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Psicologia, Saúde & Doenças

Print version ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.21 no.3 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.15309/20psd210305 

Artigo

Estrutura representacional do novo coronavírus e do estado de pandemia

Representational structure of the new coronavirus and the pandemic state

Viviane Bezerra1 

Emerson Do Bú2  3 

Maria Edna Alexandre1 

Maria da Penha Coutinho1 

1 Universidade Federal da Paraíba - UFPB, Paraíba, Brasil, vivianebezerrapsi@gmail.com, psicologasocialedna@gmail.com, mplcoutinho@gmail.com

2 Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, dobuemerson@gmail.com

3 Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal


Resumo

Este estudo buscou identificar as estruturas representacionais do novo coronavírus e do que caracteriza uma pandemia para brasileiros. Para isso, contou-se com 495 participantes, predominantemente do sexo feminino (64,4%) e residentes da região Nordeste do Brasil (58,3%). Os dados foram coletados através da Técnica de Associação Livre de Palavras e analisados no software IRAMUTEQ, executando-se análises prototípicas. Os resultados indicaram que as estruturas representacionais do novo coronavírus e da pandemia estão relacionadas, destacando-se, enquanto elementos centrais, o medo e o pânico. Os sistemas periféricos também evidenciaram semelhanças entre esses dois fenômenos, especialmente em relação à sua associação com a morte, à sintomatologia típica, à concepção de grupo de risco e às medidas de prevenção e contenção do estado pandêmico. Esses achados sinalizam a importância de que profissionais, órgãos de saúde, a mídia e as instâncias governamentais promovam intervenções instrumentalizadoras de práticas funcionais para contenção da pandemia da COVID-19.

Palavras-Chave: Coronavírus; pandemia; prevenção; psicologia social; psicologia da saúde

Abstract

This study sought to identify the representative structures of the new coronavirus and to what characterizes a pandemic for Brazilians. For this, there were 495 participants, predominantly female (64.4%) and residents of the Northeast region of Brazil (58.3%). The data were collected through the Free Word Association Technique and analyzed in the IRAMUTEQ software, performing prototypical analysis. The results indicated that the representative structures of the new coronavirus and the pandemic are related, highlighting, as central elements, fear and panic. The peripheral systems also showed similarities between these two phenomena, especially concerning their association with death, the typical symptoms, the conception of a risk group and the measures to prevent and contain the pandemic state. These findings signal the importance of professionals, health agencies, the media and government agencies to promote instrumental interventions of functional practices to contain the pandemic of COVID-19.

Keywords: Coronavirus; pandemic; prevention; social psychology; health psychology

Em meados de dezembro de 2019, o mundo deparou-se com um fenômeno de grandes proporções que vem gerando significativos impactos no âmbito da saúde, da economia, como também na vida psicossocial e afetiva de toda a população mundial. Trata-se de uma doença originalmente identificada na China, que tem por nome oficial Coronavirus Disease 2019 (COVID-19). Esta afecção é causada por uma grande família de vírus (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 - SARS-CoV-2) que pode levar ao adoecimento de seres humanos, variando de casos leves, tais como o resfriado comum, a doenças potencialmente fatais, como a pneumonia. Dentro de poucos meses, a COVID-19 se espalhou por todos os continentes, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar estado de emergência de saúde pública internacional, situando-a como uma pandemia (Velavan & Mayer, 2020; Xu et al., 2020; WHO, 2020).

Em termos operacionais, compreende-se por pandemia a disseminação de uma doença infeciosa por extensa área do espaço geográfico (Duan & Zhu, 2020; McIntyre, 2019). Sublinha-se que, em diferentes momentos da história, a humanidade já lidou com estados pandêmicos. Nomeadamente, existiu a peste negra (1347-1351), a cólera (1817-1824), a tuberculose (1850-1950), a varíola (1896-1980), a gripe espanhola, o tifo (1918-1922), a febre amarela e o sarampo (até 1963), a malária (até 1980) e a AIDS (desde 1981) (Nascimento et al., 2018). Em função do seu alcance e do número de mortos, os estados pandêmicos causaram e continuam a provocar, como no caso da AIDS e, agora, da COVID-19, danos às dimensões físicas, biológicas, cognitivas, comportamentais, afetivas, sociais, culturais, políticas e econômicas da população (Rezende, 1998).

No que se refere, especificamente, ao coronavírus, nas últimas décadas, dois já foram os momentos em que o mundo teve que lidar com suas implicações para as sociedades. Estes ocorreram entre 2002 e 2003, com a infeção e a síndrome respiratória aguda grave provocada pelo coronavírus SARS-CoV, bem como em 2012, com a infeção e a síndrome respiratória do Médio Oriente ocasionada pelo coronavírus MERS (Falsey et al., 2020; Mohd et al., 2016).

Com base no que a literatura biomédica tem veiculado até o momento, a COVID-19 tem como principais sinais clínicos dores de cabeça, tosse seca, coriza, febre alta, falta de ar ou dispneia, dor muscular ou mialgia, desajustes gastrointestinais, bem como, em casos mais graves, desenvolvimento de pneumonia leve, moderada e grave. Com bases em dados epidemiológicos, destaca-se que 5% daqueles afetados com pneumonia do tipo grave podem desenvolver a síndrome respiratória aguda grave (SARS) e, em uma fase crítica da doença, evoluir para a sepse (infecção generalizada no organismo humano), entrar em choque e vir a óbito (Velavan & Mayer, 2020; Villgas-Chiroque, 2020).

A transmissão dessa doença se dá por meio de secreções respiratórias, bem como mediante o contato pessoal com indivíduos ou superfícies contaminadas pelo vírus (Xu et al., 2020). Ademais, um estudo recente demonstra que o SARS-CoV-2 pode se dissipar pelo ar através de pequenas partículas exaladas por pessoas infectadas (Liu et al., 2020). É importante enfatizar que ainda não se dispõe de terapêuticas curativas e nem de imunização da doença, mas que estas estão em fase de investigação científica. Todavia, reconhece-se um conjunto de medidas profiláticas para sua prevenção e contenção, tais como a necessidade de distanciamento físico, a manutenção de quarentena por quem pode permanecer em casa, a higienização das mãos e o uso de itens de proteção individual, como máscaras (Faro et al., 2020).

Destaca-se que a COVID-19 pode ter sérias implicações fisiológicas, especialmente em indivíduos que possuem comorbidades e que se enquadram em grupos de risco (Huang et al., 2020). Em relação aos grupos mais suscetíveis à referida doença, aponta-se os idosos, os diabéticos, os indivíduos que possuem doenças respiratórias, cardiovasculares e renais crônicas, pois são comumente acometidos por baixa imunidade e fragilidade orgânica (WHO, 2020).

Nesse contexto, observa-se que o núcleo temático relacionado a pandemia da COVID-19 tornou-se alvo de especulação de estudos das mais diversas áreas do conhecimento, sendo constantemente veiculada na mídia e hipermídia, bem como passou a fazer parte do repertório das conversações cotidianas (Velavan & Mayer, 2020; Xu et al., 2020). Isso faz com que a população crie teorias de senso comum tanto sobre o novo coronavírus, quanto sobre o que vem a ser um estado de pandemia, a fim de que possam explicar e agir frente a estes fenômenos que se deparam na dinâmica social.

Desse modo, compreendendo a importância de se conhecer como os brasileiros têm se apropriado e explicado os novos fenômenos que os circundam, nomeadamente, o novo coronavírus e o que vem a ser uma pandemia, é que o presente trabalho buscou responder os seguintes questionamentos: quais as estruturas representacionais do novo coronavírus e pandemia elaboradas por brasileiros? Existem relações na forma como estão estruturadas as representações sociais sobre tais fenômenos? Para responder estas questões, recorrer-se-á à perspectiva psicossociológica compreendida como a abordagem estrutural da Teoria das Representações Sociais (TRS), proposta por Abric (2003). Far-se-á isso uma vez que, por meio da apreensão das representações sociais de brasileiros sobre estes fenômenos, será possível acessar um conjunto de conceitos, proposições e explicações elaborados e partilhados por meio de comunicações interpessoais, cruciais para a interpretação da realidade que atualmente lhes é imposta (Moscovici, 2017).

Para Moscovici (2017), duas são as formas de conhecer a realidade: uma consensual, que se relaciona ao senso comum, e outra reificada, oriunda do saber científico. No que tange ao universo consensual, este se constitui, principalmente, na conversação informal entre pares, em que se nota o processo de apropriação dos saberes típicos dos universos reificados, sendo assimilados a partir da grade de leitura do mundo de cada grupo social. Aqui, o senso comum não é considerado enquanto sinônimo de ignorância, mas sim a lógica pela qual os atores sociais - eruditos e analfabetos, cientistas ou sujeitos comuns - constroem conhecimento e orientam suas ações no dia a dia.

Abric (2003), ao abordar as representações sociais (RS), organiza-as a partir de dois tipos de elementos ou sistemas complementares. Os centrais, que correspondem à parte estável e consensual das RS, cuja função é gerar o significado básico da representação e determinar a organização global de todos os seus elementos. Os periféricos, por sua vez, têm um caráter mais flexível, permitindo o ajustamento às mudanças contextuais, a adaptação à realidade concreta, a diferenciação do conteúdo da representação e, em termos históricos, a proteção do sistema central.

Destarte, partindo-se da premissa de que as representacções sociais do novo coronavírus e do estado de pandemia podem promover a compreensão da realidade atual vivenciada por brasileiros, além de perceber como estes orientam e justificam suas práticas em face aos fenômenos mencionados, o presente estudo teve por objetivo identificar as estruturas representacionais do novo coronavírus e do que vem a ser um estado de pandemia. Justifica-se que entender tais estruturas é preponderante para o planejamento e a implementação de futuras intervenções com vistas à contenção do estado pandêmico da COVID-19.

Método

Trata-se de um estudo, quantitativo e qualitativo, de caráter descritivo e exploratório, ancorado no aporte teórico da Teoria das Representações Sociais (Abric, 2003; Moscovici, 2017). Participaram da pesquisa 495 brasileiros, com idade variando de 18 a 78 anos (M=29,24; DP=10,24) e majoritariamente do sexo feminino (64,4%). Destes, 58,3% eram residentes da região Nordeste do Brasil, 25,7% residiam na região Sudeste, 9,9% na região Sul, 3,4% eram residentes da região Norte e 2,6% residiam na região Centro-Oeste. No que se refere a cor da pele dos partícipes, 58,3% dos participantes se autodeclararam brancos, 40% pretos e 1,7% pardos. Em relação ao grau de escolaridade, teve-se 47,2% dos participantes com Ensino Superior, 43,3% na Pós-graduação, 8,5% com o Ensino Médio e 1% com Ensino Fundamental. Por fim, no tocante a renda, 29,3% da amostra possuíam renda de até dois salários mínimos, 23,6% entre dois e três salários mínimos, 15,4% entre três e quatro salários, 14,3% possuíam renda acima de cinco salários minímos e 9,7% alegaram ter renda de até um salário minímo.

Em relação aos instrumentos, utilizou-se um Questionário Sociodemográfico, que englobou questões relacionadas à idade, ao sexo, ao grau de escolaridade, à renda e à concentração por região do país; e outro questionário que apresentou a Técnica de Associação Livre de Palavras (TALP), contendo os estímulos indutores: coronavírus e pandemia. Destaca-se que a TALP consiste em uma técnica projetiva, que se organiza sobre a evocação de respostas dos participantes, a partir de estímulos indutores previamente definidos pelo pesquisador, possibilitando, assim, identificar universos semânticos relacionados a um objeto ou fenômeno social (Coutinho & Do Bú, 2017).

A coleta de dados foi realizada por meio de um formulário online, onde foram inseridos os instrumentos supramencionados. Tal formulário fora divulgado através das redes sociais Facebook, WhatsApp e Instagram. Os participantes, após concordarem que eram maiores de 18 anos, brasileiros e que se apresentavam disponíveis para participarem da pesquisa voluntariamente, responderam aos referidos instrumentos.

Os dados sociodemográficos foram processados através do software IBM SPSS® Statistics, versão 26, que permitiu realizar as análises descritivas. Já para os dados da TALP, utilizou-se o software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ), executando-se análises prototípicas.

A análise prototípica viabilizou-nos a apreciação do núcleo central e dos sistemas periféricos das representações sociais do novo coronavírus e da pandemia, a partir da criação de uma tabela com quatro quadrantes. Essa tabela é constituída com base na combinação entre frequência (F) e ordem média de evocação (OME) de palavras dos participantes do estudo em relação aos estímulos coronavírus e pandemia. Em síntese, no primeiro quadrante (superior esquerdo), encontram-se os vocábulos que possuíram alta frequência e baixa ordem média de evocação, sendo o indicador do núcleo central das representações dos fenômenos sociais em análise. O segundo quadrante (superior direito) indica a primeira periferia da estrutura representacional, apresentando as expressões que possuíram alta frequência, mas que não foram evocadas prontamente. Já o terceiro quadrante (inferior esquerdo), refere-se a zona de contraste, que inclui as respostas com baixa frequência, mas que foram evocadas prontamente no discurso. Neste quadrante, especificamente, as respostas são minoritárias e podem indicar duas possibilidades: ou são apenas complementos da primeira periferia, ou indicam a existência de um subgrupo que valoriza alguns elementos distintos da maioria. Por fim, a segunda periferia, localizada no quadrante inferior direito, inclui aqueles elementos que obtiveram menor frequência e que não foram evocadas prontamente, ou seja, este quadrante abarca elementos que são pouco salientes nas duas coordenadas (Camargo & Justo, 2018; Sá, 2002).

Ademais, fez-se uma análise qualitativa do conteúdo emergido em cada uma das análises prototípicas realizadas. Buscou-se, nessa análise, evidenciar aspectos etimológicos das palavras evocadas, relacionando-os com o que a literatura que versa sobre o tema constata, bem como evidenciar e compreender os sentidos e significados que são criados e compartilhados pelos participantes do presente estudo em relação ao novo coronavírus e a pandemia.

Ressalta-se que os procedimentos de coleta de dados seguiram todas as recomendações éticas para esse tipo de pesquisa (número de protocolo 30616720.9.0000.0008), conforme preza a resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde Brasileiro (Brasil, 2016).

Resultados

Os resultados das análises lexicográficas prototípicas desempenhadas pelo software IRaMuTeQ serão apresentados a seguir.

Estrutura representacional do novo Coronavírus

A análise do estímulo indutor coronavírus considerou um total de 2.949 palavras evocadas, das quais 451 constituíram palavras diferentes A Tabela apresenta os resultados da análise deste estímulo, que foi criada com base na frequência mínima de 10 evocações e na ordem média de evocação de 2,81 para o estímulo coronavírus.

No que se refere a estrututura representacional do novo coronavírus, nota-se que no quadrante superior esquerdo este objeto emergiu associado às palavras “doença”, “pandemia”, “vírus”, “gripe”, “medo” e“epidemia”. Sublinha-se que este quadranre engloba as cognições mais suscetíveis de constituirem o núcleo central de uma representação, pois inclui as evocações mais frequentes e prontamente evocadas pelos atores sociais (Sá, 2002). Tratando-se dos sistemas periféricos próximos, especificamente da primeira periferia, foi possível observar o surgimento dos elementos “morte”, “álcool”, “prevenção”, “China”, “contágio”, “cuidado” e “higiene”, já na zona de contraste encontram-se os vocábulos “pânico”, “ tosse”, “febre”, “infecção”, “espirro” e “contaminação”. Destaca-se que estas zonas integram as experiências e histórias individuais e, portanto, a heterogeneidade do grupo estudado (Sá, 2002).

Por fim, o sistema periférico distante, disposto no quadrante inferior à direita, indica os vocábulos menos consensuais das representações sociais do novo coronavírus: “isolamento”, “saúde”, “perigo”, “máscara”, “quarentena”, “idosos”, “crise”, “caos”, “SUS”, “surto”, “preocupação”, “transmissão”, “vacina”, “risco”, “hospital”, “proteção”, “imunidade”, entre outros.

Tabela 1 Estrutura representacional do novo coronavírus 

Estrutura representacional da Pandemia

A análise prototípica do estímulo pandemia indicou 2.801 evocações, das quais 590 eram palavras distintas. Os resultados desta análise, que podem ser observados na Tabela 2, foram criados com base numa frequência mínima de 10 e ordem média de evocações de 2,85.

Assim, a estrutura representacional do estímulo pandemia, teve como elementos centrais os termos: “doença”, “medo”, “mundo”, “pânico”, “caos”, “mundial”, “global”, “surto” e “perigo”. Já em relação a primeira periferia, destacam-se os vocábulos: “morte”, “isolamento”, “cuidado”, “vírus” e “crise”, já na zona de contraste encontram-se os vocábulos “contágio”, “grave”, “pessoas”, “epidemia”, “contaminação”, “OMS”, “coronavírus”, “transmissão”, “disseminação”, “continente” e“espalhar”. Por sua vez, no sistema periférico distante, ou segunda periferia, tem-se os elementos: “risco”, “desespero”, “prevenção”, “quarentena”, “países”, “alerta”, “preocupação”, “controle”, “descontrole”, “china”, “globalização”, economia”, “governo”, “tratamento”, “atenção”, “população”, “SUS” e “higiene”.

Tabela 2 Estrutura representacional da Pandemia 

Discussão

As análises prototípicas realizadas permitiram conhecer os elementos consensuais e as heterogeneidades que dão inteligibilidade às estruturas das representações sociais de brasileiros e brasileiras sobre o novo coronavírus e o que vem a ser uma pandemia. Os resultados das referidas análises indicaram diferenças e semelhanças nas representações desses objetos sociais, sinalizando que há uma compreensão consensual da gravidade de uma pandemia e que o novo coronavírus, através da doença que desencadeia, a COVID- 19, possui um status pandêmico.

Tais resultados revelam a importância da formação das representações sociais sobre um objeto ou fenômeno que surge na dinâmica social, como o novo coronavírus, instrumentalizando os grupos na decodificação dessa nova realidade. Nesse processo, enfatiza-se o papel da comunicação, formal ou informal, que permitiu tornar um conhecimento científico sobre o novo coronavírus e um estado pandêmico em um saber de senso comum, capaz de guiar as condutas sociais nesse cenário.

Especificamente, no que se referem aos resultados elucidados por meio da análise prototípica do estímulo coronavírus, é possível observar que os participantes organizam suas representações sobre o fenômeno em torno de elementos que apontam as suas consequências (“doença”, “pandemia”, “epidemia”); a sua definição (“vírus”); a forma como se revela (“gripe”); e as implicações afetivas que provoca (“medo”). Nota-se que estes elementos se organizam em um sistema de categorias que se apresentam como familiares e funcionais, considerando-se que tais termos parecem estar facilmente disponíveis na memória dos participantes. Estes elementos revelaram que é compartilhada pelos participantes da pesquisa, a compreenssão de que o novo coronavírus é um fenômeno de proporção mundial, que não apenas tem impacto sobre a saúde física dos indivíduos, como também, desencadeia um sofrimento emocional, que pode ser devido ao risco de contaminação e suas consequências.

No que se refere aos elementos centrais do objeto pandemia, observa-se que estes se encontram relacionados com a representação que se tem do novo coronavírus. De modo semelhante ao estímulo anterior, os participantes ancoraram suas representações da pandemia principalmente nos vocábulos “doença” e “medo”. Apesar destes termos também aparecerem no núcleo central referente ao novo coronavírus, aqui, os vocábulos surgiram como sendo os mais salientes. Isso pode estar relacionando à própria compreensão de pandemia apresentada pelos participantes, ancorada nos elementos “caos” e “perigo”, o que provoca na população sentimentos como o medo e o pânico. Sublinha-se, ainda, que a representação da pandemia se ancorou também nos termos “mundo”, “mundial”, “global” e “surto”, o que indica o conhecimento dos respondentes acerca das proporções globais do fenômeno.

Destaca-se que os elementos medo e pânico, que compõem o núcleo central de ambos os estímulos, também foram observados nas representações sociais de outras pandemias, como a emergência de saúde pública provocada pela de gripe H1N1 em 2009 (Sousa & Dall’Agnol, 2013). Esse dado demonstra que, embora os estados pandêmicos causados por agentes infecciosos sejam registrados no campo da saúde pública há séculos, estes ainda causam na população os sentimentos de ameaça e insegurança. Isto ocorre, possivelmente, pela mudança no padrão das doenças infecciosas e pela dinâmica de transmissão de seus agentes que, sendo desconhecidos, provocam sentimentos e estados como os observados. Ademais, considerando as funções geradora e organizadora que o sistema central de uma representação possui (Abric, 2003), observa-se que “doença”, “medo” e “pânico”, elementos centrais que são evocados tanto para se falar sobre o novo coronavírus, quanto do estado de pandemia, parecem estar na base dos significados que são atribuídos aos referidos fenômenos, assim como organizam o modo como os brasileiros compreendem e falam acerca dos mesmos.

Nesse aspecto, ressaltam-se a importância e a urgente necessidade do apoio psicológico e do suporte psicoterápico junto à população. Estes, viabilizam e promovem (re)significações das condições que são impostas as pessoas devido a pandemia da COVID-19 através, por exemplo, de ações psicoeducativas, técnicas de relaxamento e respiração para o controle de sinais e sintomas que são originados e/ou potencializados no contexto pandêmico, contribuindo, dessa forma, com o bem-estar físico e psíquico da população atendida (Duan & Zhu, 2020; Fiorillo & Gorwood, 2020). Tais ações podem ser realizadas, inclusive, através de plataformas online, respeitando assim a necessidade de distanciamento físico.

Com relação aos resultados observados nas zonas periféricas próximas, observa-se que tais elementos dão dinamicidade às representações sociais do novo coronavírus e do que vem a ser uma pandemia, atribuindo-lhes um significado, bem como sustentação ao núcleo central destes fenômenos. As análises de ambos os estímulos indicaram semelhanças na forma de representar estes dois fenômenos, especialmente em relação à associação com a morte e as medidas de prevenção e contenção do estado pandêmico da COVID-19. Entretanto, apesar da frequente associação do novo coronavírus e do estado de pandemia com a morte, vale salientar que, de acordo com dados epidemiológicos, apenas 5% das pessoas infectadas pelo referido agente infeccioso desenvolvem a forma mais grave da doença que, quando não controlada, pode acarretar uma infecção generalizada no organismo, levando ao óbito (Velavan & Mayer, 2020; Villegas-Chiroque, 2020).

Outro aspecto que chama atenção nos elementos periféricos próximos da estrutura representacional do novo coronavírus e da pandemia, é à apropriação pelos participantes da sintomatologia típica (tosse, febre, espirro e infecção) desenvolvida pelas pessoas infectadas (Huang et al., 2020). Isso evidencia que os participantes desse estudo estão objetivando o conceito relativo ao novo coronavírus, a partir, essencialmente, dos sintomas que este desencadeia nos infectados. De forma prática, essa representação social pode instrumentalizá-los para a identificação precoce de quadros suspeitos da COVID-19, seja com eles mesmos ou com pessoas de seu convívio, facilitando a busca dos serviços de saúde para diagnóstico. Esta concepção parece muito funcional, tendo em vista que uma representação social tem o poder de guiar condutas na dinâmica social (Moscovici, 2017). Assim, de posse do conhecimento de que a atual situação causada pela COVID-19 requer “cuidado”, “prevenção” e “higiene”, o grupo pesquisado pode desenvolver estratégias que viabilizem essas práticas sociais, como, por exemplo, seguir as orientações preconizadas pelos órgãos de saúde para enfrentamento dessa pandemia.

Tomando por base as especificidades na forma de representar os dois fenômenos investigados, nota-se que as representações da pandemia nos sistemas periféricos próximos trazem elementos, assim como no núcleo central, que sinalizam o conhecimento do alcance desse fenômeno, bem como das consequências que provoca na dinâmica mundial. Consoante, para os participantes dessa pesquisa e para a literatura especializada, uma pandemia configura-se como um momento de emergência internacional de saúde pública, marcada pela dificuldade de controle da transmissão de um vírus e/ou doenças infectocontagiosas, que oferece perigo à vida das pessoas (Duan & Zhu, 2020; McIntyre, 2019). Ressalta-se, portanto, que reconhecer a gravidade da pandemia da COVID-19 pode ser crucial para a adesão e o engajamento em medidas profiláticas e de contenção, uma vez que a representação social que se tem de um objeto social contribui para a orientação do comportamento frente a ele (Moscovici, 2017).

Com relação ao sistema periférico distante do novo coronavírus, que incorpora elementos que evidenciam as experiências e as histórias individuais dos participantes deste estudo, mostrando-se mais sensível à influência do contexto social imediato, verificou-se que tais experiências individuais são perpassadas pela compreensão dos cuidados necessários para a não disseminação do vírus, bem como sobre agentes de cuidado para o tratamento de pessoas contagiadas. Ademais, indica-se a necessidade de medidas mais eficazes frente ao vírus, evidenciada pelos vócabulos “vacina” e “imunização”.

No que se refere ao sistema periférico distante do estímulo pandemia, aponta-se as aproximações existentes entre a forma de compreender este fenônemo e as representações acerca do novo coronavírus, especialmente em relação aos riscos de uma doença infectocontagiosa, bem como os aspectos profiláticos necessários para a contenção do estado pandêmico. Nesse contexto, destaca-se a palavra “China”, que pode ter surgido, neste momento histórico, em virtude da associação no imaginário social da origem da COVID-19 neste país.

Tendo em vista que os sistemas periféricos próximos e distante, de acordo com a abordagem estrutural da TRS (Abric, 2003), permitem o ajustamento às mudanças que acontecem no meio social, intuindo que um objeto social se adapte à realidade concreta da população, constata-se que os sistemas aqui apresentados demonstraram uma apropriação do que a literatura pertinente retrata acerca do SARS-CoV-2 e de um estado pandêmico.

Entretanto, faz-se pertinenete refletir que a apropriação dos participantes acerca do que a literatura especializada relata sobre o novo coronavírus (definição, sintomas e formas de prevenção) e sobre os estados pandêmicos (seu alcance e as consequências que provoca) pode estar atrelada ao grau de escolaridade dos mesmos, considerando que a amostra da presente pesquisa é formada, majoriatariamente, por indivíduos que possuem o Ensino Superior. Nesse sentido, supõe-se que esta parcela da população teria acesso a informações do universo reificado das ciências sobre o novo coronavírus e o estado de pandemia, e assim, suas representações estariam ancoradas no que as pesquisas científicas veiculam sobre os fenômenos estudados. A partir disso, levantam-se os seguintes questionamentos: será que sujeitos com menor grau de escolaridade ancorariam de forma diferente ao observado no presente estudo as representações sociais acerca do novo coronavírus e da pandemia? Supõe-se que os marcadores sociais em questão provocariam diferentes representações dos fenômenos em análise.

Vale salientar ainda, que os resultados aqui apresentados foram encontrados em um período relativamente curto (três primeiras semanas do novo coronavírus presente no Brasil) de convivência da população brasileira com esse novo fenômeno. Nessa direção, este estudo resulta para a literatura especializada como uma contribuição singular, uma vez que apresenta a estrutura representacional da gênese das representações sociais do novo coronavírus para o contexto brasileiro.

Assim, é importante considerar a dinamicidade das representações sociais, compreendendo que mudanças na realidade prática dos grupos implicam em modificações na forma de representar e se comportar diante de um dado fenômeno. Indica-se, portanto, a pertinência de que, no futuro, quando os efeitos do novo coronavírus forem mais palpáveis para o cenário brasileiro, realize-se uma nova investigação sobre sua estrutura representacional, comparando-a, inclusive, com o presente estudo.

Sugere-se, também, que estudos futuros busquem investigar, de forma sistematizada, a relação entre as representações sociais da pandemia da COVID-19 e o comprometimento com as medidas de prevenção e contenção do coronavírus que a provoca. Um estudo dessa natureza pode contribuir para identificar representações disfuncionais, que minimizam ou distorcem os efeitos dessa doença. Com isso, podem-se instrumentalizar ações interventivas, planejadas com vistas a ampliar a estrutura representacional e reestruturar crenças dos diferentes grupos sociais sobre a gravidade dessa doença, conscientizando-os para a necessidade de cuidados preventivos.

Ainda nessa perspectiva, considerando os desafios para contenção da pandemia da COVID-19, bem como a premência de colaboração direta dos indivíduos, sugere-se que novos estudos visem identificar as dificuldades encontradas por estes no cumprimento das recomendações dos órgãos oficiais de saúde. É de suma importância que estas investigações considerem possíveis diferenças em função do perfil socioeconômico dos participantes. Reconhecer que as diferenças sociodemográficas podem implicar no engajamento ou não nas medidas profiláticas para contenção do novo coronavírus possibilitará a formulação de um modelo de intervenção específico para cada grupo social, considerando as suas fragilidades e potencialidades.

Ademais, dada a importância da comunicação na construção e no compartilhamento de representações sociais sobre o novo coronavírus, bem como a necessidade da veiculação adequada de conteúdos pela imprensa, recomenda-se que futuros estudos considerem também as fontes utilizadas pelos participantes para obter informações sobre esse vírus e a doença que ele provoca. Mais do que a mera categorização das fontes de informações, propõe-se que se observem também os sistemas de comunicação (difusão, propagação e propaganda) mais comumente utilizados pelo canal informativo ao falar sobre o novo coronavírus. Isso porque, conforme indicado por Moscovici (2017), a depender do sistema empregado, produz-se um tipo de conduta específica diante do objeto representacional.

Sublinha-se a importância que as novas pesquisas visem suprir as limitações do presente estudo, tais como uma amostra equitativa de homens e mulheres, bem como uma quantidade semelhante de participantes por região do país. Adicionalmente, sugere-se a ampliação do questionário sociodemográfico, a fim de tipificar melhor de quem são as representações sociais encontradas. Para tanto, aconselha-se que se investigue, por exemplo, o tipo de moradia, a vinculação a planos de saúde e a profissão dos participantes, pois estes podem ser marcadores na forma de estruturar as representações sociais sobre o novo coronavírus e a pandemia.

Além do desenvolvimento de estudos, ressalta-se, ainda, a importância de que os profissionais e os órgãos de saúde, assim como a mídia e as instâncias governamentais, conheçam as representações sociais da população sobre o novo coronavírus e o que vem a ser uma pandemia para construção de intervenções que considerem, dentre outros aspectos, os fatores psicossociais que perpassam o atual fenômeno. Assim, denuncia-se que não basta apenas produzir e veicular conteúdos sobre prevenção, sintomas, medidas curativas e gravidade desse vírus, mas, para além disso, faz-se necessário e preponderante a criação de linhas de apoio psicossocial para a população que sofre em face ao novo cenário que lhes é imposto.

Referências

Abric, J. C. (2003). Méthode d'étude des représentations sociales (1st ed.). Érès. [ Links ]

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Recebido: 03 de Setembro de 2020; Aceito: 14 de Setembro de 2020

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