas UBS´s também outros profissionais especialistas, como psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, além de especialistas médicos como psiquiatras, cardiologistas, oftalmologistas, entre outros, visando facilitar o acesso da população a estes profissionais. Abriu-se, com isso, a oportunidade de inserção do psicólogo nas equipes da Atenção Básica. Tal realidade está de acordo com Böing e Crepaldi (2010), que referem que embora as políticas de atenção à saúde básica tal qual encontradas na legislação federal da saúde não favoreçam a atuação dos psicólogos na saúde básica, o profissional da psicologia tem grande potencial para atuar nas demandas da Atenção Básica. Assim, o psicólogo neste contexto deve realizar a promoção de saúde e a prevenção, além de avaliar e acompanhar casos leves a moderados, que não necessitem de um serviço especializado em saúde mental (Gorayeb, Borges, & Oliveira, 2012).

O Ministério da Saúde postula que existem diversas responsabilidades a serem compartilhadas entre as Equipes Matriciais da Saúde Mental e Equipes da Atenção Básica, nas quais destaco, por serem fundamentais para a iniciativa de realizar este trabalho: a priorização de casos mais severos, evitar práticas que levem à psiquiatrização e medicalização de situações comuns à vida cotidiana, utilização de recursos comunitários, priorizar abordagens coletivas e de grupos como estratégia para atenção em saúde mental, e o trabalho de vínculo com as famílias, tomando-as como parceiras no tratamento, e buscando constituir redes de apoio e integração (Brasil, 2007).

A realidade é que cada dia mais, a população vem tomando conhecimento a respeito da possibilidade de ajuda do psicólogo para enfrentar dificuldades nas mais diversas áreas. Desajustes emocionais e comportamentais são queixas frequentes nos consultórios médicos e em salas de aula, tornando-se cada vez maior a demanda da população para o olhar e contribuições da Psicologia. Sendo assim, há grande procura das famílias e grande apelo das escolas que buscam compreender e solucionar os problemas que verificam no dia-a-dia, com a ajuda do psicólogo.

Dados do próprio Ministério da Saúde (Brasil, 2007) e estimativas internacionais, revelam que, se 3% da população do país (cerca de 5 milhões de pessoas) apresenta necessidade de cuidados contínuos, por apresentarem transtornos mentais severos e persistentes, este número triplica, quando estimamos as pessoas que precisarão de atendimento eventual, por transtornos menos graves (cerca de 15 milhões de pessoas).

Por estarem mais próximas das famílias, as equipes da atenção básica são as primeiras a entrarem em contato com estas demandas. O Ministério da Saúde mostra que 56% dessas equipes referiram realizar “alguma ação em saúde mental” (Brasil, 2007, p. 3), e compreende que “será sempre importante e necessária a articulação da saúde mental com a atenção básica” (Brasil, 2007, p. 3)

Pesquisas mostram que o modelo tradicional de trabalho do psicólogo clínico jamais vai dar conta das especificidades do campo da saúde mental em órgão público (Archanjo, 2012; Vecchia & Martins, 2009; Dimenstein, 1998; Oliveira et al, 2004). Em se tratando de UBS, Archanjo (2012) mostra que este é um campo onde a atuação do psicólogo está em constante transformação, sempre buscando referenciais técnicos e éticos para dar conta de exercer uma prática profissional que assuma seu compromisso com a sociedade. Oliveira et al. (2004) apontam que uma prática voltada prioritariamente para o tratamento nos moldes da psicoterapia tradicional acaba gerando uma demanda reprimida na população que acaba não sendo atendida, e desvia o psicólogo da atuação em campos multiprofissionais e de promoção e prevenção. Embora admitam que pode e deve haver espaço para a realização da psicoterapia quando necessário, os autores evidenciam que a acomodação do profissional nestas modalidades de atendimento infringe os princípios universalistas do SUS. Para oferecer um atendimento integral e garantir a equidade de acesso ao serviços, é necessário que o profissional lance mão de técnicas mais ágeis e apropriadas para atendimento de grande volume de pacientes de forma eficaz.

A inserção do psicólogo nos aparelhos públicos de saúde exige, então, uma postura reflexiva dos profissionais a respeito de sua prática (Traverso-Yépez, 2001). É preciso empreender possíveis melhorias nos atendimentos, bem como produzir estudos que avaliem as práticas e possibilitem a replicação do conhecimento produzido através das capacitações, pontos primordiais para o avanço da inserção da Saúde Mental no Sistema (Gorayeb, Borges, & Oliveira, 2012).

 

Winnicott e seu trabalho com consultas terapêuticas

Foi por conta da reflexão a respeito das possibilidades de atuação do psicólogo inserido na UBS e da necessidade de avançar em termos de técnicas e referenciais teóricos que dessem conta de abarcar uma atuação clínica de qualidade, sem perder de vista o contexto em que estava inserida que nasceu a ideia deste trabalho. Encontrou-se no trabalho do Psicanalista Donald W. Winnicott a possibilidade de realizar uma clínica psicanalítica eficaz, sem que houvesse necessariamente um processo de análise propriamente dito. Ele foi pioneiro em mostrar que condutas terapêuticas embasadas no conhecimento da psicanálise que se mostravam eficientes no tocante a devolver seus pacientes ao rumo do desenvolvimento saudável.

Winnicott sempre deixou claro que para que estas intervenções fossem eficazes, era preciso que a família desse continuidade ao processo desencadeado pelas consultas, funcionando ela própria como um ambiente saudável, ou suficientemente bom, estável e capaz de conter ele mesmo as angústias próprias a certas fases do desenvolvimento infantil. No tratamento de Gabrielle, realizado num enquadre que Winnicott denominou Psicanálise segundo a demanda, ele considerou, em suas anotações explicitadas por Clare Winnicott no Prefácio do livro “The Piggle” (Winnicott, 1979, p. 10), que a participação dos pais e o intervalo das consultas com a criança “produziram o enfraquecimento do sentimento possessivo e deixaram caminho aberto para que o relacionamento da paciente com seus pais se desenvolvesse como parte do processo terapêutico total”. Assim sendo, a família alcançou destaque na participação do processo que conduz a criança de volta à saúde mental, e serviu como um exemplo marcante da eficácia de uma prática psicanalítica de enquadre abreviado, bastante inovadora para a época.

A família é a primeira estrutura que a criança encontra, e é no interior dela que a mesma se desenvolve rumo a relacionamentos mais complexos (Winnicott, 1988). Compreendendo a saúde individual como um estado de maturidade que se apresenta num processo, Winnicott (1983) nos aponta a família como ponto de partida para a formação do ser humano saudável, e revela que a autonomia do indivíduo só é alcançada quando se atinge esta maturidade do desenvolvimento. A “autonomia dos usuários”, pretendida pelas prerrogativas do SUS, passa portanto pelo processo de desenvolvimento dos indivíduos, e por consequência, pelo estabelecimento de relações familiares que contribuam para o amadurecimento.

Assim, cuidar da saúde mental de seus membros, a fim de que possam assegurar a continuidade do desenvolvimento da criança é primordial quando se pensa em Saúde Mental. “Quando os pais existem, e também uma estrutura doméstica e a continuidade das coisas familiares, a solução vem através da possibilidade de distinguir o que chamamos realidade e fantasia” (Winnicott, 1988, p. 77). Com Isto, Winnicott assinala que quando há uma estrutura familiar bem definida, cada membro ocupando seu lugar (pai-mãe-filho), e havendo uma segurança na continuidade e manutenção desta estrutura, os conflitos típicos da infância encontram um bom ambiente para sua solução.

Segundo Winnicott (1988), os pais e educadores das crianças podem tratar dificuldades das mesmas, quando estas apresentam resíduos da primeira infância (de dependência infantil), “pela ênfase num ou noutro aspecto da criação ou da educação” (p. 53).

Em termos de prevenção, é importante considerar que uma família que se encontra estruturada em seus papéis de pais e filhos, gera um ambiente a priori, de proteção e continência. Sendo assim, as crises que se irrompem em decorrência de qualquer evento na vida da criança, podem ser contidos e elaborados no seio da própria família, necessitando de um mínimo de intervenções externas para um manejo que devolva a criança para seu desenvolvimento saudável (Winnicott, 1988). Faz-se portanto necessária a avaliação das condições ambientais familiares para um diagnóstico completo em Saúde Mental (Lescovar, 2004) ampliando o olhar, saindo do paciente identificado, e englobando a família como um todo (Gomes & Sei, 2012).

Além disso, a conscientização dos pais a respeito da responsabilidade de seu papel na família implica considerar também variáveis ambientais que dificultam o desenvolvimento saudável de seus membros. Tais variáveis vão além da dinâmica familiar, e podem-se incluir aí as interfaces com o sistema educacional, de saúde, trabalho, cultura e posição social, aspectos estes que se evidenciam caso a caso, e levam os membros do grupo familiar a refletir para além do incômodo pessoal. Pensando em produção de Saúde Mental, é preciso fornecer aos responsáveis pelas famílias a possibilidade de escuta e interlocução com a comunidade à qual pertence, buscando construir uma prática da psicologia comprometida e engajada com a realidade social brasileira (Moreira, Romagnolli, & Neves, 2007).

A família é a primeira instância da “provisão ambiental” (Winnicott, 1965), ou seja o meio que proporcionará um desenvolvimento saudável do sujeito, que possibilita que ele atinja a maturidade, e, sendo saudável do ponto de vista psicanalítico, poderá superar a dependência da sociedade e contribuir para a “manutenção da máquina democrática” (Winnicott, 1989). Nesta perspectiva, Garcia (2011) aponta que:

Se, em uma determinada sociedade, as mães e os pais não estão conseguindo cuidar suficientemente bem de seus bebês e de suas crianças, isto irá pesar no futuro, pois uma grande porcentagem de indivíduos que serão psiquicamente doentes terá que ser sustentada pela sociedade como um todo; se os indivíduos doentes forem a maioria, a própria sociedade corre o risco de adoecer (p. 81).

Cuidar dos pais, para que eles consigam retomar seu equilíbrio emocional, possam conscientizar-se do momento de vida que a família atravessa, elaborar pontos de sua própria história que repercute em suas atuações como pais, promovendo assim o amadurecimento dos mesmos, é portanto, abrir caminho para que seus filhos encontrem referências mais saudáveis e facilitadoras de seu desenvolvimento (Motta, 2006).

Um dos papéis do psicólogo, dentro desta leitura, seria então de colaborar para que as crianças possam contar com um ambiente “suficientemente bom”. Para isso, vale lembrar que inicialmente, os pais apresentam uma “queixa” a respeito da criança que eles pretendem trazer. Esta queixa diz respeito a algo que a criança faz, expressa ou a qualquer “problema” identificado na mesma, seja pela própria família, seja pelos médicos, ou pela escola. A busca de ajuda acontece justamente porque o familiar não consegue satisfazer, ou mesmo identificar a “demanda”, ou seja a real necessidade da criança, gerando o sintoma ou levando a crer que o sintoma existe (quer dizer, observar um comportamento da criança e crer que aquilo seria sintomático). Através do encontro entre o terapeuta e os pais, pode dar-se a transformação da “queixa” em “demanda”, com a qual os pais podem iniciar o trabalho, agora munidos da compreensão da necessidade da criança e de seu papel frente a esta necessidade (Motta, 2006).

Os pais se mobilizam para buscar ajuda no atendimento psicológico quando reúnem suas esperanças na possibilidade de um encontro que proporcione a melhora dos sintomas identificados (Lescovar, 2004; Souza & Motta, 2008). Quando o trabalho com os pais tem por objetivo o acolhimento da angústia, e realiza intervenções o mais precocemente possível, isto favorece a esperança do familiar em receber algum tipo de ajuda (Barbieri, 2010; De Paulo, 2006). Não se trata de oferecer ao paciente ou pais, soluções mágicas e imediatistas, mas sim de deixá-lo perceber como o problema se instalou, e qual o caminho para minimizá-lo. Ajudar os pais a fazer essa leitura, colocando cada qual em relação ao filho em termos de agente que pode promover o desenvolvimento saudável do mesmo.

Neste sentido, as Consultas Terapêuticas de Winnicott mostram que, em detrimento de um tratamento analítico a longo prazo, é possível realizar a exploração integral das primeiras entrevistas psicológicas, sendo possível avaliar, intervir e ajudar o paciente, através da comunicação significativa de sua dificuldade, possibilitando assim, a retomada de seu desenvolvimento saudável (Winnicott, 1965). Nesta modalidade terapêutica, o enfoque não é em fazer tanto quanto possível para o paciente elaborar seus sofrimentos, mas sim o mínimo necessário para a retomada do seu desenvolvimento. O que se perde fazendo tão pouco quanto possível é balanceado por um lucro imenso de dar acesso a um vasto número de casos, para os quais a psicanálise não constitui uma proposta prática (Lescovar, 2004).

Esta modalidade mostra-se, portanto, interessante para os atendimentos prestados na UBS, visto que se deve ter em mente a necessidade do psicólogo estar acessível à população atendida. O curto tempo (de 1 a 3 atendimentos) despendido para que o paciente se beneficie da consulta terapêutica possibilita maior fluxo de entrada no serviço, ampliando a ajuda para a comunidade onde o psicólogo está inserido. Contudo, visto que esta modalidade terapêutica está restrita à condição de que haja uma provisão ambiental que possibilite à criança ter esperança de um encontro humano que venha em seu auxílio, faz-se importante ajudar os pais a entrar e permanecer em condição de dar acesso a esta provisão ambiental, garantindo a eficácia da intervenção.

Este estudo, portanto, vai fazer uma leitura da possibilidade de se realizar promoção de saúde e prevenção de doenças, assegurando um espaço de contato entre as famílias, buscando valorizar o lugar de pai e mãe, enquanto intervenção psicológica possível em uma UBS.

 

MÉTODO

O modelo proposto consistiu em iniciar o atendimento com a responsável pela criança, no caso a mãe, e realizar as primeiras entrevistas não somente como levantamento de queixas, anamnese e avaliação, mas como Consultas Terapêuticas (Souza & Motta, 2008; Souza & Tardivo, 2008; Winnicott, 1965). Assim, um dos objetivos das primeiras entrevistas foi alcançar no encontro com o sujeito, uma comunicação significativa e a possibilidade de intervenção e retomada do desenvolvimento.

Para viabilizar a análise dos dados coletados e levantar possíveis resultados da intervenção, as queixas iniciais trazidas pela mãe, assim como as demandas observada no caso foram circunscritas logo no primeiro encontro e usadas para comparar o efeito das intervenções na modificação ou permanência das queixas e demandas.

Após a primeira consulta, deu-se seguimento ao caso com a inserção da mãe em grupo de pais (foi feito também, através da mãe o convite ao padrasto da criança), o qual tem por objetivo refletir sobre o desenvolvimento das crianças, eventuais entraves, e a função da família, no suporte à criança. Pela possibilidade de compartilhar suas dificuldades e dividir suas experiências com outras famílias, intencionou-se que a situação grupal servisse como um ambiente de acolhimento e de espaço potencial para o nascimento de uma ação criativa no seio das famílias (Medeiros, 2003).

Cada encontro funcionou ao mesmo tempo como diagnóstico e intervenção, e foi possível aprofundar dados da anamnese, avaliar aspectos que porventura não foram levantados na primeira entrevista, além de realizar intervenções pertinentes e investigar os resultados das intervenções já realizadas.

O conteúdo das consultas foi analisado de forma qualitativa, de acordo com Turato (2008), e foram extraídas dos atendimentos vinhetas que ilustraram a discussão. A análise buscou explicitar possíveis transformações na postura e na compreensão da mãe em relação às queixas e demandas inicialmente circunscritas. Pretende-se também, por meio da análise dos dados, compreender se as consultas favoreceram a construção de uma postura mais saudável e madura da família.

 

DISCUSSÃO DO CASO

Para ilustrar um atendimento realizado neste modelo, traremos para discussão um caso, no qual o atendimento às demandas da criança deu-se através das consultas com a mãe. Os nomes foram trocados para se preservar a identidade dos sujeitos.

Irene, mãe de Vinícius, de 6 anos, buscou atendimento para o mesmo, queixosa de que o filho “não compreende o meu sistema” (sic mãe). Ela deseja que ele a entenda e obedeça. Mãe acredita que isto acontece porque ele teve um convívio próximo dela apenas até 1 ano de idade. Após esta idade, a criança ficou sob os cuidados da tia avó da criança, que já morava com a família, para que a mãe pudesse trabalhar na capital do estado onde moravam, uma cidade grande, que oferecia melhores oportunidades de emprego. O pai da criança nunca esteve presente na vida do mesmo, e não chegou a registrá-lo em seu nome. Esta é uma realidade bastante frequente nos casos que chegam para atendimento neste território. São famílias que migram de estados pobres do país, e vêm para esta região a procura de oportunidades de emprego. Mães jovens que muitas vezes não tinham um relacionamento estável com os pais dos seus filhos, e que precisaram contar com o suporte de outros familiares até poderem assegurar, elas mesmas os cuidados das crianças. Por 4 anos, desde a mudança de Irene para a capital, Vinícius a via por um final de semana, a cada 2 ou 3 meses. Quando completou 5 anos, a mãe e seu atual marido mudaram-se para o estado de São Paulo, para a cidade onde então moraram por 10 meses antes de trazer Vinícius para junto deles. Durante estes 10 meses, mãe e filho se falaram apenas ao telefone. Mãe tinha ido buscá-lo há três meses, e desde então passou a viver com seu padrasto sua irmãzinha, à época com um ano e meio.

A mãe relatou que antes que ele viesse morar com ela, ele já havia apresentado algumas dificuldades. Era desobediente, respondia mal à tia avó, enfrentando, retrucando. Teve problemas de adaptação quando entrou na escola. Aqui, desobecede o padrasto, que “não briga com ele” (sic mãe), pois “diz que não quer se meter” (sic mãe). Ela própria determinou que o padrasto não interferiria na educação de seu filho. Vinícius tinha um bom relacionamento com a irmã, com quem brincava e era carinhoso. Mãe dizia: “o problema é só comigo”. Neste primeiro atendimento foram realizadas intervenções no sentido de ajudar a mãe a retomar e entender a história da família, e o momento no qual se encontram, a fim de esclarecer qual o papel de cada membro na atual configuração familiar. Procurou-se ajudar a mãe a postar-se diante do filho, a quem deve conhecer e reconhecer como um sujeito, e não como um objeto submetido ao seu desejo (quer um filho “obediente”). A falta de intimidade entre os dois ficou evidente, pois com o relato da mãe precebeu-se que não havia momentos descontraídos, onde podia surgir o gesto espontâneo e livre de ambos, e a possibilidade de se reconhecerem mutuamente. Quanto ao padrasto, a este era reservado o lugar de espectador, enquanto a criança possivelmente revivia, na relação com o mesmo, a relação com o pai que esteve toda a vida ausente. Foi preciso alertar a mãe sobre sua postura, a fim de que ela pudesse resgatar-se enquanto mãe que se produz mãe na relação mãe e filho, (sujeito-sujeito) e nada melhor do que buscar no brincar o espaço potencial para que isto pudesse acontecer (foi dito à mãe os benefícios que ela poderia ter ao brincar com seu filho). Fez-se urgente também instituir o lugar do pai (padrasto) nessa família, para a criança conseguir se situar em seu lugar. Um pai presente, que introduziria a Lei, permitindo ao filho segui-la e sentir-se integrado àquela família. Naquele momento, precisou-se sinalizar à mãe que era preciso aceitar que padrasto e filho pudessem ter uma relação própria, e que ela pudesse sustentar o fato de que desta relação dependeria o desenvolvimento saudável da criança e que ela necessariamente teria que permitir-se ser, às vezes “excluída”, confiando na capacidade de cuidar e proteger de seu marido.

Recontar à Irene a história da família, introduzindo elementos de ordem econômica e social, que estão fora do controle da mãe possibilitou que esta pudesse lidar com seu sentimento de culpa, o que possivelmente traria benefícios na relação da mesma com a criança, diminuindo e afrouxando as defesas através das quais se dava a relação com o filho.

Com a introdução destes elementos, e também ao se fazer uma breve análise do relacionamento da criança com sua tia-avó (que também não pode ser para ele um Outro que lhe desse continência), e sugerindo-se a participação do padrasto na criação de seu filho, buscou-se diminuir a ilusão de onipotência na qual a mãe se encontrava, e que acabavam por suscitar sentimentos persecutórios (alimentados pela culpa), que a mãe revelava ao perceber que “o problema é só comigo”.

Em seu livro “Conversando com os pais” (1993), Winnicott formula que é um insulto doutrinar pessoas. Devemos “apreender as coisas comuns que as pessoas fazem e ajudá-las a compreender porque é que as fazem” (Winnicott, 1993, p. 3). Ele era a favor de se discuir com os pais o gênero de problemas que enfrentam, o tipo de coisa que fazem e o que podem esperar de suas ações, mas não dizer-lhes o que fazer.

O segundo atendimento a este caso foi realizado com a mãe, em situação de grupo de pais, e um mês após a primeira consulta. Fizeram parte deste encontro além da psicóloga e de Irene, também outros sete pais e mães de crianças que haviam buscado atendimento psicológico. O grupo foi iniciado com a fala da psicóloga relembrando o objetivo do mesmo, e em seguida perguntando se alguém gostaria de falar, caso tenha vindo com alguma questão, ou tenha algo que gostaria de comentar.

A primeira a se pronunciar foi a mãe de Vinícius, que disse: “depois que vim aqui da primeira vez, ele se adaptou melhor. Está me obedecendo mais, chamo uma vez só e ele já vem da rua”. Foi pedido que ela contasse um pouco sobre Vinícius para os outros pais. Ela relatou que ele não morou a vida toda com ela, e que chegou agora de sua cidade natal, que “andava muito rebelde, respondão” (sic mãe), não queria obedecer. Acrescentou ainda que contou uma mentirinha para ele, que acha que ajudou: aproveitando-se da curiosidade do menino sobre o avião que ele viu passar, ela inventou que “o avião levava os meninos levados, e que se ele não se comportasse bem, ia chamar o avião para levar ele!” (sic mãe). Mãe riu com a mão no rosto, como quem fica envergonhada. Todos no grupo também riram, inclusive a psicóloga. O clima no grupo era descontraído, e a mãe mostrou sentir-se à vontade. A seguir, a fala da psicóloga foi sobre as várias mentirinhas que por vezes se conta para as crianças, como a do “homem do saco” que leva criança que fica na rua, da injeção que eles vão levar se não obedecerem, etc... E sobre como este parece ser o caminho mais fácil para fazer a criança obedecer. Então, alerto que com isto, assumimos o risco de a criança nos testar, e nos “pegar” na mentira, o que pode gerar na criança a suspeita de que não somos confiáveis. Além do que a criança passaria a acreditar que seus cuidadores não podem impedí-las de fazerem o que querem, e precisam recorrer a fatores externos e alheios à nossa vontade para “convencê-las”. O medo do avião levá-lo embora podia funcionar no início, mas não se sustentaria, pois cedo ou terde ele desobedeceria, e não viria avião nenhum pegá-lo. Era uma mentirinha arriscada. Ela segue contando que ele tem estado mais obediente, o que me faz tender a acreditar que para ela, a “mentirinha mágica” funcionou. Lembro-a então que na primeira entrevista ela me passou uma imagem de que o marido havia desistido de tentar investir na educação de Vinícius, e se via “de fora” da relação familiar. Pergunto a Irene se ela chegou a conversar com o marido a respeito da primeira consulta. Ela disse que sim, e que inclusive ele passou a falar mais com o menino, e que “basta uma palavra que ele já obedece”. Ela segue: “têm saído mais para passear também, passam mais tempo juntos, soltam pipa”(sic). Aponto que a mudança que se percebeu na criança deve ter sido muito mais o efeito da chegada de uma figura paterna na vida dele, do que a questão do avião. Mãe reforça que em casa ele tem estado realmente mais tranquilo, e que “entrou em seu ritmo” (sic mãe). Contudo, refere que na escola ele se recusa a fazer a tarefa, e diz à mãe que não faz porque não quer. A intervenção da psicóloga buscou mostrar que era provável que na medida em que ele percebesse que aqueles que ditam as regras (e não o avião sequestrador) exigiam que ele fizesse a tarefa, ele talvez deixasse de se opor. Por isso, reiterou também a importância de se passar um tempo de qualidade com a criança, jogando, brincando, onde fosse permitido este tipo de “confronto” de forma saudável.

Neste grupo de pais foram discutidos várias outras questões, como o manejo de birras, a importância da unidade do discurso de ambos os pais, além do reposicionamento dos pais em relação aos filhos, quando os mesmos mostravam alguma distorção em relação à criança e à sua fase de desenvolvimento. Finalizando o grupo, foi pedido para Irene voltar para o grupo, e se possível trazer o padrasto de Vinícius. Ela concordou. Foi dito também que, caso necessário, a criança seria trazida para avaliação, mas que até o momento, a mãe e o padrasto estavam indo muito bem no trato das dificuldades de Vinícius.

A mãe foi para um segundo grupo de pais, após três semanas de intervalo e em sua fala, evidenciou-se que está presente a harmonia no lar de Vinícius. Mãe e filho estão se dando bem, assim como está a relação entre os demais membros. Os eventuais entraves relacionados à “preguiça de estudar” (sic mãe) estão sendo adequadamente manejados pela mãe e padrasto. Ao final deste grupo, mãe refere que não sente mais a necessidade de ajuda, de forma que despedimo-nos, e deixo-me à disposição para eventuais necessidades futuras.

 

DISCUSSÃO

No caso explicitado, constatou-se que a principal queixa inicial (“ele não compreende meu sistema”) havia desaparecido entre a primeira e a segunda consulta, na medida em que provavelmente a família se posicionou de forma a atender a real demanda da criança. Souza e Tardivo (2008) afirmam que é possível nas entrevistas iniciais, empreender um um ambiente acolhedor e continente, conduzindo-as “como momento de reflexão, atendimento, e se possível, elaboração e promoção de possíveis mudanças, dentro de uma abordagem psicanalítica”, considerando que as fases de diagnóstico e intervenção caminham juntas.

Motta (2006, 2008) ressalta que a capacidade dos pais de se sentirem preocupados e responsáveis, alidada ao desejo de efetuar reparações que favoreçam a retomada do desenvolvimento do filho, permitem aos pais engajarem-se no tratamento dos mesmos. Desta forma, tem-se que é possível auxiliar a família de maneira abreviada. Quando, no entanto, os pais dão indícios de uma incapacidade para depressão, tem-se uma restrição significativada da capacidade dos mesmos para auxiliar no processo terapêutico. Nestes casos, o trabalho psicoterápico breve tende ao fracasso ou a resultados bastante limitados. Esta capacidade para a depressão é apontada portanto, como uma condição mental que deve estar previamente presente, para que se possa indicar o trabalho terapêutico breve. O que se presenciou no caso em discussão foi a presença de uma mãe capaz de responsabilizar-se pelos cuidados do filho. Embora houvesse uma distorção por parte da mesma, devido às fantasias de onipotência, pode-se inferir que havia também um lado saudável da mãe que percebia a necessidade de ajuda. Foi neste momento, em que a mãe considerou que poderia obter tal ajuda, que ela buscou uma consulta com o psicólogo.

É possível considerar que havia uma diversidade de material que poderia continuar a ser desenvolvido neste caso, que talvez pudesse ser enquadrado em psicoterapia a médio ou longo prazo. Contudo, desaparecida a queixa da mãe, atendidas as necessidades da criança e levando-se em conta que não havia indícios de características psicopatológicas ou desajustes graves nos relatos, indicou-se a alta. Outras famílias puderam então utilizar-se deste espaço e tempo de encontro com a psicóloga da UBS. Do ponto de vista da adaptação da criança à sua nova realidade, mostrou-se que muito foi feito para ajudá-la. Sentindo-se mais livre, a relação da mãe com o filho melhorou, e a harmonia entre criança, mãe e padrasto foi conquistada. Na prática, o trabalho de integração da criança na família foi realizado pela própria família, sem a intervenção direta da psicóloga na vida da criança. Sendo assim, a confiança que a família tem em seu poder “curativo” foi preservado. Além disso, as consultas realizadas com a mãe possibilitaram a construção de um espaço potencial, de onde surgiu uma comunicação significativa, da angústia desta mãe que estava deslocada de seu lugar na relação com seu filho e rivalizando com seu marido, infeliz, em meio a fantasias e culpas que a engessavam. A possibilidade de comunicar e sentir-se compreendida e amparada, possibilitou à mãe a recobrada dos rumos de seu desenvolvimento e devolveu-a a liberdade de atuar como mãe.

Esta proposta de trabalho possibilitou a circulação de maior número de casos, sem que as famílias ficassem no aguardo para iniciar atendimentos individuais em filas de esperas enormes. Ainda, funcionou como uma continuação da triagem, com propósito de avaliar ao longo dos encontros a real gravidade dos casos, e a necessidade de auxílio através de outros serviços da rede.

A partir desta experiência, a família passou a saber que há na Unidade de Saúde próxima à sua casa a possibilidade de encontro e de experiência viva. Tornando o acesso às famílias fácil e rápido, “a portas abertas”, nos tornamos a provisão ambiental necessária, às vezes para a criança, às vezes para seus pais, que adquirem a confiança num serviço prestado de forma humanitária e, assim se pretende, eficaz.

 

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Recebido em 9 de Dezembro de 2013/ Aceite em 20 de Março de 2014