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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.23 no.2 Lisboa ago. 2022  Epub 30-Set-2022

https://doi.org/10.15309/22psd230228 

Artigos

Manejo online do comportamento suicida na ótica de psicólogas(os) brasileiras(os): primeiras ponderações

Online intervention with suicidal behavior patients from brazilian psychologists perspective: preliminary remarks

Natália Ferracioli1 
http://orcid.org/0000-0003-3912-1531

Manoel Antônio dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-8214-7767

1Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - LEPPS-FFCLRP-CNPq, São Paulo, Brasil. nataliagmendes@hotmail.com, masantos@ffclrp.usp.br


Resumo

As repercussões psicossociais da pandemia de COVID-19 podem elevar a vulnerabilidade dos indivíduos ao comportamento suicida, gerando novas demandas para psicoterapeutas, que tiveram que se adaptar à modalidade online. O atendimento remoto a pessoas e grupos em situação de urgência/emergência era considerado inadequado, mas com a pandemia esta restrição foi provisoriamente suspensa. Delineamos um estudo qualitativo, exploratório, com base no referencial da Teoria Fundamentada nos Dados, com objetivo de compreender as perceções de psicólogas(os) sobre o atendimento online a pacientes com comportamento suicida durante a pandemia. Participaram da amostragem inicial 10 psicólogas(os), foram realizadas entrevistas em profundidade, cujos dados foram analisados para direcionamento da amostragem teórica. Organizamos três categorias: (1) Vivenciando a pandemia e suas repercussões na vida pessoal: os participantes relataram suas experiências pessoais, para além da questão profissional; (2) Adaptando-se ao atendimento online: abordaram as mudanças, dificuldades e benefícios percebidos com a transição do modelo de cuidado; (3) Manejando o comportamento suicida de forma remota: foram consideradas especificidades e desafios da demanda e estratégias para conduzir o processo à distância. Vislumbramos que a intervenção online se descortina como possibilidade viável no manejo do comportamento suicida, especialmente em contextos de difícil acesso a serviços de saúde mental, mas não substitui a presencialidade em determinadas situações de risco.

Palavras-Chave: Pandemias; Psicoterapia online; Telepsicologia; Comportamento suicida; Ideação suicida

Abstract

Psychosocial repercussions of the COVID-19 pandemic may elevate individuals’ vulnerability to suicidal behavior, creating new demands for psychotherapists, who have had to adapt to the online modality. Remote care for individuals and groups in urgency/emergency situations was considered inappropriate, but due to the pandemic this restriction was temporarily suspended. We designed a qualitative, exploratory study, based on Grounded Theory, with the objective of understanding the psychologists' perceptions about online care to patients with suicidal behavior during the pandemic. The initial sampling included 10 psychologists, in-depth interviews were conducted, and data were analyzed to guide the theoretical sampling. We organized three categories: (1) Experiencing the pandemic and its repercussions on personal life: the participants reported their personal experiences, beyond the professional perspective; (2) Adapting to online care: changes, difficulties and benefits perceived with the transition of the care model were addressed; (3) Managing suicidal behavior remotely: specificities and challenges of the demand and strategies to conduct the process remotely were considered. Online intervention may be a viable possibility in the management of suicidal behavior, especially in contexts of difficult access to mental health services, but it does not replace face-to-face care in certain situations of risk.

Keywords: Pandemics; Online psychotherapy; Telepsychology; Suicidal behavior; Suicidal ideation

As repercussões psicossociais da pandemia da COVID-19 podem elevar a vulnerabilidade dos indivíduos ao comportamento suicida, gerando novas demandas para psicólogas(as) clínicas(os) (Kawohl & Nordt, 2020; Torous & Wykes, 2020). A psicoterapia é um dos principais recursos utilizados para o cuidado de pacientes com ideação e tentativa de suicídio (Ferracioli et al., 2021), mas conduzir adequadamente esse trabalho requer, além de conhecimentos específicos do funcionamento mental, habilidades de manejo de situações de crise, experiência clínica, sensibilidade, empatia e preocupação genuína com o bem-estar do outro. Concomitantemente, o(a) terapeuta deve estar capacitado a mostrar serenidade na escuta e prontidão para agir com o propósito de proteger o paciente quando necessário (Ferracioli et al., 2019). De acordo com estes autores, o acolhimento é o primeiro suporte para promover o início da organização do caos psíquico e emocional no qual, frequentemente, a pessoa se encontra mergulhada após a tentativa de autoextermínio (Alves et al., 2022).

No entanto, é necessário ponderar que a atuação das(os) profissionais pode sofrer importantes impactos decorrentes do contexto de restrição do contato físico, já que as(os) psicólogas(os) tiveram que adaptar sua prática clínica ao atendimento online de forma abrupta e sem treinamento prévio (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2020a; Ferracioli et al., 2022; Sola et al., 2021). O atendimento psicológico mediado por Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) começou a ser regulamentado no Brasil pela Resolução No. 3 do CFP (2000), mas naquele momento ainda não era uma prática reconhecida pela Psicologia, podendo ser realizada apenas em caráter experimental como parte de projetos de pesquisa sobre “atendimento psicoterapêutico mediado por computador”. Essa regulamentação foi gradualmente revista e alterada ao longo dos anos, sendo que a transformação substancial veio com a Resolução No. 11 do CFP (2018), que autoriza a realização de consultas e atendimentos psicológicos mediados por TICs, conferindo responsabilidade plena ao profissional de Psicologia quanto à adequação e pertinência dos métodos e técnicas utilizados na condução de seu trabalho, desde que realize inscrição prévia e seja aprovado no Cadastro Nacional de Profissionais para Prestação de Serviços Psicológicos por meio de TICs (Cadastro e-Psi). O Art. 6° da Resolução aponta que o atendimento online a pessoas e grupos em situação de urgência e emergência, no qual se enquadram os sujeitos que manifestam comportamento suicida, é considerado inadequado, devendo ser executado por profissionais e equipes de forma presencial.

Com o advento da pandemia de COVID-19, foi publicada a Resolução No. 4 do CFP (2020b), simplificando o Cadastro e-Psi com vistas a agilizar o processo e facilitar a atuação de psicólogas(os) durante este período, regulamentando a permissão da prestação de atendimento online mediante apenas o preenchimento do cadastro, sem necessidade de aguardar o parecer da entidade. Além disso, tal resolução suspende os artigos que vedam ou consideram inadequado o atendimento por TICs a pessoas em situações de urgência, emergência, desastre ou violência e violação de direitos, até que sobrevenha outra resolução do CFP sobre o assunto.

Em relação ao quantitativo de psicólogas(os) cadastradas(os) no e-Psi, o CFP divulgou que apenas no mês de março e início de abril de 2020 foram contabilizados 39.510 cadastros, enquanto que no período de cerca de 15 meses após a publicação da Resolução nº 11/2018 (entre 10 de novembro de 2018 e 29 de fevereiro de 2020) haviam sido realizados 30.677 cadastros. Isto evidencia a magnitude da mudança vivenciada pelas(os) psicólogas(os) na prestação de serviços a partir da pandemia da COVID-19 (CFP, 2020b).

Para a(o) psicóloga(o) clínica(o), além das mudanças práticas no seu paradigma de trabalho, deve-se levar em conta suas vivências pessoais no atendimento à demanda de pacientes com experiências traumáticas, ao mesmo tempo em que também se sentem ameaçadas(os), impotentes e até mesmo aterrorizadas(os), como se vivessem submersas(os) em uma espécie de pesadelo a partir de uma ameaça invisível que ataca, segrega, isola e promove uma experiência disruptiva (Aroser, 2020; Mellem, 2020; Oliveira et al., 2020a). Essas pesquisas pontuaram os desafios acarretados pela tarefa de elaboração emocional das crises pessoais da(o) psicoterapeuta em meio às graves crises social, econômica, política e educacional que vêm a reboque do colapso dos sistemas locais de saúde pública (Moura et al., 2022; Oliveira et al., 2020b, 2021; Oliveira-Cardoso et al., 2020).

Tais repercussões sistêmicas acontecem simultaneamente com a necessidade de reinvenção de elementos técnicos da psicoterapia por meio dos atendimentos mediados por TICs, que exigiram a criação de novos repertórios de condutas em pouco tempo, guiados pelo próprio enquadre interno da(o) psicoterapeuta para estabelecer novas formas de vinculação, uma vez que as condições do encontro terapêutico foram radicalmente alteradas. É verdade que algumas das alterações já estavam em curso, mas o cenário emergencial deflagrado pela emergência sanitária da COVID-19 acelerou as transformações. Nesse sentido, esta pesquisa parte da preocupação com a produção de saberes que possam contribuir para a prática clínica em psicoterapia, que se encontra em franca transformação no cenário contemporâneo. O objetivo deste estudo é compreender as perceções de psicólogas(os) sobre psicoterapia online oferecida a pacientes com comportamento suicida durante a pandemia da COVID-19, buscando contribuir para melhor compreensão dessa experiência.

Método

Estudo qualitativo e exploratório, com base no referencial metodológico da Teoria Fundamentada nos Dados. Essa perspetiva foi privilegiada por se mostrar adequada a pesquisas conduzidas em áreas do conhecimento nas quais a teoria existente é incompleta, inapropriada, incipiente ou completamente ausente (Charmaz, 2009), como é o caso deste estudo. Neste estudo são apresentados os resultados da primeira fase da coleta de dados.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (parecer número 4.476.733, CAAE: 40420620.5.0000.5407). Ao aceitarem participar do estudo, as(os) participantes receberam por e-mail o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual constavam informações detalhadas acerca da pesquisa e o Formulário de de Dados Sociodemográficos para autopreenchimento. A assinatura do TCLE pelos participantes ocorreu de forma remota.

Participantes

Participaram do estudo 10 psicólogas(os) clínicas(os) que atuam como psicoterapeutas e atenderam pacientes com comportamento suicida durante a pandemia de COVID-19 em atendimentos mediados por tecnologia. A amostra de conveniência incluiu participantes de ambos os sexos, com idades entre 29 e 69 anos, com experiência clínica entre quatro e 30 anos e atuação profissional que incluía o atendimento a pessoas com comportamento suicida nas abordagens psicanalítica ou fenomenológica. A maioria das(os) participantes referiu não ter tido experiência com atendimento online anteriormente à pandemia, sendo que aqueles que já haviam atendido com mediação de TICs o fizeram apenas poucas vezes, especialmente quando seus pacientes estavam em viagem.

Instrumentos

Na primeira fase da coleta dos dados foi utilizado um formulário de dados sociodemográficos, diário de campo e um guia temático de entrevista semidirigida, contendo uma questão norteadora (Eu gostaria que você me contasse sobre sua experiência no atendimento online a pacientes com comportamento suicida durante a pandemia de COVID-19), além de outras questões, que não eram propriamente perguntas, mas temas de abertura para facilitar a exploração dos assuntos de interesse junto à pessoa entrevistada.

Na segunda fase da coleta dos dados será novamente utilizado um guia de entrevista semiestruturada contendo uma questão norteadora (Como está sua relação com a psicoterapia online neste momento em que ela não é mais a única possibilidade?), além de contemplar questões sobre atendimento à demanda do comportamento suicida e outras para aprofundamento das propriedades das categorias delineadas na primeira fase de análise dos dados.

Procedimento

A primeira fase da coleta de dados ocorreu entre dezembro de 2020 e março de 2021, tendo sido realizadas 10 entrevistas individuais audiogravadas, em ambiente virtual de videoconferência, com duração mínima de 40 minutos e máxima de 80 minutos (média de 62,7 minutos), totalizando 627 minutos. Imediatamente após o encerramento dos encontros foi realizado o registro no diário de campo. O material foi posteriormente transcrito na íntegra e literalmente pela pesquisadora, perfazendo um total de 193 páginas, que constituem o corpus inicial da pesquisa. Na segunda fase da coleta de dados, será seguido o mesmo procedimento.

Os dados da primeira fase foram analisados de acordo com os pressupostos da Teoria Fundamentada nos Dados: codificação aberta (inicial), codificação focalizada, codificação axial e, posteriormente, proceder-se-á à codificação teórica. São realizadas comparações constantes entre todos os elementos do processo de análise, a saber: transcrições das entrevistas, diários de campo, memorandos, códigos, categorias e subcategorias.

Resultados

Na codificação inicial foram gerados 1051 códigos, a partir da microanálise linha por linha de 2016 citações extraídas dos textos das transcrições. A partir das similaridades e diferenças entre os códigos preliminares foi possível gerar três categorias, que foram apresentadas e discutidas com avaliadores externos: (1) Vivenciando a pandemia e suas repercussões na vida pessoal; (2) Adaptando-se ao atendimento online; (3) Manejando o comportamento suicida de forma remota.

Vivenciando a pandemia e suas repercussões na vida pessoal

Um elemento bastante abordado pelas(os) psicólogas(os) que participaram deste estudo foi relativo ao fato de elas(es) próprias(os) também compartilharem muitas das questões que permeavam as vivências de seus pacientes, já que estavam inseridas(os) no contexto da pandemia enquanto pessoas e, portanto, vivenciando os desafios e repercussões que a emergência global de saúde acarretou no cotidiano, estando expostos também aos seus impactos emocionais e familiares.

As(os) participantes relataram que se sentiam tristes, estressadas(os), hipersensíveis, chorosas(os), ansiosas(os), com vivências de lutos diversos e muitos planos e expectativas frustrados, além de consequências físicas indesejáveis, tais como ganho ou perda de peso e descompensação de sintomas e doenças de base, como diabetes mellitus. Nesse contexto, sentiram-se colocados à prova diante da necessidade de exercerem uma função de ajuda/apoio aos seus pacientes, enquanto também estavam se sentindo vulneráveis, permeadas(os) por sentimentos exacerbados e vivências disruptivas em seu cotidiano.

Ao mesmo tempo, houve relatos de profissionais que se sentiram impelidas(os) a cuidar de pessoas que vivenciavam sofrimentos decorrentes ou agravados pela pandemia, como perder entes queridos em decorrência de complicações da COVID-19. Nessa vertente, tais profissionais relataram satisfação pessoal ao realizarem atendimentos em situações de crise, na medida em que se sentiam potentes ao prestarem suporte à dor de outras pessoas diante do caos instaurado pela situação de emergência sanitária. Além disso, após um período de desestabilização, várias(os) profissionais afirmaram ter repensado prioridades na vida e promovido mudanças, passando a cuidar mais de si próprios, buscando, assim, fazer um uso transformador das situações penosas.

Para conciliarem suas vivências como pessoa com a manutenção das atividades profissionais, a saída encontrada por muitas(os) foi se permitirem ser mais flexíveis, espontâneas(os), autênticas(os), e abraçarem sua condição precária de ser humana(o), mas sem perder o rigor profissional. Para isso, recorreram às suas redes de apoio social, que consideraram fundamentais tanto para ajudar a conter os impactos e ressignificar suas vivências pessoais, quanto para proporcionar reflexão e condições para seguirem exercendo sua função de profissionais de cuidado, o que incluiu: colegas de profissão, psicoterapia pessoal, supervisão com pares, grupos de estudos, cursos e eventos online, familiares, amigos e animais de estimação.

Adaptando-se ao atendimento online

A análise dos dados desta categoria aponta que a adaptação ao atendimento online é um processo gradual que pode ser pensando como um continuum, que parte da falta de experiência profissional com a modalidade e segue em andamento, ainda acontecendo por tempo indeterminado, encontrando-se em pleno desenvolvimento. Identificou-se que as(os) profissionais vivenciaram resistências, inseguranças e dúvidas quanto ao atendimento online, sentindo ansiedade e angústia diante da necessidade de transição brusca a partir da irrupção da pandemia, sendo necessárias negociações e ajustes entre um setting ideal pretendido e um setting possível nas circunstâncias excepcionais.

Os principais desafios enfrentados para viabilizar os atendimentos online no período da pandemia foram: encontrar espaço físico adequado em casa - tanto a(o) profissional quanto a(o) paciente, lidar com entraves tecnológicos, conciliar atividades profissionais e demandas da vida pessoal. Dentre as dificuldades foram destacadas: sentir-se mais cansada(o), maior desgaste físico e psíquico, necessidade de dividir com a(o) paciente os cuidados com o setting e as preocupações quanto à manutenção da privacidade, além do excesso de tempo de tela. Já as facilidades percebidas foram: menor formalidade e maior intimidade, expansão das possibilidades de atuação profissional com a relativização de barreiras geográficas e melhor aproveitamento do tempo ao se evitarem os deslocamentos.

Para lidar com as dificuldades, as(os) psicólogas(os) referiram ter adotado uma postura mais diretiva e interventiva, buscando manter a assertividade quanto à seriedade do processo psicoterapêutico, além de recorrerem às fontes de apoio elencadas na categoria anterior. Apesar de identificarem inúmeras diferenças entre o atendimento online e aquele realizado pessoalmente, as(os) psicólogas(os) reconheceram o lado positivo do uso da tecnologia por ter viabilizado a manutenção dos atendimentos durante o período de distanciamento social. Isso conduziu a uma quebra de paradigmas, revisão de preconceitos e uma projeção de que ao menos alguns atendimentos online serão mantidos após o período pandêmico.

Manejando o comportamento suicida de forma remota

O principal elemento que se destacou em relação ao manejo remoto do comportamento suicida foi o sentimento de insegurança das(os) psicólogas(os) por não estarem fisicamente próximos da pessoa em momentos de crise, o que acentuou o receio de que ela pudesse consumar o suicídio. Foram descritas situações que deflagraram vivências de medo intenso e angústias qualificadas como terríveis ou no limite do suportável.

Algumas/alguns profissionais relataram ter conduzido online situações de risco iminente, tais como: pacientes que enviavam mensagens reportando estar com ideação suicida naquele momento, pacientes com planejamento suicida e até um caso no qual a pessoa manifestou desejo e plano para se suicidar no decorrer da sessão. Os manejos envolveram: propor e realizar sessão de psicoterapia online imediatamente, mapear e entrar em contato com o sistema de saúde na localidade de residência da(o) paciente e com pessoa de apoio do convívio da(o) paciente, orientando a levar ao serviço presencial indicado para conduta e seguimento, bem como contatar um membro da família que residia na mesma cidade solicitando que se dirigisse à casa da paciente. Uma psicóloga referiu que, caso sua intervenção não fosse efetiva, iria acionar a polícia e/ou ir ela própria até a casa da paciente, já que residia na mesma localidade.

Um ponto bastante positivo abordado pelas(os) participantes foi a possibilidade de levar um suporte especializado a pessoas que residem em cidades que não contam com um sistema de saúde mental adequado e competente. Embora reconheçam que talvez não seja o modelo ideal, ao menos elas terão acesso ao cuidado, o que é melhor do que nenhum tipo de suporte.

Discussão

Para que a(o) psicóloga(o) consiga realizar adequadamente seu trabalho como psicoterapeuta é necessário que tenha cultivado um mundo interior, a imaginação criativa e a capacidade de tolerar frustração, o que exige um desenvolvimento emocional amadurecido, uma condição pessoal e sensibilidade para exercer cuidados consigo e também com os outros (Ferracioli et al., 2022). Um temor bastante comum entre psicoterapeutas que atendem pessoas que apresentam comportamento suicida é o de se tornarem responsáveis pela vida dos pacientes a partir do momento em que tomam conhecimento do problema, o que muitas vezes é acompanhado de insegurança em relação a como agir diante desse fenômeno, de forma que experiências emocionais permeadas por angústia são inerentes à prática clínica nesses casos e dificilmente podem ser evitadas (Ferracioli, 2019, 2021).

Conduzir de forma remota a psicoterapia a pacientes com comportamento suicida durante a pandemia de COVID-19 mostrou-se tarefa desafiadora, porém exequível na visão das(os) participantes. Este estudo ainda se encontra em desenvolvimento, com vistas a promover uma compreensão teórica do fenômeno investigado a partir da Teoria Fundamentada. Com as primeiras ponderações propiciadas pelos resultados preliminares já se pode vislumbrar que a intervenção online como processo contínuo se descortina como possibilidade viável no manejo do comportamento suicida, especialmente em contextos de difícil acesso a serviços de saúde mental, porém não substitui a presencialidade em determinadas situações de risco que exigem manejo especial. Além disso, é necessário respeitar o tempo de incorporação de uma nova tecnologia como dispositivo de cuidado terapêutico.

Contribuição dos autores

Natália Ferracioli: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição

Manoel dos Santos: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Supervisão, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição

Referências

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Recebido: 15 de Junho de 2022; Aceito: 10 de Setembro de 2022

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