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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.22 no.2 Lisboa set. 2021  Epub 31-Ago-2021

https://doi.org/10.15309/21psd220220 

Artigos

Doença crônica infantil: incerteza de cuidadores versus complexidade da doença

Childhood chronic disease: uncertainty of caregivers against complexity of the disease

Leiliane Fernandes1  2 

Mariana Santos2 

Neusa Collet2 

Vanessa da Nóbrega2 

1Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Hospitalar, Hospital Universitário Lauro Wanderley, João Pessoa, Brasil, leilianeufpb@gmail.com

2Programa de Pós-graduação em Enfermagem - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil, mari_britomatias@hotmail.com, neucollet@gmail.com, nessanobregam@hotmail.com


Resumo

A complexidade da doença crônica infantil pode refletir no nível de incertezas da família e influenciar nos cuidados prestados. Desse modo, objetivou-se verificar a associação entre a complexidade de necessidades de atenção das crianças com doenças crônicas e o nível de incertezas de seus cuidadores principais. Realizou-se estudo transversal, quantitativo, entre dezembro/2017 e outubro/2018 na Clínica Pediátrica de um hospital universitário, no Brasil. A coleta de dados ocorreu com 35 cuidadores principais dessas crianças por meio de questionário de dados sociodemográficos do cuidador/criança, questionário de classificação da complexidade da doença crônica na criança e Escala de Mishel Uncertainty in Illness Scale for Family Members. Na análise foi utilizada estatística descritiva, teste t-Student e teste exato de Fisher. Os resultados evidenciaram a predominância da faixa etária entre 21 e 30 anos (61,8%) com o primeiro grau de instrução (57,1%) e 77,1% médio nível de incertezas. Identificou-se a influência do tempo de internação como possível identificador de casos mais complexos. Dos casos, 45,7% apresentou baixa complexidade de necessidades especiais e cursou com um médio nível de incertezas. Entretanto, 14,3% dos casos de baixa complexidade apresentaram níveis mais altos de incerteza do que os de média complexidade (8,6%), evidenciando independência entre as variáveis incertezas e complexidade da doença crônica. O estudo revelou a desassociação entre a complexidade da doença crônica e o nível de incertezas dos cuidadores, revelando um caráter multidimensional da incerteza como a influência da idade, grau de instrução, tempo de internação.

Palavras-Chave: Incerteza; cuidadores; doença crônica; criança

Abstract

Chronic childhood illness’ complexity can reflect on a family's level of uncertainty and influence the care provided. Thus, the objective was to verify the association between care needs’ complexity of children with chronic diseases and the level of uncertainties of their main caregivers. A cross-sectional, quantitative study occurred between December/2017 and October/2018 in the Pediatric Clinic of a university hospital in Brazil. Data collection occurred with 35 main caregivers of these children through a questionnaire of the caregiver/child sociodemographic data, a questionnaire for the classification of the complexity of the chronic disease in the child and the Mishel Uncertainty in Illness Scale for Family Members. Descriptive statistics, Student's t-test and Fisher's exact test were used in analysis. The results showed the predominance of the age group between 21 and 30 years old (61.8%), completed Elementary and Middle School (57.1%) and 77.1% medium level of uncertainty. The length of hospitalization influence was identified as a possible identifier of more complex cases. 45.7% of cases had low complexity of special needs and had a medium level of uncertainty. However, 14.3% of low complexity cases had higher levels of uncertainty than those of medium complexity (8.6%), showing independence between the variables uncertainties and complexity of the chronic disease. The study revealed this association between the complexity of chronic disease and the level of uncertainties of caregivers, revealing a multidimensional character of uncertainty such as the influence of age, education level, length of hospital stay.

Keywords: Uncertainty; caregivers; chronic disease; child

No Brasil e no mundo, a incidência de doenças crônicas tem aumentado (Ministério da Saúde, 2011). O avanço da medicina proporcionou a sobrevivência de recém-nascidos com doenças anteriormente consideradas incuráveis, nos quais o gerenciamento de sua condição que antes restringiam-se ao ambiente hospitalar passou a ser realizado no domicílio. Assim, tanto esses indivíduos quanto suas famílias têm assumido a responsabilidade pela administração de medicamentos, dietas, modificações de estilo de vida, dentre outros (Gesteira et al., 2016). Frente à esse novo contexto, os cuidadores de crianças que convivem com essas doenças experienciam incertezas com o diagnóstico inesperado, processos de agudizações; insegurança com o futuro e a angústia em relação à situação de cronicidade (Alsaigh & Coyne, 2019; Silva et al., 2019). As doenças crônicas “apresentam início gradual, com duração longa ou incerta, que, em geral, apresentam múltiplas causas e cujo tratamento envolve mudanças de estilo de vida, em um processo de cuidado contínuo que, usualmente, não leva à cura” (Portaria n. 483, 2014, p. 2). O desconhecimento sobre a doença, ocorrido principalmente na fase do diagnóstico, faz o cuidador conviver com inseguranças, medos, indecisões diárias, incertezas que, somada ao sentimento de proteção de realizar tudo que estiver ao alcance, gera ainda mais demandas no núcleo familiar (Silva et al., 2019).

Diante do exposto, no decorrer da trajetória da condição crônica desses indivíduos, os cuidadores principais podem desenvolver muitas dúvidas que remetem ao conceito de incerteza na doença (Lise et al., 2018). Para melhor entender esse processo, a enfermeira Mishel desenvolveu a teoria da incerteza na doença, a qual é composta por quatro conceitos: ambiguidade, concernente à inabilidade na tomada de decisão, planejamento e implementação dos cuidados; falta de clareza, explicita as fragilidades nas explicações ou a dificuldade de compreensão das mesmas; falta de informação, relaciona-se à falta de clareza decorrente do não compartilhamento com a família das informações sobre o diagnóstico e a doença; imprevisibilidade, revela a inabilidade da família em realizar previsões diárias/futuras para a sintomatologia ou evolução da doença (Mishel, 1988).

Kerr e Haas (2014) encontraram cinco temas relacionados à incerteza: incerteza de normalização (capacidade de realizar atividades “normais”), incerteza de informação, incerteza na tomada de decisões e incerteza do estigma social, incerteza de complexidade (em relação ao risco de comorbidades ou extensão da doença para várias partes do corpo).

Diante da incerteza da complexidade da doença, quanto mais complexa for a situação, maiores as chances de crianças e adolescentes hospitalizados virem a permanecer dependentes de tecnologia e se tornarem criticamente crônicos. Dentro desse espectro, há uma gama de características e necessidades que se diferenciam por graus de complexidade no uso dos serviços de saúde, aporte tecnológico que garante suas funções vitais em espaços hospitalares ou domiciliares, e resultam em uma maior demanda por cuidados e hospitalização (Moreira et al., 2017).

Reconhecendo a relevância da complexidade dos cuidados no uso dos serviços, foi criada uma classificação da complexidade doenças crônicas em crianças e adolescentes para melhor organizar a assistência, baseadas nas necessidades de saúde de cada indivíduo (Cano et al., 2016), podendo ser utilizada para minimizar as incertezas vivenciadas pelo núcleo familiar.

Sendo assim, é importante que os profissionais de saúde possam corresponsabilizar-se por sanar as necessidades de segurança e certeza dessas famílias. Em especial, os enfermeiros por estarem mais próximos a esses indivíduos podem promover a compreensão dessa vivência (Mendes, 2020), pois é difícil aos usuários e seus familiares assumirem essa responsabilidade sozinhos, sendo necessária uma investigação de ações que aperfeiçoem esse autogerenciamento do cuidado na infância e adolescência (Araújo et al., 2020).

Considerando que as disfunções e necessidades dos indivíduos estão na mesma proporção das incertezas dos familiares (Mishel, 1997), a hipótese é que existe relação entre o nível de incertezas da família e a complexidade da doença da criança com doença crônica, e que esta poderia estar influenciando na perceção do cuidador e, consequentemente, em seu manejo familiar, necessitando ser valorizado enquanto critério para elaboração de estratégias distintas frente ao preparo para alta hospitalar. Diante disso, objetivou-se verificar a associação entre a complexidade de necessidades de atenção das crianças com doenças crônicas e o nível de incertezas de seus cuidadores principais.

Método

Tipo e local do estudo

Trata-se de um estudo transversal, descritivo de abordagem quantitativa desenvolvido no período de dezembro de 2017 a outubro de 2018 na Clínica Pediátrica (CP) de um hospital universitário no estado da Paraíba, Brasil, um dos serviços de referência ao atendimento e tratamento de crianças/adolescentes com doenças crônicas no Estado da Paraíba.

Participantes

Foram incluídos participantes que atenderam aos critérios de inclusão: ser cuidador acompanhante no processo de hospitalização de criança com doença crônica na faixa etária de 0 a 12 anos incompletos no período da coleta de dados; ser o principal cuidador da criança e responsável pelos cuidados domiciliares. Foram excluídos os acompanhantes cuja criança estivesse em investigação diagnóstica. Para o cálculo amostral foram consideradas as hospitalizações de crianças com doenças crônicas entre os anos de 2015 e 2016 no setor, sendo estabelecida uma amostra de 86 participantes, considerando nível de confiança de 95% e erro amostral de 5%. Entretanto, a admissão de crianças com doença crônica na clínica em estudo foi prejudicada em virtude de problemas internos (necessidade de dedetização do setor, falta de insumos, interdição do setor de nutrição) e externos (greve dos caminhoneiros) com repercussão na inclusão de participantes na pesquisa. Em decorrência desses problemas, as admissões foram interrompidas cerca de três meses que, associada a recusa de seis cuidadores (crianças com síndrome de Edwards, microcefalia, púrpura trombocitopênica idiopática, diabetes mellitus, asma, hipotiroidismo) em participar, inviabilizou atingir a amostra inicial. Portanto, a amostra final foi de 35 cuidadores principais de crianças com doença crônica, porém esta fornece elementos para a interpretação dos resultados porque corresponde a 85,3% dos casos elegíveis para o período.

Coleta dos dados

Para coleta de dados utilizou-se um instrumento composto por: dados sociodemográficos do cuidador (escolaridade, faixa etária, número de filhos, renda e município de residência) e da criança (sexo, faixa etária, tempo de internação), um quadro com os critérios de classificação da complexidade da doença crônica na criança (Quadro 1) e a Escala de Mishel Uncertainty in Illness Scale for Family Members.

Quadro 1 Classificação das crianças e adolescentes segundo a complexidade de necessidades especiais de atenção à saúde. 

Fonte: Cano et al. (2016, p. 227).

A criança pode ser classificada como de baixa, média ou alta complexidade em relação à exigência de cuidados de saúde. Foram consideradas crianças com necessidades especiais de baixa complexidade aquelas que tinham necessidades menores ou no máximo duas maiores, com exceção da presença de maior necessidade de alimentação ou assistência tecnológica, pois estas situações aumentam o nível de complexidade. Em geral, esses são pacientes estáveis e cuja família possui ferramentas que permitem o autocuidado domiciliar. Já as que convivem com doenças de média complexidade possuíam entre três e cinco necessidades maiores ou uma necessidade maior de alimentação e assistência tecnológica. Em suma, são crianças estáveis, contudo que exigem cuidados específicos no dia a dia. Por último, as crianças com necessidades especiais de alta complexidade possuem todas as necessidades em nível maior, sendo mais frágeis e limitadas em sua funcionalidade, requerendo mais hospitalizações (Cano et al., 2016).

Já a escala supracitada foi construída a partir da teoria da incerteza na doença de Mishel e escolhida por permitir a compreensão das incertezas dos cuidadores principais de crianças com doenças crônicas. A mesma é autoaplicável, contudo, para este estudo a pesquisadora mediou o preenchimento junto ao participante. A escala mensura o nível de incertezas em relação à doença dos membros da família com um parente doente, com pontuação máxima de 155 baseada na Escala de Likert, cujas respostas variavam entre concordo plenamente, concordo, indeciso, discordo e discordo plenamente, na qual quanto maior a pontuação, maior o nível de incerteza. Na pesquisa foi utilizada a versão adaptada e validada para o Brasil, composta por 31 itens divididos entre 04 subescalas: 1) ambiguidade dos sintomas (13 itens - 13 a 65 pontos); 2) falta de clareza (9 itens - 9 a 45 pontos); 3) falta de informação (5 itens - 5 a 25 pontos); e 4) imprevisibilidade (4 itens - 4 a 20 pontos) (Barbosa, 2012).

Análise dos dados

Para a classificação dos dados, os valores obtidos com a Escala de Mishel (EM) foram distribuídos em percentis. Considerou-se baixo nível de incertezas a pontuação entre 31-72; médio nível de 73-114; e alto nível de 115-155. Sendo assim, para avaliar a associação entre as incertezas dos cuidadores com o grau de complexidade da doença, utilizou-se o teste t-Student, escolhido pelo fato de que tanto os escores nas subescalas quanto o escore total da EM possuem distribuição normal segundo o teste de Shapiro-Wilk (P-valor > 0,05). Além disso, utilizou-se a estatística descritiva para os dados sociodemográficos e o teste exato de Fisher para avaliar a significância estatística utilizada na análise de tabelas de contingência, visto o pequeno tamanho da amostra.

Aspetos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital em estudo sob parecer nº 2.382.594 e norteado pelas diretrizes preconizadas na Resolução nº 466 (2012) do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados

A amostra foi constituída por 35 familiares, caracterizada conforme o Quadro 2. Esses cuidavam de crianças com doenças crônicas classificadas com necessidades especiais de atenção à saúde de baixa e média complexidade.

Quadro 2 Caracterização dos familiares cuidadores e da criança com doença crônica 

O município onde ocorreu maior registro dos casos de crianças com doenças crônicas foi João Pessoa, conforme a Figura 1.

Figura 1 Mapa de distribuição dos municípios dos cuidadores, Paraíba, Brasil. 

No tocante ao tempo de internação das crianças, observa-se uma alta variabilidade com valores de 3 a 56 dias, sendo que o mais frequente situava-se entre 10 a 20 dias (34,3%) seguido de períodos de internação que possuíam mais de 20 dias. Em 8,6% das internações a criança foi a óbito (n=3).

Em relação à associação entre as incertezas dos cuidadores medidas pela escala de Mishel e a complexidade da doença da criança, pode-se observar no Quadro 3 que as subescalas do instrumento de Mishel para avaliar as incertezas com a doença não se diferenciam por grau de complexidade Média ou Baixa.

Quadro 3 Médias descritivas dos escores da escala e subescalas Mishel e sua comparação com o teste t-Student. 

Nota: DP= desvio padrão

Segundo o teste de Fisher, não há associação entre o grau de complexidade da doença e o grau do escore Mishel (P-valor > 0,05) permitindo concluir a independência entre estas duas variáveis do Quadro 4.

Quadro 4 Comparação entre o grau de complexidade da doença e a classificação do Escore Mishel. 

Nota: EM = Escala de Mishel

A amostra apresentou apenas médios e altos níveis de incertezas. No Quadro 5 observa-se uma associação significante entre maior imprevisibilidade e maior classificação do escore EM e entre a faixa etária jovem adulto (< 30 anos) menor grau de incerteza EM (grau médio).

Quadro 5 Variáveis influentes no grau de incerteza da escala EM. 

Nota: EM = Escala de Mishel; RP= razão de prevalência; IC= índice de confiança

Discussão

O perfil da amostra atual corroborou o evidenciado por Silva et al. (2019) de que na maioria absoluta das famílias, tem-se a mulher como a principal cuidadora da criança e, em sua maioria, a genitora. Essa é a responsável por acompanhar o filho durante as internações hospitalares e consultas ambulatoriais (Gomes et al., 2016).

Smirni et al. (2019) evidenciaram que a incerteza sobre o impacto da condição no cotidiano da criança estava relacionada a sintomas psicológicos subsequentes para as mães, possivelmente decorrente dessa predominância da responsabilidade feminina pelo cuidado.

Sobre a estrutura familiar encontrou-se menor frequência de famílias com mais de três filhos, corroborando Alsaigh e Coyne (2019). Isso pode estar relacionado às implicações próprias do cuidado a uma criança com doença crônica que interferem na rotina da família. Innecco e Brito (2019) evidenciaram que é conflitante para a mãe o sentimento de querer estar presente na internação do filho que convive com doença crônica e também de não abandonar os demais membros da família. Já no tocante à idade, a faixa etária mais abrangente é de jovens adultas, evidenciando-se sua correlação com médio nível de incertezas. Esse achado pode indicar que as mães mais jovens buscam meios, como os digitais, para ajudar na redução do nível de incertezas, tornando-as menos ansiosas e refletindo para que não tenham atingido altos índices.

Tozzi et al. (2015) afirmaram que, em geral, pais que buscam informações em meios digitais sobre a doença de seus filhos, seja pelo celular ou tablet, conseguem uma melhora na compreensão e capacidade de gerenciar a condição de seus filhos. Assim, sentem-se mais seguros em manejar a doença do filho no cotidiano minimizando as incertezas.

Quanto à permanência média de 15 dias no hospital, identificada no presente estudo, infere-se que pode ser decorrente das dificuldades de manejo da doença em casa, o que influencia no estado geral da criança que chega ao hospital com quadro clínico mais agravado, necessitando, portanto, de maior tempo de hospitalização. Batalha (2017) afirmou que a gravidade da doença aumenta a probabilidade de a criança passar mais tempo internada e adquirir complicações e limitações.

O perfil da presente amostra evidenciou que as cuidadoras estavam acompanhando crianças majoritariamente com até três anos de idade. Isso ratifica Moreira et al. (2017) que demonstraram que as taxas de internação por condições crônicas de complexidade variável na infância estão concentradas nos primeiros quatro anos de vida.

Neste estudo evidenciou-se que a incerteza ligada à imprevisibilidade da doença influencia diretamente o escore total da Escala de Mishel, possivelmente porque o déficit de certezas quanto ao que poderá vir a acontecer gera maiores demandas de informações e clareza quanto a elas. No curso da convivência com a doença crônica, algumas delas são altamente imprevisíveis como a Doença Reumática Juvenil (DRJ), em que a incerteza é, muitas vezes, uma característica inalterável do curso da doença (Chaney et al., 2016). A imprevisibilidade envolve a inabilidade de previsão do futuro diante da possibilidade da piora da situação clínica e do aumento das necessidades de cuidado (Alsaigh & Coyne, 2019; Lise et al., 2018). A incapacidade de determinar a gravidade da doença é consistente com a caracterização de ambiguidade de Mishel como a incapacidade de determinar o significado dos eventos relacionados à doença, ao passo que não se sabe exatamente o que acontecerá quando reflete a imprevisibilidade da trajetória do tratamento (Stewart et al., 2010).

Em estudos de Alsaigh e Coyne (2019) e de Gomes et al. (2016), as mães referiram a falta de informação por parte dos profissionais de saúde sobre a condição de saúde da criança. Essa incompreensão pode ser um fator desencadeador de incertezas seja pelo déficit de informações, ou duplicidade das mesmas, gerando entendimentos ambíguos, sendo necessárias estratégias de feedback que permitam os profissionais averiguarem o nível de entendimento das famílias (Lise et al., 2018).

A incerteza resulta de um esquema cognitivo inadequado para interpretar o significado de eventos relacionados à doença, e leva à angústia psicológica se as respostas de enfrentamento forem insuficientes para manejar a excitação emocional negativa quando a incerteza não puder ser resolvida. Dois fatores parentais influenciam a incerteza das crianças: a incerteza dos pais, pois pode interferir em sua capacidade de apoiar a interpretação dos eventos relacionados à doença e as rotinas familiares que podem influenciar o grau em que as famílias são capazes de reforçar a “normalização” da vivência com a doença crônica (Stewart et al., 2010). Um fator preocupante sobre o nível de incertezas dos pais influenciar diretamente à incerteza de seus filhos é que essa aumenta o sofrimento psíquico das crianças ou adolescentes, tais como sintomas depressivos (Baudino et al., 2018; Petrongolo et al., 2019), além de ansiedade (Petrongolo et al., 2019). Sendo assim, ajudá-los a administrar sua própria incerteza reflete na experiência de adoecimento da criança/adolescente.

Desse modo, as incertezas podem trazer prejuízos para a saúde mental e física dos envolvidos e influenciar na recuperação da criança. Holm et al. (2008) encontraram que uma maior incerteza dos pais influencia o aumento de sintomas psicológicos ao longo do tempo em relação a outros pais e ocasionam aumento nos sintomas físicos. Quanto aos sintomas psicológicos, a incerteza interfere mais nas condições de sono e energia do que no humor das mães. As incertezas dos pais têm impacto nos resultados psicológicos de insegurança em seus filhos.

No que se refere à associação entre as incertezas e a complexidade da doença crônica, essa noção de complexidade é incorporada para qualificar e diferenciar as doenças crônicas e suas demandas de cuidados. Sendo assim, nesse estudo, foi evidenciada a não associação entre o grau de complexidade da doença e o grau do escore Mishel, o que permitiu concluir certa independência entre estas duas variáveis, em que é 1,11 vezes maior a chance de um Escore EM alto ter grau de complexidade média.

Ratificando o achado, Burström et al. (2019) afirmaram que o intuitivo é esperar que pais de crianças com problemas complexos sejam mais preocupados, e consequentemente tenham mais incertezas. Porém, evidenciaram que não houve diferença significativa na incerteza em relação à complexidade da doença para mães de adolescentes com distúrbios cardíacos em relação à transição dos cuidados, porém houve para os pais. Eles supõem que as famílias de adolescentes com doenças mais complexas têm maior frequência de acompanhamento médico, o que pode lhes gerar maiores informações e discussões com um profissional, e em geral, são as mães as acompanhantes regulares, o que pode justificar a maior incerteza apenas dos pais.

Primariamente, entendeu-se que, quanto maiores as disfunções e necessidades dos indivíduos, os familiares sentiriam incertezas na mesma proporção, visto que, Mishel entende que os indivíduos mais predispostos são os com diagnósticos de maior gravidade e menor grau de instrução (Mishel, 1997), pois seus testes verificaram que pessoas com menos de seis anos de instrução tinham maiores níveis de incerteza (Mishel, 1983).

A maior parte da amostra deste estudo possuía baixa complexidade de necessidades especiais, porém, revelaram níveis de incerteza mais altos do que os que conviviam com crianças de médio nível de complexidade. Todavia, a maioria dos entrevistados possuía até o primeiro grau de instrução o que, associado ao tempo de diagnóstico, pode ter influenciado para a permanência das incertezas. Não obstante, um maior tempo de diagnóstico pode estar relacionado à diminuição das incertezas visto que as famílias já teriam tido tempo para uma maior adaptação (Gondim & Carvalho, 2012).

Este estudo revelou o caráter multidimensional da incerteza dos cuidadores de crianças com doenças crônicas, tendo em vista que há vários aspetos, como idade, grau de instrução, tempo de internação que podem influenciar mais as incertezas do que a complexidade da doença crônica, refutando a hipótese inicial.

Como limitações do estudo pode-se apontar que o tamanho da amostra representou a totalidade de sujeitos disponíveis em um hospital de referência ao tratamento de crianças com doenças crônicas no Estado no período de coleta de dados. Como alternativa às limitações amostrais sugere-se novas pesquisas com uma amostra maior de cuidadores de crianças ou o uso de uma abordagem qualitativa para uma compreensão particular e profunda das dimensões do fenômeno.

Diante disso, pesquisas subsequentes podem avaliar os aspetos inerentes à incerteza das crianças com doenças crônicas e as interações entre desenvolvimento, estressores de doenças específicas, incerteza e resultados psicológicos, a fim de desenvolver intervenções para reduzir o impacto negativo da doença na qualidade de vida destes.

Referências

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Recebido: 03 de Abril de 2020; Aceito: 23 de Maio de 2021

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