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Psicologia, Saúde & Doenças

Print version ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.22 no.3 Lisboa Dec. 2021  Epub Dec 31, 2021

https://doi.org/10.15309/21psd220312 

Artigos

Percepções de um grupo de idosos sobre a morte

Perceptions of a group of elderly people about death

1Universidade de Passo Fundo (UPF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Departamento de Filosofia, Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil, nadirp@upf.br, 159129@upf.br, helenice@upf.br, taliacastilhos@yahoo.com.br


Resumo

O objetivo do texto é descrever e analisar as percepções de um grupo de idosos acerca do processo de morte e morrer, corroborando-as com a análise da finitude existencial de Heidegger na obra Ser e tempo. O tipo de pesquisa é qualitativa, exploratória e descritiva, com 10 idosos, de ambos os sexos, realizada em 2018, no interior do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, por meio de entrevista individual e grupo focal. O que emergiu das falas e discussões sofreu análise de conteúdo, de acordo com o objetivo da pesquisa. Assim, a extração em unidades de significâncias permitiu a elaboração de duas categorias temáticas: Morte como um processo natural e consciência da finitude e Autenticidade/Inautenticidade do processo de morte e morrer. Os participantes descreveram a morte como um fenômeno natural, misterioso e uma jornada a ser cumprida. Com a morte, cessam todos os projetos existenciais e os amigos, a religião, a espiritualidade e a cultura dos antepassados ajudam a compreendê-la. Ainda, o processo da morte é algo natural, devido a consciência do homem frente à finitude e os participantes acreditam na possibilidade de a alma continuar na “outra vida”, e que as ações bondosas de perdoar, da convivência harmoniosa e as crenças contribuem para a morte.

Palavras-Chave: Morte; Idosos; Angústia

Abstract

The aim of the text is to describe and analyze the perceptions of a group of elderly people about the process of death and dying, corroborating them with the analysis of Heidegger's existential finitude in the work Being and Time. The type of research is qualitative, exploratory and descriptive, with 10 elderly men and women, conducted in 2018, in the interior of the state of Rio Grande do Sul, Brazil, through individual interviews and focus groups. What emerged from the speeches and discussions underwent content analysis, according to the purpose of the research. Thus, the extraction in units of significance allowed the elaboration of two thematic categories: Death as a natural process and awareness of finitude and Authenticity/Unauthenticity of the process of death and dying. Participants described death as a natural, mysterious phenomenon and a journey to be accomplished. With death, all existential projects cease and ancestral friends, religion, spirituality, and culture help to understand it. Still, the process of death is something natural, due to man's awareness of finitude and participants believe in the possibility of the soul continuing in the "other life" and that the kind actions of forgiveness, harmonious coexistence and beliefs contribute to death.

Keywords: Death; Elderly; Anguish

O processo de morte e morrer ou a finitude humana é um tema pouco explorado e discutido em âmbito educacional, social, familiar, cultural, hospitalar, saúde e religioso. (Ribeiro et al., 2017). Três são as possíveis razões dessa negação: A primeira, é a dificuldade de aceitar a morte como um fenômeno natural e universal. Depois, a morte é uma construção social, uma representação cultural de épocas históricas. Para Elias (2001, p. 45), “a morte não é terrível, [porque] passa-se ao sono e o mundo desaparece”, mas o que pode ser terrível na atualidade é a perda de uma pessoa querida sofrida pelos vivos. Em terceiro, numa “sociedade pautada na produtividade”, existe pouco espaço para abordar tal temática (Ribeiro et al., 2017, p. 683).

Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, na obra Ser e tempo (2015), baseado no método fenomenológico-hermenêutico, que tem a função de procurar apreender o fenômeno assim como se apresenta à consciência e interpretá-lo, investiga o sentido do ser, da existência humana, denominada de ontologia fundamental. Neste tratado, são analisados os existenciais, que possuem uma linguagem específica, como ser-no-mundo, ser-com-outro, ser-de-projeto, ser-de-angústia e ser-para-a-morte.

Como ser-para-a-morte, o homem, dentre todos os seres, possui consciência de sua existência e sente-se desorientado com a perda de entes queridos (André, 2016; Ericksen, 2017; Falque & Hughes, 2018; Heidegger, 2015; Inwood, 2002). Frente a isso, o ser humano, também concebido como o ser-aí (Dasein), ao ser lançado no mundo da temporalidade e da historicidade, ao desenvolver suas atividades cotidianas, sente angústia (angst), pois é totalmente responsável pela construção de sua existência como ser-no-mundo (Aho, 2016; Santos & Mohr, 2018). “O ser humano é o único ente que possui consciência de sua finitude. O fato de saber que sua existência é finita o faz angustiar-se” (Santos & Dalbosco, 2019, p. 218). E a angústia desperta para a consciência da morte, que é o devido conhecimento de sua existência. (Elias, 2001) Uma rocha só é. Já o homem, possui a existência como possiblidade de construção de seu destino e liberdade em sociedade.

A angústia (Heidegger, 2015; Inwood, 2002;) é a essência do ser humano. Sua dimensão é ontológica, isto é, faz parte da sua totalidade existencial como um ser lançado no mundo, com potencialidade e necessidade de desenvolver-se, de construir-se e emancipar-se. Ao se dar conta da disposição de concretizar essa condição, o ser-aí, pode assumir a postura da inautenticidade, ou seja, de fuga, vivendo no mundo do man, da massa, do comodismo, da impessoalidade, mergulhando no vazio, no nada, sem admitir o compromisso de construir seu destino no mundo, ou buscar a autenticidade, que é a responsabilidade de construir sua existência, sua liberdade e o projeto de vida (Falque & Hughes, 2018). Agir de modo autêntico gera singularidade, consciência de si de ser-no-mundo e com os outros, com intersubjetividade, cuidado e responsabilidade. E essa abertura ao mundo de possibilidades, despertado pela angústia, gera inquietude existencial, que é a consciência da finitude de um ser-para-a-morte. Afinal, “toda angústia é angústia de morte” (Santos & Mohr, 2018, p. 169).

O homem, ao tomar consciência da sua finitude existencial, dá-se conta que o “fim” [grifo do autor] do ser-no-mundo é a morte. Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível da presença” (Heidegger, 2015, p. 56), do Dasein. Esse “fim” não é a morte física, mas é o sentido que ela desperta no ser-aí como fenômeno existencial, principalmente com a morte do outro, como consciência da experiência indireta única de uma morte iminente, fazendo com que a vida seja vivida com mais galhardia e como possibilidade de desenvolver sua autenticidade (Aho, 2016; Ericksen, 2017; Falque & Hughes, 2018).

O objetivo do texto é descrever e analisar as percepções de um grupo de idosos acerca do processo de morte, corroborando-as com a análise da finitude existencial de Heidegger na obra Ser e tempo.

Método

A pesquisa é qualitativa, exploratória e descritiva (Minayo, 2016), realizada com 10 idosos de um grupo de convivência, de ambos os sexos, em 2018, no interior do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, por meio de uma entrevista individual e discussão em grupo focal.

Faziam parte do grupo cerca de 40 pessoas, que se reuniam semanalmente para debater assuntos de seu cotidiano, de convivência e de lazer. Após a explanação ao grupo do objetivo da pesquisa, 10 manifestaram interesse em participar. A seleção dos participantes atendeu os critérios de inclusão: idade igual ou superior a 60 anos, ser membro do grupo, aderir voluntariamente e ter disponibilidade para falar da morte.

As entrevistas foram individuais e ocorreram na sede do grupo, antes e após as reuniões semanais, baseadas nas seguintes questões: O que o senhor(a) pensa sobre a morte? O(a) senhor(a) acredita que existe vida depois da morte? Para validar as informações, foi utilizado o grupo focal, que é uma técnica de aprendizagem por meio do diálogo (Kinalski et al., 2017), com dois encontros, com duração de uma hora e trinta minutos cada. No primeiro, participaram 9 dos entrevistados; no segundo, 8. A partir das sínteses das entrevistas, perguntou-se ao grupo se confirmavam as informações das entrevistas, seguido de discussão e aprofundamento. Os encontros foram coordenados por um mediador e um assistente que sintetizou as expressões corporais. As informações foram gravadas e filmadas para posterior análise.

O que emergiu das entrevistas e discussões foi submetido a análise, interpretação e extração em unidades de significâncias e elaboração de categorias temáticas, de acordo com Bardin (2016), a partir de critérios semânticos estabelecidos com base no objetivo do estudo. As informações foram corroboradas com o referencial da finitude existencial em Heidegger. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade, com o parecer n. 2.464.410. Os idosos estão identificados com P (Participante), e a numeração arábica correspondente a ordem de realização das entrevistas.

Resultados

Quanto as características da amostra, a maior parte dos idosos foram agricultores e hoje residem na cidade. Possuem grau de instrução fundamental incompleto, têm casa própria, são aposentados e casados.

O que emergiu dos participantes desdobrou-se em duas categorias que se complementam: Morte como um processo natural e consciência da finitude e Autenticidade/Inautenticidade do processo de morte e morrer.

Morte como um processo natural e consciência da finitude

Mencionaram que a morte é um processo natural, uma passagem, uma jornada a ser enfrentada. É inerente à condição existencial humana, cessando com todos os projetos e possibilidades em curso. Mesmo misteriosa, é necessário aceitá-la, ser autêntico e manter boas relações de amizade com familiares e amigos, como expressam as falas:

A morte é algo natural, uma passagem a qual ninguém pode fugir (P 1).

Um dia ela chega e sem avisos. Por isso é importante que estejamos preparados religiosamente (P 3).

Devemos estar preparados para a morte, pelo menos espiritualmente, pois, ninguém sabe o dia de amanhã. Estar de bem com a família, com os filhos, netos, bisnetos, vizinhos (P 9).

Um dos participantes enfatizou a necessidade de procurar aceitar e compreender a morte, sem temê-la, bem como buscar o suporte dos amigos, da religião e da espiritualidade para enfrentar as perdas e administrar os novos desafios da vida com a ausência de pessoas queridas:

Não se deve temer à morte, pois é a coisa mais certa, e um dia ela vem. Devemos estar preparados para o dia que ela chegar e aceitar ela. O que ajuda a aceitar este processo é o fato de em vida termos muitos amigos, frequentarmos bastante a igreja, lermos na Bíblia sobre isto (P 4).

Dois participantes relataram a consciência que a condição da finitude traz, pois, a morte é um acontecimento com possibilidade absoluta, porém, sem data e momento na temporalidade histórica existencial. Essa autoconsciência da vulnerabilidade e da contingência humana, não se refere somente a morte física, biológica, mas, de acordo com Heidegger, no sentido ontológico, na capacidade de encontrar sentido como ser-no-mundo, ser-com-outro e ser-de-projeto, com planos e metas, acompanhado sempre pelo ser-de-angústia. Novamente, reaparece o papel da religião citada nas falas abaixo, como uma bússola para o enfrentamento da primazia do ser-para-a-morte, que assume sua autenticidade como ser-de-projeto:

Acredito que cada um tem sua hora. Ela não avisa quando se aproxima. Uma hora estamos fazendo tudo normalmente e noutra podemos já não estar mais vivos. A religião tem papel fundamental na superação e aceitação da morte (P 7).

A morte nos pega de surpresa, hoje estamos fazendo uma coisa e amanhã podemos já não estar mais. Devemos aceitar a morte, não fugir dela [...]. A religião é fundamental neste processo (P 10).

Autenticidade/Inautenticidade do processo de morte e morrer

Uma das falas descreveu sua percepção da morte como um processo de explicação e compreensão educacional cultural, intergeracional e tradicional, na ótica da matriz cristão e de acordo com as crenças do grupo social e familiar. Ainda, destacou o legado recebido dos ensinamentos dos pais e antepassados e a possibilidade de deixar exemplos de vida à prole:

Nós estamos vivendo uma vida no estilo de nossos avós, bisavós. Algo que herdamos das nossas raízes e nossos filhos, netos, irão viver de acordo com aquilo que nós deixarmos para eles. Em sentido de energias, uma sequência de vida. A educação, as crenças recebidas dos pais nos ajudaram a sermos o que somos hoje (P 4).

Vários participantes expressaram a possibilidade da existência de uma “outra vida” para o espírito, para a alma, um reflexo da crença de várias religiões na ressureição e filosofias de vida na imortalidade ou retorno da alma neste mundo. Ainda, acreditam que as boas ações como fazer o bem, perdoar, a convivência harmoniosa e as crenças religiosas realizadas como um ser-no-mundo, ser-com-outro e ser-de-projeto contribuem para a preparação com vistas a alcançar o plano superior com galhardia, fé e esperança, inclusive em “encontrar” os entes queridos após a separação do espírito da matéria, como atestam as expressões:

Essa crença nos faz compreender que estamos vivos por um propósito, porque viver só esta vida não teria sentido (P 1).

Estamos aqui de passagem. Nossa matéria fica, mas o espírito segue adiante. Devemos fazer o bem para estarmos preparados para o amanhã. Devemos perdoar, corrigir nossos erros para estarmos em paz conosco e com os demais (P 2).

A doutrina da nossa religião (Luterana) prega que após a morte vem a ressureição, ou seja, uma nova vida após esta (P 4).

Acredito em vida após a morte. Participo de terapias espirituais, onde conversamos. Por intermédio de “passes”, as pessoas nos transmitem recados de outro plano. Essas terapias ajudam a superar, a aceitar a morte, o espiritismo, sobretudo, pois a religião católica nos priva destas coisas, de entrar em contato com o mundo superior (P 5).

Aqui estamos só de passagem (P 7).

Deve ter alguma coisa para justificar o que fizemos em vida. Se a pessoa faz o mal, não pode esperar ser recompensada com coisas boas posteriormente (P 10).

Pensamos/ esperamos encontrar algo bom lá. Uma espécie de recompensa daquilo que fazemos aqui. Pensamos que iremos nos encontrar com os entes que já partiram. Com os irmãos, os pais, os amigos (P 1).

Discussão

Em relação aos resultados da categoria Morte como um processo natural e consciência da finitude, para Heidegger (2015), todo o ser vivo tem como atributo essencial a potencialidade para morrer. O homem, como ser incluído nesse itinerário existencial e natural, tem consciência dessa presença, da finitude, de um ser-para-a-morte. Aceitar essa condição é construir a sua autenticidade dessa possibilidade específica do ser lançado no mundo, com o mundo e para o mundo, do ser-aí (Inwood, 2002).

Um estudo de revisão integrativa de como idosos enfrentam a morte, realizada por Ribeiro et al. (2017, p. 684), demonstrou que muitos buscam compreender o fenômeno da finitude, “buscando conforto espiritual, suporte social e aceitação”. Essa tese é corroborada pelas falas acima e de acordo com a percepção do ser-aí de Heidegger (2015, p. 56), de que “esse ou aquele, próximo ou distente, ‘morre’, ... dia a dia, e [ela] vem ao encontro como um acontecimento conhecido, que acorre dentro do mundo”.

A abordagem hermenêutica do ser-para-a-morte de Heidegger possui uma dimensão ontológica, isto é, que o ser humano tem consciência de sua finitude no mundo e do aniquilamento de suas possibilidades, de seus projetos existenciais. “Sua morte é a possiblidade de poder não mais estar presente” (Heidegger, 2015, p. 57). Essa possibilidade é extrema, irremissível, insuperável e absoluta. Nessa possibilidade, o homem se dá conta que um dia também não estará mais com os outros, que deixará de existir na comunidade. É a consciência de sua nulificação. Além disso, é da natureza do ser-aí procurar explicações de sua condição de ser-para-a-morte, sempre de acordo com os seus referenciais da linguagem, seja em livros sagrados seja na religião, porque essa possibilidade é somente uma especificidade do Dasein (Aho, 2016; André, 2016; Inwood, 2002).

A pesquisa de revisão de literatura de Meier et al. (2016), com pacientes, familiares e profissionais da saúde, incluindo idosos, com o objetivo de identificar suas percepções de morte, enfatizou que 65% dos pacientes consideraram a religiosidade/espiritualidade como essencial para compreender a finitude existencial e o processo de boa morte, fator mencionado na fala acima. Já os familiares, 50% manifestaram-se favoráveis a abordagem da temática e o estudo constatou que nem todos os pacientes estavam recebendo auxílio dos profissionais da saúde, pois estes davam pouca importância ao assunto.

Na visão de Ericksen (2017, p. 78), o ser humano possui a capacidade de “adiantar-se a si mesmo em direção à sua própria morte (evento da finitude)”. E quanto mais consciência da angústia e da finitude que o Dasein desenvolve, mais ele consegue construir sua historicidade e autenticidade, isto é, a consciência e responsabilidade da compreensão de si e do seu destino como ser-no-mundo. E esse adiantar-se em entender a morte, faz com que “a angústia [tenha] a função de demonstrar, claramente, para o Dasein, o quão ele é limitado de possibilidades no momento em que a sua própria finitude ocorre” (Ericksen, 2017, p. 34).

A morte do outro, do familiar ou amigo, pelo rito funeral, instiga o ser-aí a introspecção de sua finitude, emergida da angústia. No sentido ontológico, para Heidegger (2015, p. 45), a pessoa que partiu passa para o “modo de não-ser-mais-pre-sente”, porque “o finado deixou nosso mundo”. É “a partir do mundo que os ficam ainda podem ser e estar com ele”.

Já em relação a outra categoria, Autenticidade/Inautenticidade do processo de morte e morrer, segundo Heidegger (2015), o ser humano tem uma pretensão de deixar legados de sua existência e presença como ser-no-mundo. Essa fala acima está em consonância com a apreensão ontológica da morte em Heidegger (2015, p. 36), que consiste em “assumir a sua própria morte”, como um itinerário existencial. É uma experiência ontológica singular, única, porque o processo de morte e morrer, não é simplesmente um dado, algo insignificante, instintivo e biológico, “mas um fenômeno a ser compreendido existencialmente num sentido privilegiado”, de autenticidade. Para Elias (2001), no mesmo sentido, o que aflige o homem não é necessariamente o envelhecimento e a morte, mas o conhecimento de sua existência, pois consegue prever seu próprio fim. Ainda, com o envelhecer, ocorre uma mudança fundamental na posição das pessoas idosas numa sociedade e suas relações com os outros, principalmente familiares. O poder, o status e a busca da compreensão da finitude mudam de forma lenta ou rapidamente, a partir dos sessenta anos. Enfim, o ser-aí é constantemente “afetado por esta possibilidade insuperável e intransferível” (Santos & Dalbosco, 2019, p. 219).

Segundo Heidegger (2015), o ser-aí, como ser-no-mundo, procura encontrar razões racionais e irracionais, de acordo com sua cultura e linguagem, para justificar sua crenças, principalmente a partir das vivências e percepções da morte dos outros (Falque & Hughes, 2018; Ribeiro et al., 2017). Não é possível apreendê-la, pois, “em sentido genuíno, não fazemos a experiência da morte dos outros. No máximo, estamos apenas ”junto” (Heidegger, 2015, p. 56).

De acordo com a pesquisa de Melo (2017), cujo objetivo foi desvelar o sentido do cuidado de uma equipe de enfermagem de um Hospital diante do fenômeno da morte em idosos, com o referencial teórico da fenomenologia de Heidegger, os participantes relataram que possuem fragilidades ao se depararem com a finitude e a morte de idosos, oriundas dos medos culturais. Mesmo com conhecimentos técnicos e científicos da morte, por meio da tanatologia, sentem necessidade de aprofundar a temática.

Para Elias (2001, p. 45), o medo da transitoriedade é amenizado com a convicção “particularmente forte de nossa própria imortalidade, [mas], cientes da fragilidade dessa crença”. Assim, quando se encontram possíveis explicações para o fenômeno da morte, corre-se o risco de mergulhar na inautenticidade, no mundo da impessoalidade, da fuga, do man. Essa atitude indica esquivar-se da responsabilidade de assumir a assunção e a transcendência da autenticidade da condição fática de ser-para-a-morte, da possibilidade ontológica da finitude. (Heidegger, 2015, p. 56). E nessa situação, o Dasein “não se responsabiliza pela própria decisão, [...], pois sua existência é guiada unicamente pelo que os outros ditam” (Santos & Dalbosco, 2019, p. 224). Especificamente em relação a morte, o homem inautêntico não consegue despertar do impessoal e a “angústia representa fraqueza, algo que deve ser afastado”. Para Heidegger (2015, p. 45), essa possibilidade não acontece para o Dasein “seguro-de-si-mesmo”, porque está ciente de sua responsabilidade da finitude. Enfim, “a morte é, em última instância, a possibilidade da impossibilidade da presença” (Heidegger, 2015, p. 46). Com ela, cessam todos os projetos existenciais (André, 2016; Ribeiro et al., 2017; Williamson, 2016).

Os resultados indicaram, de acordo com o objetivo da pesquisa, que foi descrever as percepções de um grupo de idosos acerca da morte, corroborando-as com a análise da finitude existencial de Heidegger na obra Ser e tempo, que os participantes conceberam o processo de morte e morrer como algo natural, inerente à condição existencial de um ser-de-projeto e ser-no-mundo, um mistério a ser enfrentado. Ainda, com a morte, cessam todos os projetos da vida. O suporte dos amigos, da religião e da espiritualidade contribuem para enfrentar a finitude e a contingência humana. Descreveram que há uma crença da alma continuar na “outra vida” após a morte e que as ações bondosas de perdoar e a convivência harmoniosa com amigos e familiares ajudam a compreender o fenômeno da morte.

De forma semelhante, para Heidegger, na obra Ser e tempo, o homem é um ser-para-a-morte. Por meio da angústia, o Dasein desperta para a sua finitude, como condição ontológica. Quando o homem aceita o processo de morte e morrer, torna-se autêntico e consciente de si e quando foge desse acontecimento inevitável, irremissível e absoluto, mergulha no mundo inautêntico, do man, da massa. Diante desses resultados, sugerimos a continuação de estudos empíricos corroborados com o existencial em Heidegger, de que o homem é um ser-de-projeto e um ser-para-morte.

Diante do exposto, sugerimos aprofundar a temática da pesquisa em Ser e tempo de Heidegger, explorando e fazendo conexões como, por exemplo, com a obra Solidão dos Moribundos, de Norbert Elias.

Referências

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Recebido: 17 de Outubro de 2019; Aceito: 23 de Maio de 2021

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