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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.23 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.15309/22psd230306 

Artigos

Espiritualidade e câncer: a construção de sentidos por pacientes frente à finitude

Spirituality and cancer: the construction of patient senses in front of finitude

Juliana Silva1 

Rafaela Braga1 
http://orcid.org/0000-0002-5678-1235

Renato Borges Neto2 
http://orcid.org/0000-0002-1513-2255

1 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Rio de Janeiro, Brasil, julianasoarespsico@gmail.com, rafaelacostabraga@gmail.com

2 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, renatosbn@yahoo.com.br


Resumo

Há décadas o modo como a sociedade ocidental vem lidando com a morte e o morrer é motivação de estudos diversos, os quais expressam que nem sempre o fim da vida foi encarado como algo necessariamente assombroso. Nesta perspectiva, os cuidados paliativos põem em destaque a importância do reconhecimento das múltiplas dimensões do sujeito e inclui a espiritualidade como um dos aspectos relevantes para a compreensão do sentido subjetivo atribuído à finitude. A busca de sentido para o sofrimento e a finitude é um dos fatores pelo qual recorre-se à espiritualidade. Por isso, foi investigado se e como pacientes com câncer em cuidados paliativos recorrem à espiritualidade para dar sentido ao adoecimento tendo como base teórica principal Viktor Frankl. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e os dados compreendidos pelo método da Análise de Conteúdo de Bardin. Dez participantes compuseram a amostra. Percebeu-se que a dimensão espiritual é incorporada nas histórias de vida dos pacientes, sendo utilizada como principal estratégia de enfrentamento e para descobrir um sentido frente a ameaça da morte.

Palavras-Chave: Neoplasias; Espiritualidade; Cuidados paliativos; Morte

Abstract

For decades, the way in which western society has been dealing with death and dying has been the motivation for several studies, which express that the end of life was not always seen as something necessarily astonishing. In this perspective, palliative care highlights the importance of understanding the multiple dimensions of the subject and includes spirituality as one of the relevant aspects of this context. The search for meaning for suffering and finitude is one of the factors by which we resort to spirituality. Therefore, it was investigated whether and how cancer patients in palliative care resort to spirituality to make sense of the illness based on Viktor Frankl's main theoretical basis. Semi-structured interviews were carried out and the data analyzed using Bardin's Content Analysis. Ten participants made up the sample. It was noticed that the spiritual dimension is incorporated into the patients' life histories, being used as a coping strategy and to discover meaning in the face of the threat of death.

Keywords: Neoplasms; Spirituality; Palliative care; Death

A busca de sentido para o processo de adoecimento, para o sofrimento e para a morte são alguns dos aspectos pelos quais vários pacientes hospitalizados parecem recorrer à espiritualidade como importante recurso de enfrentamento, muitas vezes intensificando uma prática preexistente. Com isso, a espiritualidade por vezes torna-se um meio de atribuir sentido a uma vivência carregada de sofrimento como o adoecimento por câncer e um prognóstico de incurabilidade. Neste contexto, a oferta de um cuidado que contemple todas as necessidades expostas pelo sujeito torna-se imprescindível. E, sobre isso, Breitbart (2002) considera que a espiritualidade e as questões de significado e fé no apoio a pacientes com câncer são essenciais. Frankl (2005) acredita que a vida não deixa de ter sentido, mesmo quando nos vemos numa situação de desesperança frente a uma situação que não pode ser modificada como, por exemplo, o prognóstico de incurabilidade do câncer.

Por décadas pesquisadores investigam como o homem e as sociedades vêm se relacionando com a morte e o morrer até os dias atuais. E, neste cenário alguns autores se destacaram, como Ariès (2012), Elias (2001), Kóvacs (2014) e Kellehear (2016), os quais a partir de uma abordagem sócio-histórica evidenciaram alguns dos modos especialmente ocidentais de lidar com a finitude. Ariès (2012), um dos estudiosos clássicos dessa temática, revela algumas atitudes do homem frente à morte em períodos históricos distintos, os quais ele denomina de a morte domada, a morte de si mesmo, a morte do outro e a morte interdita. Na morte domada, a relação do homem com o morrer se dava de maneira íntima, como um evento público e social, onde o moribundo se constituía o centro do processo. Este sentia a proximidade da morte através de sinais específicos e se preparava conforme as orientações litúrgicas da época.

Na morte de si mesmo, esta adquire um sentido individual e dramático. O moribundo se tornava responsável pelos próprios feitos, aproximando morte e biografia. Desta forma, acentuava-se a preocupação com a salvação da alma e fortaleciam-se os rituais religiosos. Os homens se encontravam em uma constante busca por eternizar a si e seus bens, na tentativa de não serem esquecidos. Gradativamente, o horror à velhice e à decomposição do corpo foi tomando espaço. A morte era entendida como a interrupção de desejos e projetos, colocando fim à individualidade (Ariès, 2012).

A morte do outro demarcava o fortalecimento do sentimento de família, intensificando demonstrações de inconformismo e desespero diante de perdas significativas. Perder um ente querido era concebido como algo intolerável, havendo, do ponto de vista histórico, um prolongamento do período de luto. Percebia-se um investimento na arte funerária com a finalidade de imortalizar a memória do morto (Ariès, 2012).

Já a morte interdita é vista como um evento estranho e desconhecido. O poder sobre a finitude foi transferido da religião para a medicina, justificando a minimização e a perda de significado dos rituais de despedida. Compreendida a morte como um assunto privado e desconfortável, as expressões de pesar passaram a ser evitadas, havendo um enfraquecimento do apoio comunitário aos enlutados. Sinônimo de fracasso médico, a morte acontece predominantemente em ambiente hospitalar (Ariès, 2012). Consoante a isso, Elias (2001) diz que o moribundo comumente experimenta o sentimento de abandono e solidão.

Elias (2001) apresenta o morrer sob um ponto de vista menos romantizado (sua crítica principal a Ariès), pois antigamente não havia alívio e controles de sintomas, e, portanto, as pessoas morriam em intenso sofrimento. Para ele, há várias formas do homem lidar com a morte, a saber, através da evitação da ideia de finitude com a mitologização do fim da vida; com o encobrimento da ideia indesejada; pela própria crença na imortalidade e, para tanto, tenta encará-la como um fato da existência e busca ajustá-la à vida. Segundo o autor, “a morte não é terrível, passa-se ao sono e o mundo desaparece, mas o que pode ser terrível na atualidade é a dor dos moribundos, bem como a perda de uma pessoa querida sofrida pelos vivos” (p. 76).

Kellehear (2016) verificou a partir das transformações sociais alguns padrões do morrer ao longo da história desde o que ele chama de Idade da Pedra até a Idade Cosmopolita - século vigente. Crítico da filosofia dos Cuidados Paliativos, acredita ser este um modelo determinado de como as pessoas devem morrer. Para ele, o morrer é um processo vinculado a fatores sociais, históricos e culturais. Na Idade da Pedra, a morte pode ser caracterizada como uma experiência repentina, restando-lhe pouco tempo para sua preparação. Era uma transição entre mundos diferentes e havia a crença de que o morto experimentaria no outro mundo o cumprimento de exigências. Era um momento carregado de incertezas e a comunidade era bastante envolvida em seu processo. Havia o risco de morte na morte.

No Período Pastoril, assim chamado devido ao desenvolvimento da agricultura na época, a causa principal das mortes e forma de encará-la mudou. Desta vez, havia um período possível para se preparar para a morte, pois as doenças infecciosas ocupavam os diagnósticos, ou seja, a morte era algo previsível. Na Era da Cidade é retratado o desenvolvimento das cidades e seus respectivos acontecimentos referentes ao panorama social, como o crescimento urbano e a mudança do perfil epidemiológico da população, o que refletiu no aumento das condições econômicas e da expectativa de vida com relação às doenças. Entre outras coisas, ele destaca especialmente nesse período a figura do hospital como alicerce da prática da gestão da morte e do morrer, algo que ele intitula de morte bem administrada. A Idade Cosmopolita é marcada pelo advento do crescimento tecnológico, porém na contramão o aumento da desigualdade social, da pobreza, da expectativa de vida, das doenças degenerativas, e da morte por HIV/AIDS, entre outros. Nesse período, a morte é vista como algo sombrio e negativo, bem como as condições em que se morre são precárias. O autor aponta ainda várias críticas ao modelo de assistência médica vigente à pessoas em final de vida e ao uso inapropriado das tecnologias.

Em consonância, Kovács (2014) aponta que houve uma banalização da morte na contemporaneidade, inclusive através dos meios de comunicação. Coletiva e anônima, não existe uma preocupação em proteger ou cuidar da memória do falecido e das pessoas em condição de vulnerabilidade. Por outro lado, existe um movimento cada vez mais forte de incluir a morte como parte do ciclo vital, mantendo-se o respeito que o tema exige. Denomina-se morte humanizada e suas origens se remetem aos trabalhos pioneiros de Kübler-Ross e Saunders, valorizando o cuidado e o acolhimento aos doentes e familiares.

A morte humanizada referida por Kübler-Ross encontra respaldo na filosofia dos cuidados paliativos, cujo início oficial foi na década de 1960 no Reino Unido, e que se concretiza em uma abordagem que promove a qualidade de vida a pacientes que enfrentam doenças ameaçadoras da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, e suporte aos familiares. Para que haja a promoção destes cuidados é necessária identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual (WHO, 2002). A dor neste contexto é compreendida a partir da perspectiva de Saunders (2000) que considera a dor como total, ou seja, um estado complexo de sentimentos dolorosos de natureza física, psíquica, social e espiritual. Portanto, percebe o quanto a espiritualidade é imprescindível à realização destes cuidados.

Entretanto, considerando-se que o cuidado paliativo é um fazer recente, as práticas em saúde ainda são bastante voltadas para curar e impedir a morte em detrimento do cuidar, não compreendendo a complementaridade que há entre curar e cuidar. Contudo, a expectativa de vida nas últimas décadas se prolongou devido às inovações tecnológicas que culminaram no aumento da sobrevida (Campolina, Adami, Santos & Lebrao, 2013), e isto torna a morte não mais um episódio, mas um processo, às vezes demorado dependendo da doença, e promotor de sofrimento multidimensional.

A partir disso, Vasconcelos (2006) evidencia que a medicina científica, cuja origem está alicerçada no modelo newtoniano e cartesiano, busca explicar o ser humano, suas doenças e estratégias de cura a partir do que se denomina modelo biomédico. Este modelo é caracterizado por dar ênfase ao corpo adoecido e sua lógica assemelha o corpo humano a uma máquina que pode ser analisada peça por peça. Neste contexto, a razão tornou-se o aspecto estritamente essencial para o entendimento da vida, desprezando-se assim as percepções advindas de outros aspectos, como a vivência religiosa.

Após o Iluminismo, o mundo passou por transformações econômicas e políticas relevantes, como o processo de racionalização a partir do qual todo o saber advindo da vivência religiosa foi desprezado e afastado dos debates acadêmicos e científicos. A religião, por sua vez, distanciou-se do meio político, mas permaneceu individualizada na vida das pessoas. Até os dias atuais é possível perceber que a espiritualidade, principalmente expressa por meio da religião é pouco valorizada pela medicina ocidental, sobretudo, devido ao desconhecimento que pode levar a uma confusão conceitual e prática entre os termos espiritualidade e religiosidade. O termo espiritualidade até pouco tempo estava ligado ao pensamento referenciado a organizações religiosas (Vasconcelos, 2006).

Na literatura há vários conceitos de espiritualidade, todavia, este trabalho utilizará os conceitos de Koenig (2012), Soares e Borges Neto (2019) os quais se complementam e trazem a separação de conceitos de espiritualidade e religiosidade adequados para o que se pretende nesta pesquisa, que adota espiritualidade e religião como aspectos diferentes:

“Espiritualidade é uma busca pessoal pela compreensão das questões acerca da finitude da vida, do seu significado, e da relação com o sagrado e o transcendente. Tal relação pode ou não levar à busca de rituais religiosos e formação de comunidades. Para ele, as religiões geralmente têm crenças específicas sobre a vida após a morte e regras sobre conduta dentro de um grupo social. [...] A religião é um sistema organizado de crenças, práticas e símbolos projetados [...]” (Koenig, 2012, p. 2).

“A espiritualidade [...] é a capacidade pela qual o ser humano descobre-se tal qual é na realidade, ou seja, um ser permanentemente - e porque não dizer, ontologicamente - aberto não só a si mesmo e a todos os que circundam, mas também àquilo que está além dele, ao transcendente, ao mistério” (Soares & Borges Neto, p. 92).

Neste cenário, é possível perceber que a espiritualidade pode ser um recurso que o paciente busca para enfrentar o processo de adoecimento e suas consequências, conferindo significados às vivências da trajetória de tratamento. Sobre isso, Viktor Frankl proporciona algumas reflexões. Frankl (2017) concebe o ser humano a partir de uma perspectiva multidimensional (como sujeito físico, psicológico, social e espiritual) e acredita que a experiência de adoecimento pode se caracterizar em um evento carregado de sentido. A logoterapia, teoria desenvolvida por ele, tem como premissa o sentido da existência humana e como o ser humano a busca numa perspectiva voltada para o futuro. Para ele, a busca de sentido é a principal força motivadora no ser humano (Frankl, 2008).

O sentido da vida é possível ser descoberto a partir de alguns aspectos, os quais Frankl (2008) descreve como: 1. criando um trabalho ou praticando um ato; 2. experimentando algo ou encontrando alguém; 3. pela atitude que tomamos em relação ao sofrimento inevitável; 4. Outra maneira seria encontrar um significado na vida a partir da vivência com a bondade, a verdade, a beleza, a natureza e a cultura ou amando outro ser humano.

Para Frankl (2008) quando não somos capazes de reverter uma situação, como o prognóstico de incurabilidade de um câncer, somos convocados a mudar. Para tanto, ele enfatiza que não se trata de uma apologia ao sofrimento, mas compreende que o sentido é possível mesmo a despeito do sofrimento. E completa que não só o sofrimento, mas também a ameaça da morte parece querer subtrair o sentido da vida humana. Nesta perspectiva, o viver e o sofrer têm seus sentidos e significados, que são singulares assim como o sujeito o é. Igualmente, somos responsáveis pelas atitudes que apresentamos ante o sofrimento, e o sentido pode ser construído por meio do amor, das atividades laborais, da criatividade e em meio ao sofrimento (Frankl, 2008). Para Frankl, a ausência de sentido é tomada pelo o que ele denomina frustração ou vazio existencial, o que leva muitas pessoas à depressão, por exemplo.

Esta pesquisa teve como objetivo geral investigar se os pacientes oncológicos adultos hospitalizados em cuidados paliativos recorrem à espiritualidade para dar sentido ao adoecimento e lidar com a finitude. E como objetivos específicos: a) averiguar a inclusão da espiritualidade entre as causas do câncer citadas pelo paciente; b) identificar se a espiritualidade aparece como um dos principais recursos de enfrentamento utilizados pelo paciente; c) analisar se o modo como o paciente se relaciona com a espiritualidade interfere na adesão terapêutica; d) e observar se a experiência de adoecimento modificou o sentido de vida do paciente e suas prioridades.

Método

Participantes

Dez pacientes oncológicos hospitalizados numa unidade de cuidados paliativos exclusivos de uma instituição pública. A seleção foi realizada a partir de critérios de inclusão que tiveram como base a avaliação clínica do paciente pela Escala de Performance de Karnofsky (KPS) acima de 30%, estar lúcido e orientado no tempo e no espaço, e conseguindo se comunicar verbalmente - oral ou por escrito. Os critérios de exclusão foram estar com dor, sangramento ativo ou desconforto respiratório. As equipes das enfermarias auxiliaram no processo de identificação dos pacientes em condições clínicas para participar. A estes foi comunicado sobre o tema da pesquisa e fixado em quadro de avisos sobre os critérios de inclusão e exclusão. Por algumas vezes houve a necessidade de descartar participantes devido ao viés da equipe em escolher pacientes com religião ou crença professada. A amostra foi composta por 8 mulheres e 2 homens.

Material

A coleta de dados se deu por meio de uma entrevista baseada em roteiro semiestruturado acompanhada com as seguintes colocações: (1) Fale-me um pouco sobre o seu processo de adoecimento, (2) Porque você acha que adoeceu?, (3) O que tem ajudado você a lidar com o adoecimento?, (4) O que é espiritualidade para você?, (5) A sua relação com a espiritualidade e/ou suas crenças religiosas interferem/interferiram em seu tratamento?, (6) Essa experiência do adoecer transformou a visão que você tem da vida e as suas prioridades?, e, por fim, perguntar do significado/sentido de morte, somente se o paciente participante trouxe a questão.

Procedimento

As entrevistas em quase sua totalidade realizaram-se à beira dos leitos hospitalares em que se encontravam os participantes, sobretudo, devido ao quadro clínico que impossibilitava o deslocamento para a sala de reunião. As entrevistas foram gravadas e tiveram duração entre 11 e 55 minutos. Em seguida foram transcritas e analisadas.

Esta pesquisa foi desenvolvida conforme as diretrizes da Resolução 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta as pesquisas com seres humanos (Brasil, 2016). O projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil/CEP e obteve o parecer consubstanciado de aprovação em julho de 2019 (CAAE 16816619.8.0000.5274). Os participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Análise de Dados

Inicialmente foi realizada a caracterização da amostra, e posteriormente dividiu-se os resultados em quatro categorias. Conforme as características da amostra pôde-se apreender as seguintes informações: escolaridade, idade, sexo, diagnóstico, tratamento, suporte familiar e religião. Quanto à escolaridade, dois pacientes possuíam ensino médio e oito ensino fundamental incompleto. Quanto à faixa etária dos participantes variou entre 32 e 63 anos. Com relação ao diagnóstico, os cânceres identificados foram em sua maioria ginecológicos (câncer do colo do útero, vulva, endométrio), mama, rim e próstata.

No tocante ao tratamento, apenas um dos participantes não havia sido submetido a algum tipo de procedimento com foco curativo, como quimioterapia, radioterapia, braquiterapia e/ou cirurgia. E, em sua totalidade apresentaram suporte familiar mesmo sendo este concentrado na figura de apenas um familiar. Dos participantes nove revelaram ter uma crença religiosa definida, sendo oito cristãos e um espírita, apenas um expressou ter fé em algo transcendente sem vínculo com instituição religiosa. Os dados foram analisados com base na Análise de Conteúdo de Bardin (2011): “Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens” (p. 48).

Esta análise é realizada a partir de três fases, as quais são: pré-análise (organização), exploração do material (codificação) e tratamento dos resultados (categorização) - a inferência e a interpretação (Bardin, 2011).

Resultados

Os resultados analisados foram categorizados da seguinte forma: (1) o processo de adoecimento: a) impacto na humanização; b) causas do adoecimento; (2) o significado de espiritualidade; (3) a espiritualidade no tratamento oncológico; (4) o sentido de vida e morte.

O Processo de Adoecimento

Na subcategoria Impacto na Humanização foi possível identificar que a experiência dos participantes nos serviços de saúde anteriores interferiu em como estes vivenciam o prognóstico de incurabilidade da doença e o encaminhamento para os cuidados paliativos exclusivos. Entre os fatores apontados apareceram falhas na comunicação da má notícia, sentimento de desassistência, revolta e descrença na relação médico-paciente.

P6: “Aquilo lá (referência a outra unidade hospitalar), se eu ficasse eu iria morrer. Eu já não tava andando mais, não tava comendo, não tava nada, jogada em cima da cama com promessa de cirurgia, a cirurgia não saiu, aí foi só piorando, todos os quadros, se não viesse pra cá eu já tava até morta. Entendeu? Então eu tô aqui já há duas semanas, graças a Deus”.

P7: “Fico com vontade de ir à justiça lutar pelo meu direito de viver. Me sinto impotente, não tenho direito de opinar sobre minha própria vida. Eu tinha que vim para cá ou não teria nada lá no outro hospital, a doutora disse que só ia me dá um remedinho para dizer que estava fazendo algo”.“Recebi a informação do câncer sozinha...fiquei triste, “andando em nuvens”, “não acreditava que eu tinha aquilo”.

P8: “Porque, olha só, eu acho que o médico residente é muito novo para falar alguma coisa, então a maioria deles não falam nada. Eles só olham pro computador e passam remédio pra você, nem te examinar eles te examinam. Tanto é que a última médica não me examinou nem nada! Eu tava... aí eu perguntei “você não vai me examinar não?”, aí eu fui e tirei a roupa e mostrei pra ela. Eu nunca mais tive consulta com ela. Ela sumiu... ela deve ter ficado apavorada de ter visto aquele tumor. Porque ó, eu tô aqui expondo pro médico o meu problema, ele levanta e vai lá perguntar ao chefe, e se ele vai lá falar com o chefe ... por que o chefe não vem logo falar é isso, isso, isso e isso? Igual o médico que falou pra mim que eu tenho 50% de chance, teve outra uma médica que falou que eu tinha 80% de chance. Quer dizer, no fundo, no fundo tava mentindo pra mim. É isso que eu te falo”.

Na subcategoria Causas do Adoecimento foram atribuídas pelos participantes causas associadas a fatores de risco como estresse, alimentação inadequada, privação de sono, tabagismo e hereditariedade. Identificou-se também a presença de sentimento de culpa referente ao diagnóstico, o câncer como da ordem do terrível ou impensável, e falta de sentido.

P1: “... isso foi um cansaço muito grande, um estresse porque eu nunca tirei férias, entendeu? Às duas horas estava acordada, às quatro horas estava dentro do trem, então eu não sabia o que era descansar. Aquele corre - corre do dia -a -dia, não me alimentava direito, não dormia direito, o médico explicou que tudo isso influi, tudo isso influi”.

P3: “Eu não sei. Assim... eu procurei saber com a minha família, com minha irmã mais velha e, eu soube que é da genética da família... da genética, que minha avó morreu disso e minha tia morreu disso”.

P4: “Depois que eu descobri, a minha vida é chorar, tem hora que eu me pego chorando. É muito triste, porque eu nunca esperava passar por isso, nunca imaginei, eu passar por isso, nunca imaginava”... “Busco, mas não acho. Busca a pergunta, mas não acha. Muito triste essa situação (chorando)”.

Alguns acreditam que adoeceram por vontade ou permissão divina:

P1: “eu acho que tudo tem seu tempo e sua hora, nada nesse mundo é sem a determinação de Deus, essa que é a verdade. Agora, se você tiver perto você atravessa as fases, se não tiver perto, você fica pra trás. Se você segurar na mão de Deus você vai, se você desistir no meio do caminho, você nunca pode desistir daquilo que você está se sentindo firme, você tem que persistir e ir em frente, a gente vai assim, em frente. Eu sou assim, entendeu?”.

P10: “...Já temos uma vida atrapalhada, então para que Deus ainda coloca doença? As mulheres passam por tantas coisas ruins. Às vezes o casamento péssimo, trabalha demais fora e em casa, muitas vezes não é valorizada”.

O Significado de Espiritualidade

Foram encontrados os seguintes conceitos: espiritualidade como um meio de salvação; como a manifestação da fé em Deus, algo capaz de adiar a morte e ao mesmo tempo de preparar-se para ela; como a manifestação da religiosidade; e como referência a espíritos e ao Espiritismo.

P2: “Eu acredito muito que Deus existe na vida de cada um, basta ter fé. Se eu estou aqui hoje é porque eu tenho muita fé Deus, o Pai é tudo. Se não fosse ele na minha vida, eu não estaria aqui. Eu já passei por várias coisas, por vários momentos, várias situações que poderiam ter me levado a morte”.

P3: “[...] espiritualidade é uma palavra amiga. Tudo pra mim é uma palavra boa, uma palavra bonita, eu penso assim. Uma vez um rapaz me disse assim: “você é muito forte, você é guerreira””.

P8: “Espiritualidade é você estar em paz, tranquila, não criticar o próximo, não falar mal da vida dos outros, você não sabe o que a pessoa tá passando, não sabe o que tá acontecendo com ela”.

P9: “Espiritualidade, não sei se essa palavra... Eu sou católico, não frequento muito, mas eu creio muito em Deus. espírito não existe, essa coisa, eu não tenho nada assim”.

Confere-se que em cuidados paliativos exclusivos muitos pacientes recorrem à religião como forma de experimentar a espiritualidade:

P4: “Quando eu me aproximo de Deus, sabe, eu sinto como uma luz que se acende pra mim. Eu chamo muito por Deus, aparece uma luz que se estende pra mim. Tá me dando força. Tá me dando só força! É o que eu acho, eu acho é isso. Tem um Deus muito forte iluminando, esse é meu ser de luz”.

P7: “É uma forma de você se apegar com tudo maior que tudo nessa vida. Mas para mim o lado espiritual é Deus.

A espiritualidade nesta pesquisa aparece nas falas como um aspecto acolhedor, uma vivência profundamente concreta e marcante na experiência de adoecimento. Apesar de a maioria dos participantes ter uma relação com os elementos mais formais de suas religiões, a espiritualidade aparece nesse contexto como algo que extrapola o plano dos dogmas.

A Espiritualidade no Tratamento Oncológico

A espiritualidade aparece como importante recurso após o diagnóstico e intensifica-se após o prognóstico de incurabilidade. Com isso, destaco que a busca por um suporte espiritual se manifesta como uma prática preexistente e como aporte para conseguir lidar com o processo de tratamento. Nesse momento também podem emergir conflitos espirituais, como perda da fé, revolta dirigida a Deus, crenças postas em dúvidas, barganha e promessas.

A espiritualidade aparece como força capaz de provocar e facilitar uma mudança interior, contribuindo para a adesão ao tratamento, e sendo vivida por meio da religiosidade associada a experiências místicas ou não.

P1: “Senhor, se for da sua vontade... faça o que quiser...eu faço daqui...eu tô lutando aqui até hoje”, não posso reclamar, um tratamento desse, um exame desse é caríssimo, entendeu? As coisas são supercaras e a demanda é muito grande, mas eu tô segurando na mão de Deus e tô indo, entendeu?

P2: Eu vi um espírito. Falei para uma senhora e ela não acreditou. Uma amiga minha tem muita fé na Nossa Senhora Aparecida, ela tem a fé dela, eu tenho a minha [...] E nessas coisas, ela fez promessa pra mim, fez promessa, colocou meu nome lá nos pés de Nossa Senhora Aparecida. Então, nesse dia, eu vi aquele espírito vindo, aquele homem todo de preto, jogando pozinho em cima de mim e de uma amiga do leito que tava do meu lado, eu me assustei e chamei ela”. Antes disso, ele veio e eu vi uma claridade bem grande, perto da minha cama, da Nossa Senhora Aparecida. E quando ela acordou, eu falei “Dona Maria, Dona Maria, eu vi um espírito, vindo e aquilo ali era o espírito da morte.

Observou-se que além da busca por uma prática espiritual, o apoio familiar foi identificado como extremamente essencial e necessário para os participantes com câncer. Estes acreditam que o adoecimento junto à espiritualidade lhes ajudará a se aproximar mais da família e se desvincular de questões difíceis, como o uso abusivo de drogas ilícitas.

P2: “Primeiramente, né, Deus. Segundo, minha família e meu neto. Meu neto na minha vida, me ajuda muito. Tem me ajudado muito, minha família, abaixo de Deus, graças a Deus.

P3: [..] Então, o mais importante para mim agora é minha família”.

P4: “O que me ajuda é a minha netinha, quando eu olho pra minha neta, é aí que eu busco força”.

P5: “Não, me ajudou bastante, melhorei bastante. Posso te dizer assim, que eu me tornei uma pessoa melhor, também por causa da doença, eu bebia, eu fumava, eu usava droga, entendeu? Hoje em dia eu não uso mais”.

O Sentido de Vida e Morte

Verificou-se o medo da morte e de morrer com sofrimento intenso, principalmente após o prognóstico e encaminhamento para cuidados paliativos exclusivos. A morte é compreendida pelos participantes como: algo que ameaça a vida; morte do corpo físico; sinônimo de abandono; ruptura de vínculos afetivos; um sono profundo que o transporta para outro lugar; libertação de um sofrimento intenso e, por fim, algo ruim e injusto.

P2: “Antigamente, eu entendia que morte, a gente morreria e acabava tudo, a morte hoje, eu acho que a morte, o que morre é o nosso corpo, mas a nossa alma não, se a gente crê em Deus, a gente é salvo, a nossa alma, né. Hoje em dia a gente morre, morre, mas o espírito não. Só morre se não tivermos fé”.

P3: “Se eu morrer eu vou abandonar meus filhos, meus filhos vão ficar tudo aí e eu não quero isso. (chorando)”.

P10:“Não tenho medo da morte. Mas a morte será o livramento do sofrimento. “Meu primo morreu de câncer, eu não chorei porque sei o quanto ele estava sofrendo, então foi bom para ele”. Ele teve livramento”.

P9: “Morte, a morte eu acho que é uma coisa ruim, é uma coisa ruim! [..] Acho que a morte não é coisa boa não, nada é pra sempre, mas a morte não! Tem tanta gente boa, não é Deus não, ela tira muita gente boa, muita gente que não merece. Tem uns, gente mal, tem muita gente mal, que tira a vida das pessoas”.

Percebeu-se que o diagnóstico de câncer provocou revisão de valores, mudança de prioridades na vida e a intensificação de um sofrimento preexistente.

P3: “Não, eu era uma pessoa super ignorante, mas ultimamente, depois da doença, eu vi que não é assim [..] Então eu levo tudo na brincadeira, não dou mais atenção para pessoa chata, que venha com carga negativa, eu nem, nem, nem quero saber... Agora se vier com coisas boas, vou conversar, vou rir [...]. Então eu levo a vida assim”!

P6: “Você dá valor a tudo da vida agora. Dá valor, você aprende a dar valor a tudo. Ah, agora eu tô caseira, eu só penso em trabalhar na minha casa, nos meus filhos, e o resto, não tem mais amizade, não quero mais isso de amizadezinha falsa, agora só mesmo minha casa e minha família”.

P10: “Eu não tenho desejo de viver, vivo porque sou obrigada. Se eu pudesse já tinha ido como outras pessoas. Eu tenho depressão há uns sete anos e depois do câncer tudo piorou. “Não vivo uma vida normal, fica entre viver uma vida estranha e anormal e não morre”.

Permeados de relatos profundos e marcantes acerca da vida e da morte notou-se nos participantes a importância do sentido, principalmente em momento adversos e ameaçadores como a doença. Marcados integralmente pela doença que os invadiu, porém íntegros com relação ao que buscam e acreditam, com o que lhes dá sentido.

Discussão

O Processo de Adoecimento

Diante do cenário apresentado, as falhas na oferta de uma assistência de qualidade, os direitos não respeitados, a não humanização do atendimento e o padrão de comunicação ineficaz são fatores preocupantes no contexto da saúde pública do país, e não podem deixar de ser repensados a partir das políticas públicas, sobretudo da Política Nacional de Humanização (PNH). A PNH tem entre seus princípios a transversalidade e a indissociabilidade entre gestão e atenção. A transversalidade significa estar em rede, conectados aos serviços de que necessita, de forma que todos os envolvidos - trabalhadores e usuários sejam corresponsáveis. A indissociabilidade entre gestão e atenção diz que as ações da gestão interferem diretamente na atenção à saúde (PNH, 2013). É o que se pôde observar nos relatos dos pacientes, os quais refletem o impacto da má gestão do sistema de saúde na relação médico-paciente. Além destas interferências de âmbito nacional, Caprara e Franco (1999) conferem que muito precisa ser mudado na relação médico-paciente, uma vez que os efeitos nocivos de comportamentos médicos reverberam no contato com os pacientes e lhes tornam não só alvos de denúncias recorrentes, mas produzem no outro ansiedade, insatisfação e dificuldade em aderir ao tratamento.

Franco (2011) ao falar sobre sua experiência enquanto médica, descreve as dificuldades pelas quais acadêmicos e residentes médicos se deparam desde a graduação. Estes, ainda muitos jovens, são expostos à morte e não recebem assistência emocional, ao contrário, abrem mão dos próprios recursos para resolver questões para as quais, na maioria das vezes, não estavam preparados. “Trabalhar com o processo da morte seguramente nos reporta à nossa própria morte e às nossas angústias ligadas a ela” (p.61).

Neste cenário, a comunicação de notícias difíceis é compreendida pelos profissionais da saúde como um dos aspectos que mais causam sofrimento em sua prática cotidiana, pois, ao realizarem uma comunicação em um contexto de adoecimento oncológico, estes precisam lidar com as emoções de todos os envolvidos no processo. Confrontado com suas próprias emoções, o médico costuma relatar que as dificuldades de comunicação estão diretamente ligadas às características do câncer do paciente e aos recursos disponíveis de suporte que este apresenta (Silva et al, Santos & Castro, 2016). Acerca disto, Frankl (2008) afirma que questões sobre a transitoriedade da vida podem vir a acrescer sofrimento para o paciente, seus familiares e para a equipe, tornando-se difícil a construção e/ou descoberta de um sentido para vida, para o sofrimento e para a morte.

Silva et al. (2016) apresentam dados de um estudo inglês de 2011, o qual revelou que existe uma divergência entre o desejo manifesto de pessoas com câncer (80%) por terem informações sobre sua doença e a disposição de apenas 43% dos médicos em fornecer estas informações para pessoas com prognósticos ruins. Sobre isso, Caprara e Franco (1999) alertam que o apelo a promover um bom padrão de comunicação não parte da ideologia de que os profissionais de saúde tenham que se transformar em psicólogos, mas que haja sensibilidade para reconhecer junto ao paciente suas necessidades, ouvir suas queixas e desenvolver estratégias que facilitem a adaptação deste à nova maneira de viver a partir das exigências da doença.

Quando analisamos as causas atribuídas pelos pacientes entrevistados ao adoecimento, não podemos deixar de mencionar A Doença como Metáfora, onde Sontag (1984) retrata que o câncer é visto sócio-culturalmente como sinônimo de morte, doença do demônio, cruel, misteriosa - dos excessos e dos prazeres, entre outras associações. Tais metáforas conferem aos pacientes oncológicos culpa pelo adoecimento e por seus hábitos de vida. Apesar de o livro ter sido escrito na década de setenta, é possível observar através dos relatos dos participantes que a crítica de Sontag continua uma significativa propulsora de discussões e reflexões acerca das práticas de saúde na contemporaneidade.

O Significado de Espiritualidade

Os significados foram heterogêneos e expressaram a singularidade de cada participante buscando se relacionar com a dimensão espiritual, seja através da religiosidade ou não. Para Benites et al. (2017) a espiritualidade é um meio que as pessoas procuram para encontrar sentido em suas vidas, sobretudo, quando se encontram em situações ameaçadoras da vida como com um câncer incurável. Sobre isso, Frankl (2008) narra que o sentido não significa algo abstrato, mas totalmente concreto, e que independe de se professar uma religião ou não.

Benites et al (2017) ainda verificaram, em estudo sobre o tema, que o conceito de espiritualidade está relacionado à aceitação da finitude e à revalorização da vida como busca constante. É expressa através da fé em algo ou alguma coisa, sentimentos de esperança e positividade. “A fé não é uma maneira de pensar da qual se subtraiu a realidade, mas uma maneira de pensar à qual se acrescentou a existencialidade do pensador” (Frankl, 2017).

É interessante notar que os conceitos de espiritualidade na literatura são diversos e, portanto, não há um consenso sobre a prática de busca, interação com o transcendente, sagrado entre outras nomenclaturas, principalmente no Brasil. A crescente busca pela compreensão do que vem a ser espiritualidade é percebida a partir do século XX com o secularismo (Curcio & Moreira-Almeida, 2019). Entretanto, confere-se que em cuidados paliativos exclusivos muitos recorrem à religião, mas ressalto que uma prática espiritual também pode ser experimentada por ateus, como bem descreveu Vasconcelos (2006).

A Espiritualidade no Tratamento Oncológico

Guerrero (2001) identificou a espiritualidade e a família como importantes fontes de apoio para o enfrentamento da doença crônica, ressaltando a influência desses recursos no comportamento dos pacientes e de como estes mudaram a maneira de perceber a vida e os valores.

Pinto (2015) observou que pacientes oncológicos buscam na espiritualidade um sentido às experiências vivenciadas diante da falta de esperança e do sofrimento causado pela descoberta da doença. E que, para a maioria, a espiritualidade é um alicerce para o enfrentamento do adoecimento e proporciona força para superação, coragem, alívio no sofrimento, aceitação, adesão e adaptação ao tratamento, e há os que acreditam que a cura pode vir a ocorrer na dimensão espiritual. Outro estudo aponta a espiritualidade como um domínio reconhecido de cuidado e de igual importância aos aspectos físicos, psicológicos e sociais (Balboni et al., 2014, Peteet & Puchalski, 2014).

O Sentido de Vida e Morte

Na morte já não somos, nos tornamos uma impossibilidade. A morte amedronta, seu processo causa sofrimento, faz nos sentirmos ameaçados, repensamos a vida, mudamos as prioridades e buscamos os suportes possíveis. A partir disso, Frankl (2005) diz que o homem está sempre à procura de um significado para sua vida e uma motivação para existir, pois quando se morre tudo se congela, nada pode ser alterado, a pessoa não tem mais nada à disposição, tudo se perdeu, como a mente, o corpo e o ego psicológico.

Franco (2011), ao questionar-se acerca do caráter concreto da morte se é um fenômeno universal e irreversível, disse que é possível fantasiar, temer, desejar e evitar, uma vez que não experienciamos nossa própria morte. Na verdade, apenas representamos a morte como “finitude, transição, ruptura, alívio, dor” (p.31), entre outros.

Como descrito a partir dos escritos de Ariès (2012), Elias (2001), Kellehear (2016) e Kóvacs (2014), é notório que, com as transformações sociais e o passar dos anos, a morte ainda é uma curiosidade assombrosa e a maneira como o homem lida com o seu morrer é passível de mudanças e interferências. Contudo, a doença provoca em nós mudanças tendo em vista os limites que são impostos pela fronteira entre a vida e da morte. Somos convidados a aproveitar melhor o tempo restante e dimensionar o valor das coisas. Neste contexto, a finitude e a temporalidade são aspectos constitutivos de sentido e nunca poderemos avaliar a plenitude de uma vida humana com base em sua duração (Frankl, 2016). Por isso, Breitbart (2003) relata quão importante é a busca por uma orientação espiritual que nos ajude a encontrar um sentido para existir. Sobre isso, ele destaca que faz parte desta busca a pessoa procurar reavaliar suas escolhas e atos.

Entretanto, mesmo em situações adversas é possível descobrir um sentido. Dentre os caminhos supracitados para descobri-lo, Frankl (2017) mostra que há ainda uma alternativa, a saber, “sempre que estivermos diante de uma situação que não podemos modificar, existe ainda a possibilidade de mudar nossa atitude diante da situação, de mudar a nós mesmos, amadurecendo, crescendo além de nós” (p.103).

As doenças e suas consequentes perdas provocam marcantes modificações na vida das pessoas, sendo que muitas vezes experimentadas como morte, diz Franco (2011). Tal experiência emerge no sujeito inúmeras reflexões sobre sua vida e prioridades. O sofrimento na perspectiva de Viktor Frankl é um impulsionador para a ressignificação da vida.

Breitbart (2003) observou que pacientes em cuidados paliativos passaram por uma transformação significativa, mesmo sabendo que lhes restava pouco de vida. A partir disso, ele concluiu que quando esclarecido do prognóstico, com sintomas controlados e com melhor qualidade de vida, o paciente sente paz. Nessa perspectiva, a espiritualidade faz o sujeito refletir acerca da experiência existencial, influencia a maneira como enfrenta as repercussões do adoecer, como atribui significado e sentido às intempéries do percurso (Kóvacs, 2007).

Investigar se os pacientes oncológicos adultos em cuidados paliativos recorrem à espiritualidade a fim de construir sentidos para as suas experiências produziu alguns achados dignos de reflexões. Entre estes, o câncer aparece com uma doença da ordem do impensável e do horror para os participantes. A relação médico-paciente, quando não satisfatória interfere em como o paciente irá lidar com o adoecimento e a morte. Os participantes se culpam por terem adoecido, consideram que estão sendo punidos por seus hábitos e escolhas de vida.

É imprescindível ressaltar que o conceito de espiritualidade ainda é pouco desconectado da ideia de religiosidade. Entretanto, identificou-se que para algumas pessoas o significado de espiritualidade extrapola os conceitos enrijecidos e as práticas apenas religiosas de expressão da fé. A fé para construir um sentido ou para oferecer um suporte de enfrentamento ao adoecimento é bastante relevante, juntamente com o apoio familiar, tendo como premissa básica uma assistência médica de qualidade. Recorre-se à fé como algo da ordem do sobrenatural que pode conceber o que não é possível aos recursos naturais. Metade da amostra (equivalente a cinco pacientes) se caracterizou de pessoas recém-chegadas à unidade hospitalar de cuidados paliativos exclusivos, todas bastante mobilizadas com o prognóstico, experimentando sentimento de revolta e/ou tristeza. Entretanto, todas estavam acompanhadas de seus familiares e recorrendo à espiritualidade de alguma maneira para lhes ajudar.

Identificamos algumas limitações neste trabalho, a saber, a maioria dos participantes estava muito debilitada e acamada, o que os impediu de serem entrevistados em um lugar mais reservado, diferente dos quartos da enfermaria. Inicialmente, a escolha da amostra com a colaboração da equipe precisou passar por uma criteriosa seleção, pois os participantes que estavam sendo selecionados professavam algum tipo de credo religioso. Tal escolha não fazia parte dos objetivos deste estudo.

A prática hospitalar nos mostra que a religiosidade pode surgir também como um complicador no tratamento, por exemplo, o paciente não segue o tratamento porque o líder espiritual disse para não seguir ou porque os dogmas de sua religião não permitem certas intervenções (Koenig, 2007). Apesar destes casos não terem sido encontrados entre os participantes desta pesquisa, costumam ser recorrentes e, portanto, pode ser objeto de pesquisas futuras. Compreender a implicação desta interferência no processo de saúde é relevante para a conduta profissional e para quem recebe os cuidados.

Por fim, espera-se que novos estudos continuem a aprofundar a investigação acerca da espiritualidade no contexto hospitalar para que esta temática seja mais discutida e compreendida no meio acadêmico com maior empenho, uma vez que é questão central na vida de muitos sujeitos, sobretudo, em pessoas com doenças crônicas e em momentos últimos de vida.

Contribuição dos autores

Juliana Soares: Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

Rafaela Braga: Metodologia, Administração do projeto, Supervisão, Redação - revisão e edição.

Renato Borges Neto: Conceitualização, Supervisão, Redação - revisão e edição.

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Recebido: 28 de Junho de 2022; Aceito: 20 de Dezembro de 2022

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