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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.21 no.1 Lisboa abr. 2020

https://doi.org/10.15309/20psd210132 

Saúde ocupacional na ferrovia: trabalho por turnos, Burnout, Sono e interação trabalho-família

Occupational health on the railway: shift work, Burnout, sleep and work-family interaction

Sérgio Fonseca1, Cristina Queirós1, & Vítor Martins2

1Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal, up201306558@fpce.up.pt, cqueiros@fpce.up.pt

2Sindicato Ferroviário da Revisão Comercial e Itinerante, Portugal


 

RESUMO

A Ferrovia labora ininterruptamente, o que implica nos seus trabalhadores a organização por turnos, com impacto no cansaço emocional/físico e na conciliação trabalho-família. Pretendeu-se conhecer o impacto do trabalho por turnos nos níveis de burnout, sono e interação trabalho-família, em associados do Sindicato Ferroviário da Revisão Comercial e Itinerante. Método: Aplicou-se para o burnout o CESQT, para o trabalho-família a SWING e um questionário piloto para avaliação do impacto do sono, a 314 participantes, sendo 83% operadores de revisão e venda (6% operador venda e controlo), 94% homens, com média de idades de 45,09 anos (DP=6,79), tendo em média 19,51 anos de experiência profissional (DP=8,42) e trabalhando predominantemente no turno diurno. Resultados: Encontraram-se valores moderados de burnout, de desgaste psíquico e de conflito trabalho-família, bem como impacto negativo na qualidade e características do sono. Os turno diurno/noturno não se diferenciam no burnout nem interação trabalho-família, mas a satisfação com o sono é superior no turno diurno, enquanto o impacto negativo no sono e na vida familiar é maior no turno noturno. Os mais velhos e com mais anos de serviço sofrem mais impacto negativo no sono, e o burnout tem correlações positivas com o impacto negativo no sono e na vida familiar. Discussão: Existe já mal-estar psicológico nestes trabalhadores, manifestado no burnout, sono e conflito trabalho-família, devendo aprofundar-se o impacto do trabalho por turnos na ferrovia.

Palavras-Chave: Ferrovia, Turnos, Burnout, Sono, Família


 

ABSTRACT

The Railway works uninterruptedly, which means that its workers are organized in shifts, with an impact on emotional/physical tiredness and work-family conciliation. This study aims to understand the impact of shift work on burnout, sleep, and work-family interaction levels among members of the Railroad Union of the Commercial and Itinerant Review. Method: It was applied, for burnout, the CESQT, for work-family, the SWING, and a pilot questionnaire for sleep impact assessment. Participated 314 workers, being 83% review and sale operators (6% sale and control operator), 94% men, with a mean age of 45.09 years (SD = 6.79), and 19.51 average of years of job experience (SD = 8.42), working mainly during day shifts. Results: Moderate values of burnout, psychological distress and work-family conflict were found, as well as negative impact on sleep quality and characteristics. Day/night shifts do not differ in burnout or work-family conflict, but sleep satisfaction is higher in the day shift, while the negative impact on sleep and family life is higher in the night shift. Older people and those with more years of job experience suffer higher negative impact on sleep. Burnout has positive correlations with negative impact on sleep and family life. Discussion: We found already psychological distress in these workers, manifested in burnout, sleep and work-family conflict, and we should study better the impact of shift work on the railroad.

Keywords: Railroad, Shifts, Burnout, Sleep, Family


 

A existência de trabalho por turnos faz com que o serviço/organização esteja sempre em funcionamento (aumentando a produtividade, tendo equipamentos industriais em laboração contínua ou serviços sempre disponíveis, etc.), o que tem impacto na saúde do trabalhador (Parkes, 2016; Prata & Silva, 2013; Silva, Keating, & Costa, 2017; Silva, Prata, & Ferreira, 2014). Ora, a Ferrovia labora ininterruptamente implicando também a organização do trabalho dos seus trabalhadores em turnos, com impacto no cansaço emocional/físico que pode desencadear a longo prazo burnout, bem como prejudicar a conciliação trabalho-família.

Recentemente o burnout foi considerado pela Organização Mundial de Saúde um fenómeno ocupacional (https://www.who.int/mental_health/evidence/burn-out/en/.), sendo atualmente considerado um problema grave pelo seu impacto no trabalhador e na qualidade do serviço prestado e tendo interesse crescente quer na Psicologia da Saúde Ocupacional, quer na Psicologia Clínica (Chambel, 2016; Gil-Monte, 2005; Koutsimani, Montgomery, & Georganta, 2019; Queirós, Gonçalves, & Marques, 2014). Também a laboração por turnos foi considerada pela Organização Mundial de Saúde como fator de risco para a ocorrência de cancro implicando ainda alterações nos padrões de sono (Straif, Baan, & Grosse, 2007). Apesar do trabalho por turnos estar, globalmente, em conformidade com as regras organizacionais e resultar do acordo coletivo de trabalho estabelecido entre as entidades patronais e as associações sindicais representativas dos trabalhadores, os trabalhadores do setor dos transportes têm, inúmeras vezes, de dormir fora de casa em instalações providenciadas pelo empregador ou unidades hoteleiras. Acresce que o facto de dormir em casa pode ser também “desafiante” se for em período diurno devido às perturbações provocadas pela luminosidade e ruído gerado pelas rotinas do agregado familiar ou outras. Além disso, o tempo de repouso entre turnos poderá ser insuficiente para conjugar compromissos e tarefas pessoais quotidianas com o tempo disponível para dormir (Quan & Barger, 2015).

Ora, quando ocorre privação de sono ou escassez de tempo de descanso, existe uma diminuição da empatia emocional, e, consequentemente, diminui a cognição, o processamento emocional e o potencial individual de partilha dos estados emocionais que, por si só, são uma importante competência para as interações sociais e laborais quotidianas (Guadagni, Burles, Ferrara, & Iaria, 2014). Um estudo com 230 ferroviários finlandeses encontrou nos turnos noturnos 50% da amostra com sonolência severa e nos turnos de madrugada 20% (Härmä, Sallinen, Ranta, Mutanen, & Müller, 2002). Além disso, o sono insuficiente está relacionado com problemas de saúde comportamental, agravamento agudo do humor, irritabilidade, depressão e decréscimo da motivação (Bonnet & Arand, 2003; Durner & Dinges, 2005).

O trabalho por turnos tem ainda impacto triplo na fadiga na vida familiar dos trabalhadores ferroviários: questões emocionais que provocam impacto na família, nomeadamente mudanças de humor e irritabilidade; necessidade de apoio e compreensão por parte da família; e implicações sociais dos horários irregulares que levam ao isolamento e frustração provocado pela incapacidade de ter uma vida social normal (Holland, 2006). Um estudo realizado com 276 trabalhadores ferroviários americanos sobre a importância do tempo disponível para o lazer e a relação matrimonial concluiu que o bem-estar social é uma variável mediadora e no funcionamento organizacional e na fadiga (Ku & Smith, 2010).

Pretendeu-se conhecer o impacto do trabalho por turnos nos níveis de burnout, sono e interação trabalho-família nos associados do Sindicato Ferroviário da Revisão Comercial e Itinerante (SFRCI).

Método

Participantes

No âmbito de um estudo mais aprofundado realizado pela FPCEUP e SFRCI (Queirós, Fonseca, & Martins, 2019) participaram 314 Associados do SFRCI, representando 40% do total, sendo 94% homens, tendo entre 25 e 62 anos (M=45,09 DP=6,79), tendo entre 1 e 40 anos de serviço (M=19,51 DP=8,42) e trabalhando predominantemente em turnos diurnos (62%).

Material

Aplicou-se para o burnout o Cuestionário para la Evaluación del Sindrome de Quemarse por el Trabajo (CESQT, de Gil-Monte, 2011, cedido por TEA Ediciones), constituído por 20 itens organizados nas dimensões: ilusão pelo trabalho (motivação e realização profissional); desgaste psíquico (esgotamento físico e emocional); indolência (frieza, indiferença e distanciamento); e culpa (que pode não ocorrer em todos os trabalhadores, resultando da sensação de não poder “dar mais de si mesmo” no trabalho), avaliadas de numa escala de 0 (nunca) a 4 (muito frequentemente), sendo possível calcular um resultado final de burnout ou síndrome de “queimado pelo trabalho”. Para a interação trabalho-família utilizou-se o Survey Work-Home Interaction Nijmegen (SWING, versão portuguesa de Pereira e colegas, 2014), e da qual foi utilizada apenas a dimensão da interação negativa ou impacto do trabalho na família, num total de 8 itens avaliados numa escala de 0 (nunca) a 3 (sempre) com média final. Foi ainda construído um questionário com itens medidos de 0 (nunca) a 4 (sempre) para avaliação do impacto do trabalho por turnos no sono (16 questões extraídas dos questionários de avaliação do sono de: Becker & Jesus, 2017; Buysse et al., 2010; Famodu et al., 2008; Yi, Shin, & Shin, 2006), vida familiar e social (11 questões extraídos de questionários do impacto do trabalho por turnos de: Barger et al., 2002; Flo et al., 2002; Prata & Silva, 2013). Os alfas de Cronbach foram adequados (Field, 2009), sendo respetivamente de: 0,87 burnout) 0,89 (interação trabalho-família) 0,80 (impacto no sono) e 0,83 (impacto na vida familiar e social).

Procedimento

Foi criado um questionário online com link no GoogleForms, que demorava entre 5 a 20 minutos a preencher, em formato anónimo. O estudo foi realizado a nível nacional, tendo este link sido enviado aos participantes através de divulgação interna do SFRCI, com um primeiro ecrã de consentimento informado. A recolha de dados decorreu em julho e agosto 2019, e os dados foram tratados no programa IBM SPSS Statistics version 25 para análise descritiva, comparativa, correlacional e de regressão.

Resultados

Encontraram-se (Quadro 1) valores moderados de burnout, de desgaste psíquico e de conflito trabalho-família, bem como impacto negativo do trabalho por turnos na qualidade e características do sono, e, sobretudo na vida familiar e social (numa escala de 0 a 4 as médias variam entre 2,25 e 3,19). A comparação entre turnos diurno/noturno (Quadro 2) não apresenta diferenças no burnout nem na interação trabalho-família, mas a satisfação com o sono é superior no turno diurno, enquanto o impacto negativo no sono e na vida familiar é maior no turno noturno. A correlação da idade e anos de serviço com as restantes variáveis permitiu verificar que são os mais velhos e com mais anos de trabalho que sofrem maior impacto negativo no sono. Por fim, verificou-se que o burnout tem correlações positivas com o impacto negativo no sono e na vida familiar (Quadro 3).

 


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Os resultados obtidos refletem os dados de outros estudos sobre o impacto do trabalho por turnos na vida social e familiar (Holand, 2016; Parkes, 2016; Silva et al., 2017), dificultando a conciliação trabalho-família que a Comissão Europeia defende e que em Janeiro 2019 levou a um acordo (https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/STATEMENT_19_424). Além disso, o burnout é já um fenómeno ocupacional presente apesar de ainda em valores moderados, devendo ser-lhe dada maior atenção pelo impacto que tem a nível organizacional e individual (Chambel, 2016; EUROFOUND, 2018; Queirós et al., 2014). Por fim, deveria ser dada maior atenção ao cumprimento das horas de descanso em boas condições, pois o impacto do trabalho por turnos no sono foi encontrado e os estudos alertam para um efeito negativo (Bonnet & Arand, 2003; Härmä et al., 2002; Quan & Barger, 2015).

Discussão

Os resultados encontrados revelam que já existe algum mal-estar psicológico nestes trabalhadores, manifestado no burnout, problemas de sono e conflito trabalho-família, devendo aprofundar-se o impacto do trabalho por turnos na ferrovia. Na laboração por turnos no setor do transporte ferroviário é também importante prevenir a fadiga, o que implica conhecer as características deste regime laboral que estão diretamente relacionadas com a excessiva sonolência. Note-se que a fadiga induzida pela sonolência aumenta o número de acidentes, mas a reduzida duração do período de sono é um fator de risco para doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes e obesidade (Quan, 2009).

O estudo permitiu ainda verificar que o questionário construído para avaliar o impacto dos turnos no sono e na vida familiar apresenta boa consistência interna. Apesar de aplicado apenas a operadores de revisão/venda, operadores de venda/controle e assistentes comerciais (trabalhadores da ferrovia e associados do SFRCI), parece poder vir a ser utilizado em estudos futuros para melhor evidência das suas propriedades psicométricas.

Apesar do efeito negativo do trabalho por turnos na saúde física e psicológica, logicamente não é possível evitar a existência de turnos de noite e madrugada num setor profissional que opera 24 horas por dia. Contudo, pode ser possível ajustar o trabalho de cada turno, o tempo de descanso entre turnos e a sequência de turnos para minimizar a fadiga (Härmä et al., 2002). Além disso, a elaboração dos horários dos turnos e a sua distribuição necessitam de ser repensadas no sentido de os tornar mais humanizados, favorecendo o descanso e relação familiar, pois o fator humano desempenha um papel fundamental na segurança da ferrovia na Europa (ERA, 2016, 2018).

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 15 de Novembro de 2019

Aceite em 29 de Janeiro de 2020

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