As maiores queixas observadas nos indivíduos idosos estão atreladas à cognição, sendo algumas caracterizadas pelos processos demenciais. A demência é uma das principais causas de incapacidade e morte que afeta cerca de 5% daqueles com idade acima de 65 anos; já os longevos apresentam alto risco de desenvolver demência com prevalência de até 40% (Corrada et al., 2008; Whalley et al., 2016).
No último censo nacional brasileiro foi observado que pessoas com 80 anos ou mais de idade correspondiam a 14,3% do total de idosos do país e 1,5% da população nacional (IBGE, 2010). Frente a esses dados, a probabilidade de o indivíduo desenvolver demência seria maior e, isso traria grandes consequências clínicas e financeiras para os pacientes, suas famílias e a sociedade como um todo (Brookmeyer et al., 2007).
O enriquecimento cognitivo ao longo da vida é cada vez mais visto como uma estratégia protetora contra o declínio cognitivo em idosos (Verumi et al., 2014). E um número considerável de idosos permanece cognitivamente normal na idade avançada, em parte pela influência de fatores protetores com relação ao comprometimento cognitivo (Legdeur et al., 2018). Estudos demonstraram que alguns dos componentes do enriquecimento intelectual, tais como a educação e a ocupação principal (Karp et al., 2004; Qiu et al., 2003), e atividades cognitivamente estimulantes são protetores contra o declínio cognitivo e a demência do tipo Alzheimer (Sattler et al., 2012).
Ainda, a participação social e a estimulação ambiental em ambientes enriquecidos promovem mudanças morfológicas e funcionais no cérebro, levando à amplificação das funções cognitivas (Balthazar et al., 2018). Fatores como escolaridade (Arenaza-Urquijo et al., 2017) e atividades cognitivas que envolvam jogos online, acessar e-mails e internet representam potentes protetores da cognição (Then et al., 2017). A participação em atividades avançadas de vida diária (AAVDs) exige melhor desempenho cognitivo, e confere proteção à cognição durante as fases finais da vida (Then et al., 2017).
As AAVDs baseiam-se em condutas intencionais envolvendo o funcionamento físico, mental e social e permitem ao indivíduo o desenvolvimento de múltiplos papéis sociais, a manutenção de uma boa saúde mental e de boa qualidade de vida (Reuben & Solomon, 1989). As AAVDs, também consideradas como atividades complexas de vida diária, exigem a integridade de múltiplas funções físicas, psicológicas, sociais e cognitivas para sua execução e envolvem a realização de atividades dentro das dimensões de participação em atividades sociais, produtivas e de lazer, tais como: habilidades para manter o trabalho, viajar e planejar viagens, participação em grupos ou movimentos comunitários, dirigir, planejar eventos ou jogar (De Vriendt et al., 2012). A instalação e o aumento gradual do declínio cognitivo, associado com padrões específicos de perdas funcionais, provoca prejuízos na execução das AAVDs (De Vriendt et al., 2013).
Para tanto, o objetivo do presente estudo foi avaliar a associação entre cognição e atividades avançadas de vida diária em amostra de idosos longevos brasileiros residentes na comunidade.
Método
Participantes e delineamento
Trata-se de um estudo transversal envolvendo amostra de 205 idosos, com 80 anos ou mais de idade, que utilizou dados secundários do estudo FIBRA de 2016/17.
A partir do banco de dados dessa primeira coleta, ocorrida no ano de 2008/09, foi possível identificar os idosos que completariam 80 anos de idade em 2016, além dos respectivos endereços. No estudo de delineamento, os domicílios dos participantes de Campinas e Ermelino Matarazzo foram revisitados por uma dupla de entrevistadores treinados. Após esclarecimentos sobre a pesquisa e confirmada a intenção de participar, cada idoso assinava um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). O projeto e o TCLE foram aprovados pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Campinas (parecer nº 1.332.651). Os idosos que preenchiam critérios de inclusão e exclusão completaram a entrevista. Os critérios de inclusão foram os seguintes: 80 anos de idade ou acima, ausência de sinais evidentes de demência e ser residente permanente na localização geográfica. Os critérios de exclusão foram: 1. comprometimento cognitivo sugestivo de demência; 2. estar em cadeira de rodas ou acamado; 3. deficiências motoras ou cognitivas devido a acidente vascular cerebral prévio; 4. doença de Parkinson moderada ou grave; 5. deficiências visuais ou auditivas graves; e 6. doença grave descompensada ou doença terminal.
Os participantes completaram um bloco de medidas que incluíram informações sociodemográfica, Mini-Exame do Estado Mental (MEEM), medidas antropométricas e parâmetros de fragilidade. A pontuação total do idoso no MEEM era comparada com o ponto de corte para demência ajustado aos anos de escolaridade (Brucki et al., 2003). Caso as pontuações do MEEM estivessem abaixo dos limites de escolaridade ajustados, o restante do protocolo era preenchido por um cuidador ou familiar. Detalhes desse estudo, recrutamento e variáveis podem ser encontrados em outra publicação (Neri & Yassuda, 2019). A figura 1 detalha a formação da amostra. Os participantes incluídos nas presentes análises são aqueles representados na primeira caixa à direita.
Instrumentos e procedimentos
As variáveis sociodemográficas compreenderam gênero, faixa etária, e escolaridade. A faixa etária compreendeu 2 grupos: os idosos de 80 a 84 anos e os de 85 anos e mais. A escolaridade foi dividida em 4 grupos: nunca estudou; 1 a 4 anos de estudo; 5 a 8 anos de estudo e 9 anos de estudo para mais.
A cognição foi avaliada pelo MEEM (Brucki et al., 2003; Folstein & Folstein, 1975), sendo classificada como variável numérica.
As AAVDs foram avaliadas por meio de um inventário construído com base na literatura sobre atividades avançadas ou complexas da vida diária (Baltes et al., 1993). O instrumento continha questões fechadas de autorrelato sobre a participação em AAVDs. As opções de resposta eram “nunca fez”, “parou de fazer” e "ainda faz”, relacionadas às seguintes atividades: ir a reuniões sociais e a eventos culturais; exercer trabalho voluntário, participar de diretorias, universidades da terceira idade e grupos de convivência; usar internet para se informar e usar e-mail para comunicação com outras pessoas.
Análise de Dados
Os dados foram analisados por meio do software estatístico Stata 15.0. Após realização do teste Shapiro-Wilk, observou-se que a variável MEEM não apresenta distribuição normal. Assim, optou-se pelos testes não-paramétricos Mann-Whitney e Kruskal-Wallis para análise da relação do MEEM com as variáveis independentes do estudo. O modelo linear generalizado (GLM) foi adotado para analisar o efeito do MEEM sobre as AAVDs dos idosos, quando ajustados por variáveis socioeconômicas. O nível de significância adotado para todas as análises foi de 5% (p < 0,05).
Resultados
A amostra do estudo foi composta por 205 idosos com idade média de 83,8 (±3,59). Destes, 138 (67,6%) eram do sexo feminino. Os participantes obtiveram um bom desempenho cognitivo na avaliação global da cognição pelo MEEM, com média de 24,9 (±2,89). Do total, 60,4% declararam ter escolaridade entre 1 a 4 anos. Em relação às AAVDs, destaca-se que 42,6% idosos informaram que ainda participam de eventos culturais. Em relação ao trabalho voluntário, 21,67% idosos ainda praticam o trabalho voluntário, 5,8% participam de diretorias e 6,86% frequentam as Universidades Abertas à Terceira Idade (UnATI). Somente 10,2% deles utilizam e-mail para comunicação com outras pessoas e 8,8% fazem uso da internet para compras e movimentação da conta bancária (Quadro 1).
Nota: n: amostra; AAVD: Atividade Avançada de Vida Diária; UnATI: Universidade Aberta à Terceira Idade; as somas das frequências não são idênticas em todas as variáveis porque, em cada uma delas, ocorreu diferente número de não-resposta.
No Quadro 2 é apresentado o resultado da estatística analítica. O MEEM não mostrou associação com as variáveis UnATI (p = 0,67), faixa etária (p = 0,18) e sexo (p= 0,71). No entanto, houve associação do MEEM com escolaridade, participação em eventos culturais, realização de trabalho voluntário, participação em diretorias, acesso ao e-mail e utilização da internet (p < 0,001).
Nota: MEEM: Mini-Exame do Estado Mental; AAVDs: Atividades Avançadas de Vida Diária; DP: desvio padrão; M: média; MD: mediana; UnATI: Universidade Aberta à Terceira Idade; p-valor referente ao teste de Kruskal-Wallis
O Quadro 3 mostra o efeito da pontuação no MEEM sobre as AAVDs dos idosos longevos, ajustado por gênero, faixa etária e escolaridade. As AAVDs que apresentaram associação significativa com os resultados no MEEM após ajuste foram trabalho voluntário e diretoria.
Discussão
O presente estudo objetivou explorar a relação entre a cognição, avaliada pelo MEEM, e AAVDs. Observou-se maior prevalência de mulheres (67,6%) e com idade entre 80 a 84 anos (65,8%). Resultados semelhantes foram encontrados também em outros estudos nacionais com idosos octogenários (Belintani et al., 2017; Campos et al., 2016), reforçando a ideia de que no Brasil os ganhos na esperança de vida da população idosa ao nascer foram maiores do que os obtidos pela população total, indicando que, em 2013, um homem que completasse 60 anos pode esperar viver mais 19,3 anos, e uma mulher, mais 22.7 anos (Camarano & Kanso, 2016).
Os resultados desta pesquisa mostram associação entre cognição e envolvimento em AAVDs. Sabe-se que as AAVDs são influenciadas pela cultura na qual o indivíduo está inserido e por fatores motivacionais (Reuben & Solomon, 1989). Não há consenso na literatura ao se discutir os componentes das AAVDs e sua padronização. Enquanto alguns estudos focam em atividades sociais (Buchman et al., 2009; James et al., 2011), outros focam em atividades cognitivas (Fratiglioni et al., 2004; Geda et al., 2011).
Reuben e Solomon (1989) consideram as AAVDs mais desafiadoras do ponto de vista cognitivo do que as atividades básicas de vida diária (ABVDs) e das atividades instrumentais de vida diária (AIVDs) e são também mais vulneráveis ao declínio cognitivo. Como o presente estudo, o de Sposito, Neri, e Yassuda (2016) observou que escolaridade, renda familiar, gênero, idade e AAVDs intelectuais como assistir televisão, costurar ou fazer trabalhos artesanais, jogos de mesa e leitura são significativamente associados com o desempenho no MEEM, o que pode sugerir que as oportunidades do ambiente que são mais especificamente moduladas por aspectos socioeconômicos, como renda e escolaridade, relacionam-se com a preservação da função cognitiva no envelhecimento.
Nosso estudo obteve associação significativa entre MEEM e escolaridade. É sabido que a exposição à escolaridade e as atividades complexas ao longo da vida podem favorecem a conservação da capacidade cognitiva e a resistência a danos neurais (Fratiglioni et al., 2001). A literatura internacional também aponta que ter nível elevado de educação protege idosos mais velhos da demência (Rastas et al., 2010; Skoog et al., 2017).
O trabalho voluntário, diretoria e conselhos foram associados à cognição e podem contribuir para melhor funcionalidade e promoção do envelhecimento ativo. No estudo longitudinal de Menec (2003), o voluntariado foi preditivo de melhor função no desempenho de atividades diárias (Menec, 2003). O desempenho de atividades voluntárias envolve fatores motivacionais e relações prazerosas, indo além do significado de uma vida independente na comunidade na medida em que permite viabilizar os papéis sociais e interesses dos idosos (Dias et al., 2015).
As atividades de lazer (como ir ao teatro, cinema, exposições) e desempenho cognitivo em idosos longevos não apresentaram associação significativa na estatística analítica, contrariando os achados de Wang et al. (2002), em que se verificou que a participação frequente em atividades mentais, sociais e produtivas foram associadas à menor risco de demência em pessoas idosas. O estudo de Sörman (2015) identificou que atividades de lazer podem ser protetoras quanto à incidência de demência em um período de tempo entre seis e dez anos que atividades de lazer mentalmente estimulantes podem contribuir para redução do risco de demência e de comprometimento cognitivo. Entretanto, pouco se sabe sobre os níveis normativos das atividades de lazer e engajamento social entre idosos longevos e os fatores que explicam o aparente declínio associado à idade entre os idosos normais.
O acesso à internet e ao e-mail também não demonstraram associação significativa com a cognição, indo contra alguns estudos que sugerem que o acesso à internet e à e-mail funcionam como fator protetivo para pior desempenho cognitivo (Thern et al., 2017; Xavier et al., 2014).
Em suma, ainda não há um consenso sobre o mecanismo pelo qual as AAVDs atuam como protetoras do declínio cognitivo em idosos (Maier & Klumb, 2005; Wang et al., 2002). A comunidade científica sugere que os padrões de atividade avançadas de vida diária e as redes neurais relacionadas que são estabelecidos no início da vida possam ser importantes para manutenção do bom desempenho cognitivo na velhice, no sentido de minimizar os efeitos da diminuição da velocidade de processamento cognitivo (Salthouse, 1996; Wang et al., 2002). A exposição a ambientes complexos com experiências cerebrais estimulantes ao longo da vida, relacionadas a variáveis sociodemográficas e de funcionalidade, como alta escolaridade, atividades laborais mais complexas e atividades de lazer, poderiam promover crescimento neuronal e favorecer a neuroplasticidade (Dias et al., 2015).
Em relação às potencialidades, podemos citar o fato de que se trata de um estudo de base populacional transversal. Além disso, é pouco explorada em estudos brasileiros a relação entre a realização de AAVDs e o desempenho cognitivo entre idosos longevos.
Dentre as limitações desse estudo, podemos destacar que os dados sobre a prática de AAVDs são de autorrelato, e assim, passiveis da influência de vieses da memória ou da desejabilidade social. A ausência de instrumentos padronizados para a avaliação de AAVD dificulta a comparação dos dados com os coletados em outras regiões brasileiras. Informações a respeito da intensidade, da frequência e da duração de cada atividade realizada não foram coletadas e computadas, o que igualmente impede comparações mais refinadas. Teria sido vantajoso avaliar funções cognitivas por meio de uma bateria de medidas e não apenas por meio de teste de rastreio cognitivo.
Pesquisas futuras, de natureza longitudinal poderão beneficiar a compreensão das relações entre a prática de atividades sociais complexas na vida adulta e na velhice, cujo desempenho implica em maior exigência das funções cognitivas, da funcionalidade física e da motivação do que as atividades instrumentais e básicas de vida diária, em idosos mais longevos. A mediação dessas relações por fatores protetores de natureza educacional, social e cultural é outra área que merece investimentos no Brasil, pensando tanto na teoria como na promoção da saúde física e cognitiva ao longo da vida e na velhice. Esses conhecimentos poderiam alicerçar a promoção do envelhecimento ativo, representado pela prática contínua de AAVDs, por parte de serviços de atenção pertencentes às esferas municipais, estaduais e federais.
Aprovação ética
Todos os autores declaram apoio à pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) [16/00084-8].
Os participantes foram incluídos após os pesquisadores receberem o consentimento informado assinado e aprovado pelo comitê de ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).