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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.17 no.1 Lisboa abr. 2016

https://doi.org/10.15309/16psd170105 

Trauma e religião: um modelo de adaptação psicológica baseado no coping religioso

Trauma and religion: a psychological adaptation model based on religious coping abstract

Catherina Jönsson*, & Leonor Lencastre*

 

*Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Universidade do Porto

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

Em geral os modelos de stresse traumático atribuem a causa dos sintomas traumáticos à violação das crenças acerca do mundo e de si próprio. Uma forma eficaz de restaurar essas crenças é reavaliar o significado do acontecimento traumático de uma forma mais positiva através de um processo conhecido por construção de significado. A religião pode ser uma ajuda nesse processo ao oferecer crenças que poderão levar à compreensão do sofrimento. Alguns estudos empíricos concluem, no entanto, que o recurso à religião nem sempre leva a resultados psicológicos positivos, o que nos deixa sem saber se os recursos religiosos são realmente eficazes para lidar com os acontecimentos traumáticos. Para compreendermos a forma como a religião pode levar a resultados psicológicos negativos, estudos recentes apontam para a necessidade de analisar o conteúdo específico das crenças religiosas. Na realidade as crenças específicas acerca do porquê do sofrimento humano, as chamadas teodiceias, têm sido surpreendentemente ignoradas. Este artigo pretende portanto: 1) rever a literatura acerca destas crenças religiosas específicas, e descrever o seu papel na atribuição do significado dos acontecimentos traumáticos, 2) descrever como as teodiceias podem interagir com outras crenças do mundo e de nós próprios para se compreender as diferenças individuais nas respostas de coping, e 3) propor um modelo de adaptação psicológica baseado no coping religioso que reflete a forma como a religião influencia o processo de construção de significado

Palavras-chave: teodiceias; trauma; coping religioso; construção do significado; adaptação psicológica

 

ABSTRACT

Many models of traumatic stress are today focusing on the role of world and self beliefs as a cause of trauma symptoms. A way of restoring these beliefs is by positively re-appraising the meaning of the traumatic event through a process known as meaning-making coping. Religion can help in this process by providing beliefs that help in the understanding of suffering. However, empirical research has concluded that religion doesn't always lead to positive psychological outcomes, leaving us to question whether someone is better off or not using their religious resources to cope with traumatic events. In order to understand how religion can also lead to negative psychological outcomes, recent studies have suggested looking at the specific content of religious beliefs as they may shape the cognitive process including the perception of stress. Specific religious beliefs regarding the reasons for suffering; theodicies are one set of beliefs that has been surprisingly ignored. This paper therefore: 1) synthesizes the literature regarding theodicies by describing their role in the process of attributing meaning to a traumatic event, 2) describes how theodicies can interact with other beliefs we hold about the world and ourselves and how this may lead to individual differences in the coping response, and 3) proposes a psychological adaptation model based on religious coping which reflects the way that religion is used within the meaning-making process

Keywords: theodicies; trauma; religious coping; meaning-making; psychological adaptation

 

A maioria das pessoas, em algum momento da vida, irão passar por uma experiencia traumática. Uma doença crónica, a morte de um familiar, abuso sexual ou até uma traição de um amigo, podem desafiar as crenças que temos de um mundo benevolente e previsível, e de sermos competentes e dignos (Janoff-Bulman, 1989). Estas crenças que temos acerca do mundo e de nós próprios são esquemas cognitivos fundamentais, que por serem tendencialmente otimistas (Taylor & Brown, 1994), sustentam a ilusão de invulnerabilidade, uma crença que “só acontece aos outros”. Por esta razão, no contexto de um evento traumático, se estas crenças forem violadas ou desafiadas, o individuo poderá sofrer de sintomas traumáticos (Park & Slattery, 2015).

Estudos empíricos sugerem que uma forma eficaz de restaurar estas crenças é reavaliar o significado do evento traumático de uma forma mais positiva (Park & Folkman, 1997). Uma reavaliação é a criação de uma nova perspetiva mais positiva de um evento traumático que serve para reduzir a ameaça de uma primeira avaliação negativa da situação. Esta nova perspetiva é baseada numa atribuição, ou reatribuição, acerca do porquê do evento ter ocorrido e de quem, ou o quê, é responsável por ela. Esta procura e descoberta de uma reavaliação mais positiva pode ajudar os indivíduos a fazerem sentido da sua experiência traumática (Baumeister, 1991) e está positivamente associada a indicadores de adaptação (Harvey, Orbuch, Chwalisz, & Garwood, 1991).

Quando a construção do significado se torna central na forma de lidar com um evento traumático, a religião parece ter um papel importante. A religião foi definida por Pargament (1997) como “uma forma sagrada de procurar o significado” e tem sido reconhecida como formando uma grande parte do nosso sistema de significado global devido à sua capacidade de oferecer um entendimento sobre o mundo, sobre nós próprios, e mais especificamente, sobre o sofrimento e a perda (Kotarba, 1983). Muitas das tradições religiosas fornecem também uma variedade de atribuições causais que podem influenciar não só as avaliações iniciais que se fazem de um evento traumático, mas que podem também facilitar a criação de reavaliações mais positivas.

Uma estratégia de coping que usa a religião para a construção do significado denomina-se por coping religioso. O coping religioso é a utilização de crenças e práticas religiosas para lidar com eventos difíceis da vida (Pargament, 1997). Existem duas formas fundamentais de coping religioso:1) o coping religioso positivo que envolve uma relação segura com Deus e que tende a produzir avaliações positivas influenciadas pela crença num Deus benevolente e poderoso; e 2) o coping religioso negativo que envolve uma luta espiritual e que tende a produzir avaliações negativas influenciadas pela crença num Deus punitivo e impotente.

Uma meta-análise de Ano e Vasconcelles (2005) sugere a eficácia do coping religioso em geral, positivo e negativo, estando principalmente relacionado com resultados psicológicos positivos. Existem estudos empíricos, contudo, que demonstram que o coping religioso positivo pode levar a resultados psicológicos negativos (Pargament, Smith, Koenig, & Perez, 1998; Thompson & Vardman, 1997). Ainda mais surpreendentes são estudos empíricos que demonstram que o coping religioso negativo pode levar a resultados psicológicos positivos (Koenig, Pargament, & Nielsen, 1998; Pargament, et al., 1999; Pargament, Koenig, & Perez, 2000; Smith, Pargament, Brant, & Oliver, 2000). Estes estudos apontam para duas questões chave de investigação: 1) Como é que o coping religioso positivo leva a resultados psicológicos negativos?e 2) Como é que o coping religioso negativo leva a resultados psicológicos positivos?.

Em 2010, Newton e McIntosh chamaram atenção de quepara além da existência de crenças religiosas no processo de coping, o seu conteúdo específico também é relevante. No entanto, ainda existem poucos estudos sobre o papel das crenças religiosas específicas no processo de coping, designadamente as chamadas teodiceias: crenças religiosas acerca das razões para o sofrimento humano (Hale-Smith, 2012).

A secção seguinte revê, portanto, a literatura existente sobre teodiceias. Na terceira secção introduzimosum modelo de construção de significado e a quarta secção fazuma proposta teórica sobre a interação das teodiceias com outras crenças, designadamente acerca do mundo e de nós próprios. A quinta e última secção traduz a proposta teóricanum modelo de adaptação psicológica baseado no coping religioso.

 

Teodiceias

O termo teodiceia foicunhado em 1710 pelo filósofo e matemático alemão Gottfried Leibniz como umajustificação para a existência de um Deus bondoso num mundo onde existe maldade e sofrimento. Oferece assim uma estrutura a partir da qual o indivíduo pode manifestar a sua crença em Deus apesar da existência do mal e do sofrimento, bem como uma justificação para essa existência.

No Cristianismo existem quatro categorias de teodiceias clássicas, ou seja, as formas principais da tradição Cristã percecionar o sofrimento: 1) a teoria da privação, 2) a teoria da comprovação, 3) a abordagem da teologia processual, e 4) a abordagem existencial (Sulmasy, 1999). A teoria da privação é baseada num conjunto de teodiceias que afirmam um Deus bondoso e pressupõem a maldade como um afastamento de Deus devido ao livre arbítrio que ele nos concedeu. A maldade não é assim causada por Deus mas sim por nós, e o sofrimento é portanto a consequência dos nossos pecados. A teoria da comprovação é baseada num conjunto de teodiceias que afirmam um Deus bondoso e o sofrimento como uma oportunidade para aprender uma lição e escolher livremente amar a Deus. A abordagem da teologia processual é baseada num conjunto de teodiceias que afirmam que Deus não é todo-poderoso e por isso não consegue proibir a maldade e o sofrimento do mundo, mas acompanha-nos ao longo do nosso sofrimento. Finalmente, a abordagem existencial é baseada num conjunto de teodiceias que afirmam que a maldade é um mistério que não pode ser explicado, sendo uma experiência que permite aprender a viver com questões sem resposta.

O fato de existirem dentro da mesma tradição religiosa várias estruturas de teodiceias, umas mais positivas que outras, significa que duas pessoas cristãs podem fazer interpretações diferentes do significado de um mesmo evento traumático. Apesar de as teodiceias serem reconhecidas pelos académicos como importantes na atribuição de significado a eventos traumáticos, designadamente em contexto clínico (Furnham & Brown, 1992; Hall & Johnson, 2001), ainda existem muito poucos estudos empíricos sobre a sua influência no processo do coping.

Taylor (1983), por exemplo, descobriu que os indivíduos que detinham teodiceias baseadas na teoria da comprovação mais positivascomo “Deus não me daria mais do que eu poderia aguentar”, foram capazes de lidar melhor com a sua doença em comparação com os indivíduos que detinham teodiceias baseadas na teoria da privação mais negativas como “Isto é um castigo de Deus”. Furnham e Brown (1992) também descobriram que os indivíduos que detinham teodiceias mais positivas interpretaram o evento traumático como sendo menos angustiante, em comparação com indivíduos que detinham teodiceias mais negativas.

Lloyd (1996) refere que as teodiceias associadas à adaptação psicológica em contexto de luto são baseadas na teoria da comprovação. Moschella, Pressman, Pressman, e Weissman, (1997) referem que, em contexto oncológico, as teodiceias baseadas na abordagem existencial são as que mais ajudam e intensificam as suas crenças e práticas religiosas. Musick (2000) refere que as teodiceias baseadas na teoria da privaçãoestão relacionadas com níveis mais baixos de satisfação com a vida. Finalmente, Tausch et al. (2011), referem que as teodiceias baseadas na teoria da comprovação são as que mais ajudam a lidar com os efeitos dos furacões nos EUA.

Estes estudos parecem demonstrar que as teodiceias podem influenciar o processo do coping a nível das atribuições de significado a situações traumáticas. Demonstram igualmente que as teodiceias positivas levam a avaliações de significado positivas e a resultados psicológicos positivos, enquanto as teodiceias negativas levam a avaliações de significado negativas e a resultados psicológicos negativos. Isto pode explicar em parte como o coping religioso em geral, positivo e negativo, pode levar a resultados positivos e negativos, respetivamente. No entanto, o coping religioso positivo também pode levar a resultados psicológicos negativos e o coping religioso negativo pode levar a resultados psicológicos positivos (Koenig et al., 1998; Pargament et al., 1998; 1999; 2000; Smith, Pargament, Brant, & Oliver, 2000; Thompson & Vardman, 1997). Para isso, teremos de examinar com maiorprofundidadeo processo de construção de significado e compreender a interação entre as teodiceias e outras crenças. A secção seguinte revê, por isso, o modelo de construção de significado de Park e Folkman (1997).

 

O Meaning Making Model de Park e Folkman

O Meaning Making Model de Park e Folkman (1997) é um modelo que descreve o processo de construção de significado. É uma versão alargada do modelo de Stress e Coping de Lazarus e Folkman (1984), ajustado para estudar a adaptação psicológica em casos de trauma e de perda. Estes casos correspondem a eventos que tipicamente não respondem a estratégias de coping baseadas na resolução do problema ou na redução de emoções negativas.

O modelo distingue entre dois níveis de significado: o significado global e o significado situacional. O significado global inclui as nossas crenças acerca do mundo e de nós próprios. O significado situacional refere-se à avaliação de um evento traumático como sendo uma ameaça, uma perda ou um desafio, e também às atribuições de causalidade do evento. A discrepância entre o significado situacional e o significado global é que leva o indivíduo a experienciar estresse. Para reduzir ostresse, será necessário adotar uma estratégia de coping baseada na construção de significado, mudando a avaliação do significado situacional, global ou ambos.

 

Proposta Teórica

O Meaning Making Model (Park & Folkman, 1997) destaca o papel central das crenças no coping em geral. Em particular, sublinha a influência das crenças acerca do mundo e de nós próprios na percepção do estresse, enquanto crenças pertencentes ao sistema de significado global. De igual modo, podemos dizer que as teodiceias também pertencem ao sistema de significado global.

Existem assim três crenças diferentes que influenciam o processo do coping: 1) as crenças do mundo, 2) as crenças de nós próprios, e 3) as crenças religiosas. Em particular, as teodiceias interagem com as crenças acerca do mundo e de nós próprios fortalecendo ou enfraquecendo a influênciadas teodiceiasna construção de significado.

Um indivíduo que detenha uma teodiceia positiva, mas uma crença negativa acerca de si próprio, por exemplo, poderá experienciar um enfraquecimento da natureza protetora da teodiceia positiva e ter dificuldades em atribuir um significado positivo ao evento traumático. Isto descreveria como o coping religioso positivo poderá levar a resultados negativos.

Por outro lado, um indivíduo que detenhauma teodiceia negativa mas uma crença positiva acerca de si próprio, poderá experienciar um enfraquecimento da teodiceia negativa permitindoadescoberta de um significado positivo. Isto descreveria como o coping religioso negativo poderá levar a resultado psicológicos positivos. A secção seguinte propõe, por isso, um modelo de adaptação psicológica baseado no coping religioso.

 

Modelo de Adaptação Psicológica baseado no Coping Religioso

Dado que o modelo de construção de significado de Park e Folkman (1997) é um modelo global, propomos um modelo com um enfoque nas crenças religiosas. Em particular, sugerimos que a interação entre crenças religiosas, do mundo e de nós próprios é determinante na avaliação situacional, e também na estratégia específica de construção de significado. Pensamos que o coping religiosopode facilitar as reavaliações e atribuições que poderão levar a uma melhor adaptação psicológica.

Assim, em contexto de um evento traumático, a avaliação situacional e o resultante grau de discrepância entre esta avaliação e o significado global, dependerá do conteúdo específico das teodiceias, das crenças do mundo e das crenças de nós próprios. A adaptação psicológica será facilitada nos seguintes casos: 1) quando uma teodiceia positiva interagir com outras crenças positivas acerca do mundo e de nós próprios. Nestes casos será adotada uma estratégia de coping religioso positivo que leva à reavaliação mais positiva do significado do eventoe, 2) quando uma teodiceia negativa interagir com outras crenças positivas acerca do mundo e de nós próprios. Nestes casos a influência da teodiceia negativa será enfraquecida pelas outras crenças positivas e será adotadauma estratégia de coping religioso positivo que leva à reavaliação mais positiva do significado do evento (fig. 1).

A adaptação psicológica será dificultada nos seguintes casos: 1) quando uma teodiceia negativa interagir com outras crenças negativas acerca do mundo e de nós próprios. Nestes casos será adotada uma estratégia de coping religioso negativo não permitindo assim fazer uma reavaliação mais positiva do significado do evento e, 2) quando uma teodiceia positiva interagir com outras crenças negativas acerca do mundo e de nós próprios. Nestes casos a influência da teodiceia positiva será enfraquecida pelas outras crenças negativas e será adotada uma estratégia de coping religioso negativo não permitindo assimfazer uma reavaliação mais positiva do significado do evento.

 

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Endereço para Correspondência

Rua Alfredo Allen, 4200-135, Porto, Portugal. Email:catherina.m.m.jonsson@gmail.com

 

Recebido em 25 de Setembro de 2015

Aceite em 02 de Outubro de 2015

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