O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado pela presença de um desenvolvimento anormal ou prejudicado nas interações sociais e na comunicação social, e de um repertório de atividades e interesses restritos e repetitivos. As manifestações do distúrbio variam de acordo com o nível de desenvolvimento e idade cronológica do indivíduo. (Descritores em Ciências da Saúde, 2018; Mansoor et al., 2018).
Alguns indivíduos com essa condição são capazes de levar vidas independentes e satisfatórias, enquanto para outros, o impacto pode ser grave, interferindo significativamente com qualidade de vida (Farley et al., 2009).
As crianças com TEA frequentemente oferecem uma colaboração limitada para procedimentos odontológicos, necessitando de estratégias para manejo de comportamento. As técnicas não-aversivas ou psicológicas são amplamente utilizadas para abordagem do paciente infantil, com a vantagem de não apresentarem nenhum limite relacionado ao seu uso por parte do profissional, responsáveis e pacientes. Com a finalidade de promover um atendimento de qualidade ao paciente odontopediátrico, o profissional pode lançar mão de um conjunto de técnicas de manejo de comportamento: dizer-mostrar-fazer (DMF), dessensiblização, controle da voz, reforço positivo, imitação ou modelagem e distração (Primo et al., 2012).
Essas técnicas de manejo do comportamento têm sido utilizadas com a finalidade de facilitar a realização de tratamentos odontológicos em crianças com TEA. Devido ao número crescente de diagnóstico dessa desordem, é importante que o cirurgião-dentista, independentemente de sua especialidade, possua informação adequada para realizar essas técnicas no atendimento odontológico. Sendo assim, o objetivo do presente estudo foi apresentar uma revisão de literatura, através de uma scopingreview, sobre a utilização de técnicas psicológicas no manejo do comportamento de pacientes com Transtorno do Espectro Autista no ambiente odontológico.
Método
A fim de executar a presenterevisão da literatura do tipo escopo,foi utilizada a estratégia de busca (autism[mh] OR autism[tiab] OR autistic disorder[mh] OR autistic disorder[tiab] OR autism spectrum disorder[mh] OR autism spectrum disorder[tiab] OR kanner syndrome[mh] OR kanner syndrome[tiab]) AND (behavior OR social behavior disorders OR behavior mechanism OR health behavior OR patient acceptance of self-care OR child behavior OR child behavior disorders OR behavior control OR problem control) AND (dental care OR dental care for disable OR comprehensive dental care OR dental care for children OR dentistry OR pediatric dentistry) adequada às base de dados Pubmed, Cochrane, LILACS e Scopus. Para a estratégia de busca foram usados descritores em saúde e termos livres correlacionados mais citados(palavras-chave) em publicações sobre o tema, pesquisadas através de busca manual, seguindo as regras de sintaxe de cada base de dados (Quadro 1).
Objetivando selecionar os estudos com evidência científica mais recentes, foram contemplados apenas aqueles dos últimos 10 anos, entre setembro de 2008 e setembro de 2018. Os artigos publicados em inglês que relataram a utilização de técnicas psicológicas ou não aversivas, dizer-mostrar-fazer, dessensibilização, controle da voz, reforço positivo, imitação ou modelagem e distração, para o manejo do comportamento de pacientes com TEA, visando o atendimento/tratamento odontológico, foram incluídos nesta revisão. Foram excluídos os artigos que relataram a utilização de técnicas aversivas e farmacológicas para o controle do comportamento desses pacientes e aqueles não relacionados à Odontologia ou ao TEA. As características dos estudos e os dados obtidos foram apresentados de forma descritiva.
Resultados
Inicialmente foram encontradas 242 referências sendo 133 no Pubmed, seis na Cochrane, 103 na Scopus e 0 no LILACS.As referências foram exportadas para o software gerenciador bibliográfico (Endnote®), no qual as duplicatas foram inicialmente removidas. Após a remoção das duplicatas restaram 202 referências, sendo 97 no Pubmed, 2 na Cochrane e 103 na Scopus. Em nova conferência removendo as duplicatas e os estudos com mais de 10 anos, restaram 159 estudos. Após a leitura de título e resumo por dois avaliadores independentes (YMCG/ AVBP) restaram 34 estudos. Considerando a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, 9 artigos foram incluídos nesse estudo. Foram excluídos ao total 151estudos, sendo 63 sobre medicina, 8 em animais, 1 in vitro, 53 não utilizaram técnicas de manejo do comportamento, 10 não incluíam pacientes com TEA, 11 utilizaram técnicas aversivas, 2 eram protocolos, 1 em Alemão, 1 em Francês. O Fluxograma está apresentado na Figura 1.
A maioria dos estudos incluíram pacientes entre 6 e 12 anos, com amostras constituídas por pacientes com diagnóstico de Transtorno do Espectro Austista de leve a levemente grave. Em 8 estudos foi realizada mais de uma consulta para dessensibilização e adaptação do paciente ao ambiente do consultório odontológico (AlHumaid et al., 2016; Cagetti et al., 2015; Cermaket al., 2015; Fakhruddin & El Batawi, 2017; Isong et al., 2014; Mah & Tsang, 2016; Nilchian et al., 2017; Orellana et al., 2013). Em apenas um estudo foi realizada consulta única (Murshid, 2017). A maioria dos estudos utilizou a modelagem como intervenção para manejo do comportamento, já que a técnica possui variados recursos como imagens ilustrativas, fotos e livros com as etapas do atendimento odontológico (Cagetti et al., 2015; Mah & Tsang, 2016; Murshid, 2017; Nilchian et al., 2017; Orellana et al., 2013). Foram observadas também possibilidades audiovisuais, como assistir a uma gravação em DVD de uma criança com desenvolvimento típico submetida a uma consulta odontológica (Isong et al., 2014), além da auto-modelagem que pode ser realizada com imagens ilustrativas (Orellana et al., 2013) ou óculos de vídeo (Isong et al., 2014). A distração audiovisual com óculos também foi um recurso utilizado a partir da utilização de vídeos, em que o filme favorito era exibido durante a consulta odontológica (Fakrunddin & El Batawi, 2017; Isong et al., 2014).
Um outro estudo realizou a intervenção com ambiente sensorial adaptado com cortinas de blecaute e efeitos de cores visuais, em movimento lento (Snoezelen-Controlled Multisensory Environment (MSE) que brilhavam no teto, no campo visual da criança (Cemark et al., 2015).
Um programa específico chamado D-TERMINED, foi usado num estudo em que foram utilizados três fatores de repetição: o contato visual (lembrando o paciente de olhar para o dentista frequentemente durante a visita), modelagem posicional (pernas para dentro em linha reta e mão em cima da barriga por 10 segundos) e contagem de tempo (contando verbal e repetidamente até 10 segundos, sempre completando o procedimento dentro desse tempo (AlHumaid et al., 2016).As características dos estudos incluídos e os dados pertinentes relatados estão descritos no Quadro 2.
Discussão
Na presente revisão, os efeitos das técnicas psicológicas como a dessensibilização, modelagem e distração mostraram um grande potencial para a cooperação e melhora no comportamento do paciente com TEA durante o atendimento odontológico (Cagetti et al., 2015; Fakhruddin & El Batawi, 2017; Isong et al., 2014; Mah & Tsang, 2016; Nilchian et al., 2017; Orellana et al., 2013). No entanto, não é possível a utilização de uma técnica que sirva para todos os pacientes devido aos diferentes níveis cognitivos dessa classe. É importante que se entenda as características dessa desordem, suas características associadas, as técnicasdisponíveis e terapias alternativas, para uma abordagem terapêutica individualizada para cada paciente (Blitz & Britton, 2010; Delli et al., 2013; Elmore et al., 2016; Marion et al., 2016; Sarnat et al., 2016; Zeidan-Chulia et al., 2011). Dessa forma, esta revisão da literatura contribui para formação de recursos humanos para o manejo do comportamento de pacientes com TEA no ambiente odontológico, com o tratamento e melhora na qualidade de vida desses pacientes.
Barreiras para acesso ao atendimento odontológico e ao hábito de escovação dentária têm sido relatadas em crianças com TEA devido à cooperação comprometida (Du et al., 2018). Em alguns estudos com tratamento estatístico dos dados por meio de análise de regressão, os seguintes fatoresforam associados com a incapacidade de cooperar durante o exame bucal: déficits cognitivos, desenvolvimento de habilidades sociais, desenvolvimento de habilidades de comunicação verbal, habilidades de leitura e comportamentos desafiadores (Du et al., 2018; Stein et al., 2014). Isso destaca a importânciade compreender o perfil dessa populaçãopara planejamento do atendimento e se preparar paradesafios na prestação de serviços (Du et al., 2015; Du et al., 2018; Limeres-Posse et al., 2014; Onol & Kirzioǧlu, 2018), para esse grupo de pacientes, que vem aumentando.
A presença de cárie em pacientes com TEA tem sido explorada em diversos estudos com resultados conflitantes (Gandhi & Klein, 2014). Segundo Mansoor et al. (2018), nos Emirados Árabes, crianças autistas apresentaram maior prevalência de cárie, higiene oral deficiente e necessidades não satisfeitas no tratamento. Já num outroestudo, realizado em Israel, pacientes com TEA tiveram menor prevalência de cárie quando comparados aos pacientes com desenvolvimento típico, podendo ser atribuído a: hábito de beliscar menos e a comer apenas quando a comida for servida, menos interesse em comida, incluindo alimentos doces, bem como nenhuma iniciativa de se alimentarem por conta própria, além de uma boa higiene oral (Sarnat et al., 2016). Essa diferença de resultados pode ocorrer devido a diferentes costumes das populações que participaram dasduas pesquisas.
Pacientes com TEA podem apresentar comportamentos desafiadores, tão amplos quantos os sintomas neurocognitivos associados a essa desordem, devido à frustação da criança por uma rotina interrompida ou a ansiedade induzida pela exposição a um ambiente desconhecido. A gravidade de um determinado comportamento pode ser atribuída ao déficit no desenvolvimento da linguagem e ao grau de comprometimento de TEA. Crianças com essa desordem podem exibir ansiedade em um ambiente odontológico desconhecido na forma de explosões emocionais e acessos de raiva. Em casos mais graves, seu comportamento agressivo pode se traduzir em destruição de móveis ou acessórios, ou danos a outros por arranhões, mordidas, chutes ou cabeçadas (Gandhi & Klein, 2014).
Além disso, variáveis indicativas de sensibilidade no processamento sensorial (visual, auditivo, olfativo e gustativo) foram significativamente associadas às dificuldades de cuidados em casa e comportamentais, durante o atendimento odontológico (Kuhaneck & Chisholm, 2012; Raposa, 2009; Stein et al., 2011; Stein et al., 2013). A rotina de atendimento odontológico e de atenção e cuidados com a saúde oral em casa, com os pais e equipe especializada, são eventos importantes para pessoas com TEA, que devem ser realizados em equipe, focado na identificação dasvariáveis que podem causar comportamento negativo no consultório odontológico e modificando esses comportamentos de forma a encorajar resultados favoráveis e duradouros (Hernandez & Ikkanda, 2011; Raposa, 2009).Desse modo, embora muitos estudos considerem a utilização de abordagem farmacológica, as técnicas psicológicas podem contribuir favoravelmente para o atendimento dos pacientes comTEA (Weil & Inglehart, 2010; Weil et al., 2011).
Na presente revisão, foi observado que a escala de comportamento de Franklrecomendada para avaliar o comportamento das crianças durante o atendimento odontológico foi utilizada em 5 artigos (AlHumaid et al., 2016; Murshid, 2017; Nilchian et al., 2017; Orellana et al., 2013). Já em relação ao tempo médio de consulta, houve uma variação de 10-20min, descrito em apenas 3 estudos (Mah & Tsang, 2016; Nilchian et al, 2017; Orellana et al., 2013), mostrando o reduzido tempo de atendimento preconizado para esses pacientes. A idade variada dos participantes, as diferenças de cultura e as diferentes técnicas utilizadas nos estudos foram limitações que devem ser consideradas. Diante da relevância de tais informações e o número crescente de diagnóstico dessa desordem, pode-se sugerir que estudos clínicos com maior número amostral, contemplando as diversas técnicas psicológicas para manejo do paciente com TEA, sejam executados.
Muitos pacientes podem aprender a receber o cuidado através da aplicação de uma abordagem educacional criativa, com a utilização das técnicas psicológicas já demonstradas, levando o tempo necessário para entender cada criança comoum indivíduo e fazendo acomodações para que se sintam confortáveis (Nelson et al., 2015). Dessa forma, o cirurgião-dentista podeganhar a confiança da criança e da família e prepará-la para uma vida inteira de visitas odontológicas positivas.
Com base nos resultados da presente revisão de escopo, pode-se concluir que as técnicas psicológicas como dessensibilização, distração e modelagem com treinamento visual prévio, contribuíram favoravelmente para o manejo do comportamento de pacientes com TEA, durante o atendimento/tratamento odontológico. O uso dessas técnicas têm sido capaz de facilitar a realização de tratamentos odontológicos em crianças com TEA mesmo naquelas não-verbais com baixo nível intelectual, ressaltando que essa abordagem comportamental deve ser utilizada como primeira estratégia no ambiente odontológico.