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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.18 no.1 Lisboa abr. 2017

https://doi.org/10.15309/17psd180120 

Gestação de substituição: aspetos psicológicos-uma revisão da literatura

Surrogacy for infertility:psychological aspects - a review of the literature

Joana Gouveia1,3, Ana Galhardo1,2,4, Marina Cunha1,2,5, & Margarida Couto1,6

 

1Departamento de Psicologia, Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal.

2CINEICC - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.

3E-mail: joanapereiragouveiaa@gmail.com;

4 E-mail: anagalhardo@ismt.pt;

5 E-mail: marina_cunha@ismt.pt;

6 E-mail: margaridacouto@ismt.pt

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

A infertilidade é definida como uma condição médica com repercussões no bem-estar físico, psicológico e social. Avanços na medicina da reprodução têm possibilitado a muitos casais a concretização da parentalidade. Diversos tratamentos médicos e o recurso a gâmetas de dador ou embriões doados, constituem desenvolvimentos para a resolução de casos de infertilidade. Ainda assim, os casais que apresentam ausência de útero, malformações ou doença uterina veem-se impossibilitados de experienciar uma gravidez. A gestação de substituição poderia dar resposta à condição de infertilidade. Contudo, esta é uma prática que gera controvérsia, não sendo permitida em muitos países.

O objetivo desta revisão é providenciar um corpo de conhecimento organizado em função dos resultados de estudos que procuraram explorar aspectos psicológicos relacionados com a gestação de substituição. Em concreto, foram analisados estudos que abordaram a adaptação marital, a revelação da forma de concepção, o bem-estar físico e psicológico do casal e da criança, o contacto com a gestante de substituição, e a adaptação à parentalidade.

Foram examinados 10 estudos longitudinais, com os principais resultados: a gestação de substituição é considerada “uma experiência positiva”, os casais beneficiários aparentam ter um bom funcionamento conjugal, a revelação da forma de conceção tende a ser iniciada precocemente, o contacto com a gestante de substituição é mantido, os casais apresentam menor stresse e maior bem-estar físico e psicológico ao longo da gestação, e a adaptação à parentalidade até aos três anos apresenta um valor superior às demais formas de conceção.

Palavras-Chave: infertilidade, gestação de substituição, aspetos psicológicos

 

ABSTRACT

Infertility is defined as a clinical condition with repercussions on the physical, psychological and social wellbeing. Progresses in reproductive medicine have been enabling infertile couples to achieve parenthood. In this context, medical treatments and the use of donor gametes or donated embryos are important developments for the resolution of many infertility cases. Nevertheless, for several reasons and due to the reasonably low success rate of such treatments, there are couples who face greater difficulties. Among these are those which in the absence of a uterus, uterine malformations or disease find themselves unable to experience a pregnancy. In these circumstances surrogacy is the only chance to solve their infertility. However, this practice generates controversy, objections, and questions and is prohibited in most European countries.

The objective of this review is to provide a body of knowledge based on results from studies that sought out to explore psychological aspects of surrogacy. Studies were analysed considering surrogacy as a solution for infertility, marital adjustment, disclosure to the child, physical and psychological well-being of the beneficiary couple and child, contact with the surrogate, and adjustment to parenting.

Ten longitudinal studies were examined, with the following main results: surrogacy is considered a "positive experience", all beneficiaries couples show a good marital relationship, disclosure intends to occur at an early age, contact with the surrogate is held, beneficiaries couples show less stress and greater physical and psychological well-being during pregnancy, and adjustment to parenthood is higher until the child is 3 years old.

Keywords: infertility, surrogate, psychological aspects

 

Desde 1986 que a Fertilização In Vitro (FIV) é praticada em Portugal, contudo, só recentemente se tem observado um maior interesse pela realização de estudos na área da psicologia relacionados com o recurso às técnicas de procriação medicamente assistida. Do ponto de vista legal, a oficialização da Procriação Medicamente Assistida (PMA) pela Assembleia da República ocorreu a 26 de Julho de 2006, com a lei nº32/2006. Ainda assim, neste enquadramento legal o recurso à maternidade de substituição ou gestação de substituição não foi promulgado e este continua a ser um tema em debate parlamentar. O Conselho Nacional de Ética para as Ciências Vida (CNECV), em 2012, aborda esta mesma questão salientando a importância do esclarecimento dos seguintes conceitos: maternidade – “estado ou qualidade de mãe (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2013); e gestação – “tempo que medeia entre a conceção e o parto, gravidez” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2013). Apesar do conceito consagrado no decreto de lei nº32/2006, ponto 8, ser maternidade de substituição, este poderá ser “indiciador de equívocos e ambiguidades éticas e antropológicas”, uma vez que na maternidade existe um vínculo jurídico, responsável por direitos e deveres da mulher enquanto mãe e o seu filho (CNECV, 2012, p.8). Deste modo, o CNECV propõe a adoção dos constructos gestação de substituição e gestante de substituição que, objetivamente, traduzem o processo e o fim a que se destinam – “transferência/implantação uterina do embrião humano e eventual parto no fim da gravidez evolutiva” (CNECV, 2012, p. 8). Na presente revisão da literatura será esta a terminologia adotada.

A infertilidade conjugal é definida pelo International Committee for Monitoring Assisted Reproductive Technology e pela Organização Mundial de Saúde como “uma doença do sistema reprodutor definida pela incapacidade de alcançar uma gravidez clínica após 12 meses ou mais de relações sexuais desprotegidas” (Zegers-Hochschild et al., 2009, p.2687).

Uma outra definição aponta a infertilidade como uma “doença de carácter clínico pelas alterações causadas no bem-estar físico, psicológico e social dos intervenientes” (Oliveira, Granja, & Sousa, 2013, p. 5). A Organização Mundial de Saúde define-a como a “ausência de gravidez após 24 meses de relações sexuais regulares e desprotegidas”, sendo que demograficamente é observada como a “incapacidade de uma mulher com relações sexuais desprotegidas ter um nado-vivo” (Larsen, 2005, p. 846).

Atendendo aos dados disponibilizados pela Direção Geral de Saúde, Almeida-Santos e Moura-Ramos (2010) referem que 30-40 % dos diagnósticos de infertilidade são de causa feminina, 30-55% apresentam uma causa masculina, cerca de 30% resultam de causas feminina e masculina em simultâneo, e em 10% das situações a causa é desconhecida ou idiopática. As principais causas de infertilidade na mulher poderão estar relacionadas com perturbações da ovulação (oligomenorreia ou amenorreia), anomalias tubares e/ou peritoneais, endometriose, anomalias do muco cervical, patologia uterina, anomalias genéticas com efeito em termos do funcionamento ovárico, e doenças autoimunes (ex., diabetes mellitus tipo I, lúpus eritematoso sistémico, doenças da tiroide e artrite reumatoide). Relativamente à infertilidade de fator masculino, esta poderá ter a ver com perturbação na produção de espermatozoides (causas secretoras – oligospermia ou azoospermia), sequelas resultantes de infeções ou cirurgias anteriores que impedem a progressão dos espermatozoides através do trato genital (causas excretoras) e perturbações na ejaculação.

Aquando da impossibilidade de reprodução da vida humana de forma espontânea, a parentalidade poderá ser alcançada através de tratamentos médicos, designados como técnicas de procriação medicamente assistida (PMA). Estes poderão corresponder a inseminação intrauterina, FIV, microinjeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI), o recurso a gâmetas ou a embriões de dadores, e a gestação de substituição (Ahlsarmadi, 2012).

A gestação de substituição é, segundo Burrel e Edozien (2014, p. 272), “o meio de casais inférteis - com problemas de saúde ou de sexualidade - superarem a incapacidade de ter um filho”. Tal acontece através da transferência/implantação uterina do embrião humano, numa terceira pessoa, consistindo esta gestação na gravidez de outra mulher, a gestante, para gerar o bebé que será entregue ao casal beneficiário, renunciando a responsabilidade parental (Burrel, & Edozien, 2014; Christianah, 2013). A gestação de substituição é categorizada em dois tipos: genética - realizada por meio de inseminação do gâmeta masculino no ovócito da gestante de substituição, criando uma ligação biológica da gestante à criança; ou gestacional - realizada por FIV com gâmetas do casal beneficiário/dadores sendo o embrião transferido para a gestante (Jadva, Blake, Casey, & Golombok, 2012). Para efeitos jurídicos é realizado um acordo entre o casal beneficiário e a gestante. O acordo poderá ser de carácter comercial - a gestante recebe um pagamento do casal pelo serviço prestado; ou altruísta, com total ausência de pagamento entre as partes. Ambos os acordos, independentemente da origem, tendem a ser complexos, incluindo cláusulas destinadas a prevenir possíveis eventualidades, como anomalias fetais, morte da gestante, cirurgia inesperada, aborto espontâneo, deficiências na criança, nascimento de um nado-morto, entre outras (Burrel & Edozien, 2014).

Como prática que gera controvérsia, a gestação de substituição é proibida na maioria dos países europeus. A sua legalização na América do Norte e em países asiáticos é mantida com critérios de inclusão e exclusão elaborados pelos decisores políticos de cada país/estado (Benshushan & Schenker, 1997; Biclet, 2014; Hatzis, 2010; Nakash & Herdiman, 2007; Shetty, 2012). No Quadro 1 encontra-se sintetizada a informação relativa à legalização/proibição do recurso à gestação de substituição.

 

 

Considerando a informação apresentada, a necessidade de contornar o impedimento legal começou a surgir. O denominado “Cross Border Reprodutive Care/“Infertility Tourism” consiste na prática de viajar para outro país para a realização de tratamentos de fertilidade, tendo-se tornado um fenómeno global. No entanto, a escassez de estudos nesta área específica dificulta a compreensão das suas implicações. O baixo custo dos tratamentos associado às condições legais, ao desejo de privacidade e à qualidade dos tratamentos, parece justificar o recurso a esta prática. Deste modo, tornou-se imperativo a regulação e harmonização legal, económica, ética, social e religiosa, que fica a cargo de organizações como a European Society of Human Reprodution and Embryology (ESHRE), a American Society for Reprodutcive Medicine (ASRM) e o International Committee Monitoring Assisted Reproductive Technologies (ICMART) (ASRM, 2013; Salama, 2014).

 

Em Portugal, até muito recentemente, a prática da gestação de substituição não era tida como técnica de PMA (decreto de lei nº32/2006, artigo 2), pois as “técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de procriação” (artigo 8), sendo acessíveis somente a pessoas heterossexuais casadas ou em união de facto há pelo menos 2 anos com prévio diagnóstico de infertilidade, doença grave ou risco de transmissão de doença (artigo 4). No entanto, recentemente assistiu-se à alteração da lei em Portugal, sendo que na atualidade é permitido “o acesso à gestação de substituição nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez” (lei nº25/2016, de 22 de agosta, artigo 1). De salientar que o CNECV recomenda a “promoção de estudos longitudinais e registos para aquisição de evidência sobre a informação inerente às diversas facetas (não apenas técnicas), tanto da PMA, como da gestação de substituição” (CNECV, 2012, p.12).

Atendendo ao anteriormente exposto, o principal objetivo desta revisão é dada a inexistência de um estudo desta natureza em Portugal, providenciar um corpo de conhecimento organizado em função dos resultados de estudos conduzidos noutros países e que procuraram explorar os seguintes aspetos psicológicos: adaptação marital, revelação da forma de conceção, bem-estar físico e psicológico do casal beneficiário e da criança, contacto com a gestante de substituição e adaptação à parentalidade.

 

MÉTODO

Pesquisa bibliográfica

Numa fase inicial do presente estudo procedeu-se à pesquisa bibliográfica da literatura existente em cinco bases de dados, nomeadamente Pubmed, Elsevier, Cochrane Library e PsyInfo, sendo considerado o período de publicação entre 2000 e 2015. Contudo, apenas na Pubmed e na Elsevier foram identificados artigos mediante a terminologia de pesquisa utilizada. Com efeito, foram selecionados, a partir do Internacional Committee for Monitoring Assisted Reproductive Technology (ICMART) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) (Zegers-Hochschild et al., 2009), os termos infertility e surrogate. Por sua vez, enquanto constructos da área da Psicologia, foram escolhidas as seguintes palavras-chave: bond, link, mother-child, relationship, psychological consequences. A pesquisa foi realizada usando as palavras-chave acima indicadas na língua inglesa face à inexistência de publicações de caráter científico, sobre a matéria em análise, na língua portuguesa.

Seleção dos Estudos

Os estudos foram selecionados caso apresentassem os seguintes critérios de inclusão: publicação no intervalo de tempo considerado, ou seja, de 2000 a 2015, gestação de substituição enquanto opção alternativa à infertilidade, adaptação marital, revelação da forma de conceção, bem-estar físico e psicológico do casal beneficiário e da criança, contacto com a gestante de substituição e adaptação à parentalidade.

Procedeu-se à exclusão dos artigos pesquisados que não se enquadravam nos objetivos do presente estudo e de duplicações em bases de dados, ficando selecionados 10 estudos. A Figura 1 ilustra o processo realizado para a seleção dos estudos.

 

 

Descrição do método de seleção dos estudos

Extração dos Dados

Para caraterizar os estudos selecionados procedeu-se à organização destes por data, autor, desenho, amostra (presença obrigatória de gestantes de substituição) objetivos, instrumentos utilizados e principais conclusões alcançadas. No Quadro 2 é apresentada a síntese dos estudos em função da organização anteriormente referida.

Descrição dos estudos em análise

 

RESULTADOS

Relativamente à avaliação da gestação de substituição enquanto opção alternativa à infertilidade, o estudo de 2003, realizado por MacCalllum, Lycett, Murray, Jadva, e Golombok, com uma amostra de 42 casais beneficiários (no primeiro ano de vida da criança), cuja causa de procura de alternativa se deveu a um longo período de infertilidade, repetidos tratamentos ou ausência de útero, concluiu que 93% das mães e 97% dos pais recomendam a gestação de substituição. Comparando o início da gestação com o final, os valores de “sentimentos positivos” aumentam de 72% para 98% nas mães e de 81% para 90% nos pais, diminuindo a “apreensão” e “preocupação”. Contudo, 26% das mães e 15% dos pais referem ter experienciado uma “mistura de sentimentos”. De salientar que nos 42 casais, apenas 1 casal registou divergências com a gestante de substituição que “apresentou dificuldades na separação da criança”. Ainda assim, de uma amostra de 34 gestantes de substituição, 87% refere esta alternativa como uma “experiência positiva” (Imrie & Jadva, 2014).

A adaptação marital analisada através de uma amostra constituída por 51 famílias por doação de ovócitos, 42 por gestação de substituição, 80 por conceção natural e 50 por doação de esperma, avaliadas em cinco pontos cronológicos distintos (1, 2, 3, 7 e 10 anos da criança), concluiu que não há associação entre a qualidade e estabilidade marital e o método de conceção utilizado. Todos os casais aparentam ter um bom funcionamento entre si. Contudo, é de salientar que no constructo “qualidade marital”, as mulheres dos casais beneficiários por gestação de substituição registam níveis mais baixos à idade de 7 anos da criança (Blake, Casey, Jadva, & Golombok, 2012).

Relativamente ao processo de revelação da forma de concepção (disclosure) MacCallum et al., em 2003, concluíram que todos os casais contaram aos avós da criança a sua forma de conceção, à exceção de um casal. As razões justificativas para a revelação são: “importância de partilhar com a famíliapara 53% dos casais, “pelo óbvio para 48%e “nenhuma razão para não contar para os 36% restantes. Apenas 7% relataram reação negativa das famílias. Em relação à criança, todos manifestam o desejo de contar, sendo que as mães mencionam os 3 anos da criança como a idade indicada e os pais os 5 anos. A principal razão apontada é que a criança tem o direito de saber a verdade, segundo 69% dos casais.

No ano de 2006, o estudo realizado por Golombok et al., (2006a), contemplando uma terceira fase de um estudo longitudinal anterior (Golombok et al., 2004) com uma amostra de 43 famílias por gestação de substituição, 41 por doação de esperma, 41 por doação de ovócitos e 67 por conceção espontânea concluiu que 44% dos pais por gestação de substituição iniciou o processo de revelação aos 3 anos. A totalidade dos casais contou a pessoas externas à família, sendo que 92% contou a avós maternos e 100% a avós paternos (Golombok et al., 2004; Golombok et al., 2006b). Na quarta fase do mesmo estudo longitudinal, Golombok et al., (2011) haviam concluído que aos 7 anos de idade a criança toma conhecimento e consciência do que significa gestação por substituição.

Um estudo paralelo com uma amostra de 33 famílias por gestação de substituição, 36 por doação de esperma e 32 por doação de ovócitos, avaliadas aquando dos 7 anos da criança, concluiu que as famílias por gestação de substituição alcançaram valores mais elevados (n = 29) de casais que já haviam contado à criança a sua forma de conceção comparativamente com a restante amostra (n = 23). Todas as famílias de gestação de substituição revelaram a terceiros o método de conceção. Comparando famílias por gestação de substituição e famílias por doação de ovócitos/esperma conclui-se que as primeiras desejam revelar todo o processo mais cedo (Readings, Blake, Casey, Jadva, & Golombok, 2011).

Em 2012, Jadva, Blake, Casey, e Golombok, avaliaram uma amostra de 42 famílias (no primeiro ano da criança) diminuindo este número, ao longo de 10 anos, para 33 famílias. Concluíram que no primeiro ano todas as famílias planeavam contar a verdade. Aos 10 anos, 91% dos casais beneficiários já o tinham concretizado, comparativamente com as 19 famílias com recurso a gâmetas de dador, em que apenas 11 tinham revelado este facto e 6 planeavam fazê-lo.

O mais recente estudo sobre a revelação do processo de conceção, em 2013, com uma amostra de 30 famílias por gestação de substituição, 31 por doação de ovócitos, 35 por doação de esperma e 53 por conceção espontânea, concluiu que aos 7 anos, um total de 96 das mães comtempladas no estudo haviam contado à criança a sua forma de conceção. Em relação à gestação de substituição, todas as mães (30) já haviam contado (Golombok, Blake, Casey, Roman, & Jadva, 2013).

Um dos aspetos alvo de análise neste estudo foi o do contacto estabelecido com a gestante de substituição após o nascimento da criança. MacCallum et al., em 2003, constataram que 91% das mães beneficiárias e 93% dos pais beneficiários viram a gestante de substituição apenas uma vez após o nascimento; 64% e 60% continuaram a vê-la todos os meses; sendo que 91% e 89% referem uma relação harmoniosa e 92% e 90% sentem-se positivos em relação ao envolvimento da gestante na vida da criança. Apenas duas mães e três pais revelam “sentimentos ambivalentes” e uma mãe refere ter “preocupação relativamente a este contacto.

Golombok et al., (2006b) com uma amostra de 34 famílias por gestação por substituição, 41 por doação de esperma e 41 por doação de ovócitos em comparação com 67 por concepção natural, concluíram que 50% das mães beneficiárias, 38% dos pais beneficiários e 49% das crianças veem a gestante pelo menos de 3 em 3 meses, caraterizando esse contacto como uma “experiencia harmoniosa. Ainda assim, 6% das mães e 9% dos pais demonstram algum desagrado e frieza na relação. Jadva et al., (2012) concluíram que a maioria das gestantes de substituição tem contacto com a família, mas este vai diminuindo progressivamente até aos 10 anos da criança. Também Imrie e Jadva, em 2014, concluíram que dos 100% que representam as 34 gestantes, 77% mantêm contacto com a criança, 85% mantêm contacto com a mãe beneficiária e 76% com o pai beneficiário. Das gestantes que mantêm contacto, 97% referem que este é realizado “pessoalmente, apesar do uso, quando necessário de outros tipos de comunicação: carta, e-mail, telefone e fotos”. Não há indicação de qualquer relação negativa com o casal beneficiário no presente estudo.

O bem-estar físico e psicológico é uma premissa fundamental no processo da gestação de substituição e Golombok, Murray, Jadva, MacCallum e Lycett (2004), com uma amostra de 42 famílias por gestação de substituição, comparadas com 51 famílias por doação de ovócitos e 80 famílias por conceção espontânea, reportam existir um maior bem-estar psicológico, um menor nível de stresse na gestação por substituição do que por conceção natural, aquando do primeiro ano de vida da criança. De salientar que, em 2011, Golombok et al., apontam que as expectativas e padrões sociais poderão influenciar a saúde psicológica da criança.

Ainda assim, a adaptação à parentalidade por parte de casais que recorreram à gestação de substituição é melhor do que por conceção natural (aquando do primeiro ano da criança), resultando num comportamento de maior afetividade e vínculo (Golombok et al., 2004). Golombok et al. (2006a) referem que as mães dos casais beneficiários por gestação de substituição apresentam maior positividade na relação com a criança devido aos altos níveis de prazer, alegria, afeição e competência e baixos níveis de culpa, desapontamento e raiva. Por sua vez, os pais tendem a mostrar baixos níveis de stresse associado à parentalidade. O mesmo estudo demonstra que o desejo da parentalidade é mais forte do que o link gestacional ou genético com a criança em relação à representação positiva da maternidade. Estar grávida parece não ser um requisito (Golombok et al., 2004). Estes autores apontam que o stresse parental começa a aumentar na fase dos 3 anos da criança, contudo, a relação mães-filhos mantem os mesmos resultados positivos que nas fases anteriores dos estudos. A ausência de um link genético ou gestacional não parece interferir com a relação pais-criança aos 3 anos. (Golombok et al., 2004; Golombok et al., 2006a; Golombok et al., 2006b). Aos 7 anos de idade já não há diferenças significativas na positividade maternal e qualidade parental entre as famílias por reprodução medicamente assistida com recurso à gestação de substituição e por conceção espontânea. Os autores salientam ainda que não há hostilidade nem negatividade maternal nas famílias por gestação de substituição (Golombok et al., 2011).

 

DISCUSSÃO

O objectivo do presente estudo consistiu em providenciar um corpo de conhecimento organizado em função dos resultados de estudos, realizados noutros países, no que respeita aos seguintes aspectos psicológicos relacionados com a gestação de substituição: adaptação marital, revelação da forma de conceção, bem-estar físico e psicológico do casal beneficiário e da criança, contacto com a gestante de substituição e adaptação à parentalidade.

Liubov Ben-Nun (2014), autor do livro “Surrogate Motherhood: Medical Research in Biblical Times from the Viewpoint of Contemporary Perspective” considerou uma lista de argumentos contra o recurso à gestação de substituição. Entre eles, podemos destacar: exploração financeira do corpo humano e, consequentemente, da gestante, desvalorização do valor da maternidade, questões psicológicas e físicas em relação à criança, riscos para o casal com infertilidade, riscos de abuso e questões financeiras. Dos 10 estudos analisados na presente revisão, a gestação de substituição é tida como “uma experiência positiva” (Imrie & Jadva, 2014, p. 429), recomendável a outros casais. Com efeito, nenhum estudo apresentou evidências significativas da existência de problemas com este procedimento. De salientar que o recurso a uma gestante de substituição foi realizado por casais cuja duração da infertilidade era superior a um ano, haviam realizado vários tratamentos médicos para a infertilidade sem alcançar sucesso, e apresentavam ausência de útero, doenças relacionadas com este órgão e falta de alternativas.

Considerando cinco pontos cronológicos distintos (1, 2, 3, 7 e 10 anos da criança), Blake et al., em 2012, verificaram a ausência de associação entre a qualidade e estabilidade marital e o método de conceção utilizado. Os casais beneficiários por recurso à gestação de substituição desejam revelar todo o processo à criança em tenra idade, preferencialmente antes dos 7 anos da criança, em oposição aos restantes meios de conceção. (Golombok et al., 2013; Readings et al., 2011). Readings et al., em 2011, justificam tal diferença ponderando três aspetos: 1) na gestação de substituição gestacional a criança é ligada geneticamente ao casal, contrariamente ao que sucede nos casos de doação de gâmetas; 2) todos os pais terão de explicar o surgimento de uma criança sem a mulher do casal beneficiário ter tido uma gravidez; 3) explicar a uma criança sobre nascer com recurso a gestação de substituição difere da explicação do recurso a gâmetas de dador – sendo que na primeira os casais recorrem ao uso da expressão “broken tummies”, sem necessidade de explicar tudo o que envolve a doação de gâmetas.

Contrariando a ideia de que o contacto com a gestante poderia ser prejudicial para a família beneficiária, os estudos analisados revelam que o contacto com a gestante é frequente (variando o meio para esse efeito), classificado como harmonioso, sendo que apenas uma minoria revelou sentimentos de preocupação. Ainda assim, o contacto tende a diminuir com o passar dos anos (Golombok et al., 2006; Imrie & Jadva, 2014; MacCallum et al., 2003). A saúde psicológica da criança poderá ser influenciada pelas expectativas da mãe, padrões sociais e a qualidade das relações familiares (Golombok et al., 2011).

Como observado nos estudos, ao primeiro ano de idade da criança, os casais que recorreram à gestação de substituição apresentam valores baixos de stresse e elevados de positividade maternal, ao contrário do encontrado em casais com conceção espontânea. Tal poderá ser justificado pelo desejo intenso e o planeamento detalhado (Golombok et al, 2004). Este desejo aumenta a qualidade da representação familiar e, consequentemente, os níveis de qualidade da parentalidade. Esta parece ter mais importância do que o link genético ou gestacional em si (Golombok et al., 2011; Golombok et al., 2013). Somente quando a idade da criança chega aos 7 anos desaparecem as diferenças significativas na positividade maternal e qualidade parental entre a gestação de substituição e as restantes formas de conceção, contrastando com as fases anteriores (1, 2 e 3 anos) (Golombok et al., 2004; Golombok et al., 2006a; Golombok et al., 2006b). A consciência da ausência de link genético, o conhecimento das suas origens e a entrada na escolaparecem interferir nesta fase de desenvolvimento da criança. Segundo a perspetiva etológica, os bebés nascem predispostos a formar laços emocionais com o seu cuidador (Boyd & Bee, 2011). Esta vinculação poderá ser estabelecida com a mãe biológica, com o pai, ou qualquer outra pessoa que assuma o papel de cuidador principal e trate das suas necessidades. Estes laços irão moldar a criança no seu desenvolvimento social e da personalidade (Boyd & Bee, 2011). Deste modo, se a representação e relações familiares tiverem sido construídas solidamente poderão representar mais do que a ligação genética ou gestacional, não alterando a qualidade parental (Golombok et al, 2006a; Golombok et al., 2006b; Golombok et al., 2011).

Sintetizando, a presente revisão da literatura foi ao encontro dos objetivos delineados, procurando sumariar os resultados alcançados em 10 estudos longitudinais e suas principais conclusões. A gestação de substituição, avaliada do ponto de vista das ciências sociais, parece não comprometer o desenvolvimento, o bem-estar e a capacidade de parentalidade da família beneficiária. As representações familiares estabelecidas pelos cuidadores, a abertura em relação à forma de conceção e as experiências concomitantes serão a base para o desenvolvimento da criança e sua adaptação.

As limitações com que a nossa revisão da literatura se deparou delimitam em vários aspetos as conclusões desejadas. Os 10 estudos analisados apresentam igual desenho longitudinal e correspondência de autores dado a temática ser específica e estudada por um conjunto ainda restrito de investigadores. A principal limitação prende-se com a impossibilidade de comparação com a população portuguesa dada a inexistência de estudos ou revisões de literatura nesta área em Portugal. Contudo, a possibilidade de análise de estudos longitudinais sobre a matéria permite a construção de uma noção mais clara sobre o que é a gestação de substituição e a sua prática.

Em estudos futuros sugeríamos que fossem pesquisadas novas palavras-chave, como, temperamento da criança, adoção e impacto psicológico. Poderia ser interessante comparar o impacto psicológico da gestação de substituição na infância, comparativamente com o recurso à adoção, tendo como exemplo pesquisas como a de Jaffari-Bimmel, Femmie, Ijzendoorn, Bakermans-Kranenburg, e Mooijaart (2006), autores do estudo Social development from infancy to adolescence: Longitudinal and concurrent factors in an adoptin sample, um estudo longitudinal com uma amostra de 160 crianças adotadas na infância e seguidas até à adolescência. Estes autores concluíram que a adaptação é um produto do desenvolvimento da criança e das circunstâncias concomitantes que o suportam. No nosso entender, a comparação entre famílias que recorreram a uma gestante de substituição e famílias que recorreram à adoção poderá acrescentar conhecimento relativamente aos múltiplos fatores que estão envolvidos neste tipo de processos.

Em suma, a gestação de substituição não parece apresentar negatividade a nível dos factores psicológicos, permitindo a casais que – por ausência de útero ou doença deste – nunca poderiam realizar o seu projeto parental.

 

REFERÊNCIAS

Ahlsarmadi, L. (2012). The rights and obligations of parties to the surrogacy contract latifeh. Interdisciplinary Journal of Contemporary Research in Business, 4, 164-175.         [ Links ]

Almeida-Santos, A. T., & Moura-Ramos, M. (2010). Esterilidade e procriação medicamente assistida. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.         [ Links ]

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Endereço para Correspondência

Instituto Superior Miguel Torga – Departamento de Psicologia, Largo da Cruz de Celas, nº1, 3000-132 Coimbra. Telf.: +351 239 488030/Fax. +351 239 488031. E-mail:joanapereiragouveiaa@gmail.com

 

Recebido a 13 de Maio de 2016

Aceite 09 de Fevereiro de 2017

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