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Psicologia, Saúde & Doenças

Print version ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.23 no.3 Lisboa Dec. 2022  Epub Dec 31, 2022

https://doi.org/10.15309/22psd230307 

Artigos

Vivência de filhos adultos cuidadores de pacientes oncológicos em cuidados paliativos

The experience of adult children caregivers of oncology patients in palliative care

Jade Rosa1 
http://orcid.org/0000-0002-6520-8326

Mariana Moreira2 
http://orcid.org/0000-0003-0199-8899

Sílvia Haas3 

1 Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Saúde, Psicologia, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, RS, Brasil, jadesdarosa@gmail.com

2 Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, RS, Brasil, marianacalesso@gmail.com

3 Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, RS, Brasil, silvia.haas@santacasa.org.br


Resumo

Frente ao contexto de oncologia e cuidados paliativos, a atenção ao paciente deve ser estendida aos familiares, visto que estes também sofrem os impactos da doença, ainda mais quando assumem o papel de cuidadores. Este trabalho trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo e exploratório, que teve por objetivo compreender a experiência de filhos cuidadores de pacientes com câncer, acompanhados pelo Programa Gerenciado de Cuidados Paliativos de um hospital oncológico adulto de Porto Alegre-RS. As participantes foram oito filhas de pacientes internados, selecionadas por conveniência. A coleta de dados ocorreu por meio de um questionário de dados sócio-demográficos e uma entrevista semi-estruturada, sendo os materiais avaliados através do método de análise de conteúdo. Os resultados obtidos evidenciaram os impactos na vida das famílias, ressaltando as repercussões emocionais do adoecimento, as reverberações do papel de cuidadora, as mudanças na rotina, bem como nos planos e projetos frente à iminência da perda. Todas as participantes manifestaram o desejo de exercer o cuidado diante dos sentimentos de gratidão e carinho para com o seu genitor. Contudo, também demonstraram sobrecarga com esta função, além de sintomas ansiosos e depressivos. A vivência dos filhos convoca a reflexões e intervenções específicas direcionadas a esta população, atentando para a importância de estudos sobre essa temática.

Palavras-chave: Oncologia; Cuidados paliativos; Família; Filhos adultos

Abstract

Facing the oncology context and palliative care, the attention to patients must be extended to family members, since they also suffer with the disease impacts, even more so when they assume the caregivers role. This is a qualitative research work, of an explanatory and descriptive nature, which proposed to understand the experience of adult children caregivers of cancer patients, followed up by the Management Programme of Palliative Care in one of the adult oncology hospital in Porto Alegre-RS. The participants were eight daughters of hospitalized patients, selected by convenience. The data were collected with a socio-demographic data questionnaire and a semi-strutured interview, the materials were assessed through the content analysis method. The results obtained have shown the impacts in lives of the families, highlighting the emotional repercussion of sickness, the reverberation of the caregiver role, the changes in routine, as well as in plans and projects on the verge of the imminent loss. All the participants manifested the desire to exert care by their feeling of thankfullness and affection towards their genitor. However, they report being overwhelmed with this function, besides the anxiety and depressive symptoms. The children experience calls for reflections and specific interventions targeted to this population, considering the importance of the studies about this theme.

Keywords: Oncology; Palliative Care; Family; Adult Children

A doença oncológica é considerada um dos problemas mais complexos enfrentados no sistema de saúde pública mundial devido à sua importância epidemiológica, social e econômica (Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva [INCA], 2011). Estimativas da Organização Mundial da Saúde alertam que, em 2030, haverá uma incidência de 27 milhões de casos, 17 milhões de óbitos e 75 milhões de pessoas acometidas por essa doença anualmente, ressaltando a magnitude deste problema no Brasil (INCA, 2018). Ainda, na maioria das vezes, a descoberta do diagnóstico de câncer vem acompanhada de um estigma negativo e ameaçador, compreendido como sinônimo de sofrimento e morte (Sengul et al., 2014).

Diante da cronicidade dessa doença e potencial ameaça à vida do sujeito, instaura-se a necessidade de ampliar os cuidados para além dos sintomas físicos, propiciando a assistência integral tanto para o paciente quanto para sua família. Nesse sentido, os cuidados paliativos se mostram como uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e familiares que estejam lidando com uma doença que ameace a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual (World Health Organization [WHO], 2018). De acordo com o Worldwide Palliative Care Alliance (WPCA), seis milhões de pessoas com câncer necessitam de cuidados paliativos em todo o mundo, sendo a maioria composta por adultos com idade superior a 60 anos (Connor & Bermedo, 2014).

Na abordagem dos cuidados paliativos, o olhar para a família é primordial, uma vez que esta apresenta demandas sociais, espirituais, físicas e psicológicas durante o processo de cuidado do seu familiar em adoecimento (Reigada et al., 2014). Sabe-se que, no momento em que a doença acomete um membro da família, os efeitos repercutem em todo o sistema familiar, acarretando uma ruptura da dinâmica anteriormente estabelecida e a consequente necessidade de ajustamento frente à nova realidade. No caso do paciente com câncer e em cuidados paliativos, intensificam-se as modificações nos padrões de interação, regras e responsabilidades entre todos os envolvidos no processo (Barbosa et al., 2017; Franco, 2008). A família tende a se reorganizar para oferecer o suporte que o paciente necessita e a partir desta dinâmica surge a função de um cuidador principal. De acordo com Floriani e Schramm (2008), define-se como cuidador principal o responsável pelas tarefas de auxílio e cuidado diário ao paciente, sendo associado, normalmente, à figura dos cônjuges ou pais e filhos (Gayoso et al., 2018).

A responsabilidade assumida pelos filhos pode se justificar tanto pelo sentimento de obrigação filial, sendo este advindo de valores da sociedade e da cultura, quanto pelos sentimentos de proteção e desejo genuíno de participação no cuidado em função de vínculos consistentes (Chappell & Funk, 2012; Silva, 2013). Além das mudanças de papéis que podem surgir entre pais e filhos, alteram-se os comportamentos, regras e hábitos (Oliveira et al., 2016). O cuidado dos filhos para com os pais pode estar associado ao bem-estar dos cuidadores, da mesma forma que pode representar um fator de sobrecarga para estes (Funk et al., 2011). O estudo de Mosher e Danoff-Burg (2005) sobre o impacto psicossocial do câncer dos pais nos filhos verificou a existência de sofrimento psicológico e sintomas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático na amostra pesquisada.

A escassez de pesquisas específicas sobre esta temática pode estar associada ao fato de que, socialmente, pensa-se que o impacto da doença oncológica dos pais seja mais ameno nos filhos adultos (Amorim & Pereira, 2009). No entanto, estes familiares podem reagir ao adoecimento dos genitores de maneira mais complexa e intensa do que geralmente se acredita, ressaltando a necessidade de estudos e consequente atenção a essa população (Scoz, 2012).

Em uma busca realizada em bases de dados PubMed, Lilacs, Scielo e Pepsic, a partir dos descritores “câncer”, “cuidados paliativos”, “família”, “cuidador”, “filhos adultos”, e considerando publicações nos idiomas português, espanhol e inglês, foram encontrados materiais bibliográficos sobre o impacto do câncer dos pais em filhos adultos, porém eles não relacionavam a vivência dos cuidadores e a abordagem de cuidados paliativos. Por outro lado, encontraram-se trabalhos sobre a experiência de familiares cuidadores de pacientes oncológicos em cuidados paliativos, porém estes não focavam a vivência específica dos filhos.

Frente ao exposto, o presente estudo teve como objetivo compreender a experiência de filhos cuidadores de pacientes com câncer, acompanhados pelo Programa Gerenciado de Cuidados Paliativos de um hospital oncológico adulto de Porto Alegre-RS. Além disso, visou compreender a perspectiva dos filhos sobre ter um genitor em cuidados paliativos, analisar suas repercussões emocionais e identificar as mudanças ocorridas na vida dos filhos. Busca-se, com esta pesquisa, favorecer o apoio e suporte adequados aos filhos, já que este processo poderá ter repercussões diretas no bem-estar e nos cuidados do paciente, bem como na qualidade de vida e elaboração do processo de luto de todos os envolvidos.

Método

Delineamento

Trata-se de um estudo transversal de caráter descritivo e exploratório, com metodologia qualitativa.

Participantes

A amostra foi constituída por oito participantes, selecionados por conveniência, sendo todas mulheres, ainda que o sexo não tenha sido um critério de inclusão da amostra. Entre os pacientes internados, um era do sexo masculino e sete do sexo feminino. A delimitação do número de participantes respeitou o critério de saturação dos dados. Foram incluídos no estudo filhos de pacientes com câncer, acompanhados pelo Programa Gerenciado de Cuidados Paliativos de um hospital oncológico de Porto Alegre-RS, que compreendiam o diagnóstico e a abordagem de cuidados paliativos, oferecida e registrada em prontuário. Ademais, deveriam ter acima de 18 anos e serem os cuidadores principais do paciente durante a internação hospitalar. Foram excluídos da amostra os filhos que, no momento da coleta de dados, não apresentavam condições emocionais de responder a uma entrevista em virtude do momento de vida do paciente e consequentemente da tristeza intensa do familiar e desejo de permanecer ao lado do seu genitor, o que era previamente avaliado pela pesquisadora e demais membros da equipe assistencial. As características dos participantes incluídos estão expostas no Quadro 1.

O acesso aos participantes ocorreu por meio das solicitações da equipe de saúde para acompanhamento psicológico no hospital ou da busca ativa de uma das pesquisadoras pelos prontuários. Os possíveis casos foram avaliados no que concerne às condições clínicas do paciente e, por consequência, as condições emocionais do familiar para se ausentar durante o período da entrevista. Na medida em que os filhos se enquadravam nos critérios para a pesquisa, foram convidados a participar.

Quadro 1 Características dos participantes 

Nota. *As participantes estavam afastadas do trabalho devido à dedicação aos cuidados do seu familiar.

No que concerne ao acompanhamento psicológico externo à hospitalização, três participantes informaram realizá-lo, duas mencionaram que faziam, mas necessitaram parar e três relataram não fazer. Das oito participantes, cinco referiram fazer uso de medicação para depressão e ansiedade. Duas participantes relataram que passaram a residir com o paciente após o adoecimento, duas mencionaram que já residiam mesmo antes do diagnóstico e quatro afirmaram não residir com o paciente. Torna-se importante ressaltar que todas as participantes se denominaram como cuidadoras principais desde o diagnóstico.

Material

Os instrumentos para coleta de dados utilizados foram um questionário de dados sociodemográficos e uma entrevista semiestruturada. O questionário buscou caracterizar as participantes abordando dados como: idade, sexo, escolaridade, situação profissional, estado civil, número de filhos, acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico, coabitação com o paciente e período em que se considera cuidadora principal. Em se tratando da entrevista, a mesma foi desenvolvida com o intuito de compreender a vivência das filhas a partir de questões norteadoras formuladas pelas pesquisadoras, que abarcaram as repercussões emocionais de possuir um dos pais nesta condição, aspectos da relação da entrevistada com o paciente e as mudanças acarretadas na vida da filha. As entrevistas foram realizadas por uma das pesquisadoras, gravadas em áudio digital e, posteriormente, transcritas na íntegra.

Procedimento

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e pela Comissão de Pesquisa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (parecer nº 04689218.0.0000.5335). Para a realização do estudo também foram considerados os preceitos éticos preconizados pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde 510/2016 (Brasil, 2016). A entrevista foi realizada nas Unidades de Internação de um hospital oncológico de caráter filantrópico em Porto Alegre-RS. O hospital em questão é considerado um centro especializado em oncologia de adultos, sendo referência estadual e nacional para prevenção, diagnóstico e tratamento do câncer. Torna-se importante ressaltar que as participantes assinaram duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, permanecendo uma com elas, e que a participação no estudo ocorreu de forma voluntária. Nas situações em que foi identificada demanda para acompanhamento psicológico durante a coleta de dados, as familiares foram acolhidas primeiramente pela pesquisadora, sendo fornecidas as orientações e encaminhamentos necessários para o seguimento. Nesse sentido, seis das oito participantes já estavam em acompanhamento pela equipe de psicologia do Hospital em questão. Em relação ás duas familiares que não eram atendidas anteriormente, o encaminhamento foi realizado, porém uma delas não o viu necessário no momento.

Análise de dados

A análise dos dados coletados foi realizada por meio do método de análise temática de conteúdo, através do desenvolvimento de categorias temáticas pautadas na relação do conteúdo das entrevistas com a literatura (Hsieh & Shannon, 2005). As categorias temáticas foram definidas posteriormente, dirimindo as possíveis interferências na análise frente às expectativas que surgiriam em caso de categorias pré-definidas. A análise foi composta por algumas etapas, iniciando a partir da transcrição das entrevistas como forma de apropriação do material. Após a leitura, buscou-se classificar as falas em unidades de registro, sendo estes trechos significativos para o contexto em questão. A partir destas unidades de registro, foram identificadas três categorias de análise, estando estas organizadas em eixos temáticos para melhor explanação dos dados.

Resultados

A partir da análise de conteúdo, foram desenvolvidas três categorias que serão discutidas a seguir: 1) Repercussões emocionais nos filhos diante do genitor em cuidados paliativos, 2) Significados de ser o cuidador principal, 3) Mudanças na vida cotidiana.

1) Repercussões emocionais nos filhos diante do genitor em cuidados paliativos

A primeira categoria diz respeito ao impacto emocional frente ao diagnóstico, à progressão da doença e à perspectiva dos cuidados paliativos. Ademais, contempla as maneiras encontradas pelas filhas para lidar com a realidade que se impõe. Desta categoria emergiram dois eixos temáticos: Sentimentos despertados e Enfrentamento de uma nova realidade.

1.1) Sentimentos despertados: o primeiro eixo abarca as expressões emocionais frente a possuir seu pai ou mãe em cuidados paliativos. Uma das participantes [P2] ilustra em sua fala os sentimentos de tristeza e impotência apresentados: “Muito triste saber que o diagnóstico dela é maligno né. Te deixa mais apreensiva, preocupada, tu tem medo de perder aquela pessoa a qualquer momento né. Tu não sabe o que tu faz. E não depende da gente né, foge das mãos da gente”. Também, o medo da perda é visto como um dos sentimentos mais prevalentes.

Por sua vez, o sentimento de amadurecimento aparece na fala de outra participante [P5], como possibilidade de ressignificação da experiência de dor e de perda: “É um aprendizado pra todo mundo, um aprendizado de tudo. O lado ruim e o lado bom de ela (mãe) te ensinar muita coisa. Ela te fazer ver muitos detalhes, valorizar a tua vida, valorizar a vida dos próximos né”.

O sentimento de gratificação diante do cuidado do seu familiar e o desejo de protegê-lo aparecem como um imperativo nas respostas das participantes, como se percebe na verbalização de P1: “É triste, mas é gratificante saber que eu pude cuidar dela. Lá dentro de mim eu vou ter aquela sensação de alívio que eu pude cuidar da minha mãe, que minha mãe não ficou abandonada, não morreu sofrendo, ela morreu sabendo que eu amo ela, que eu cuidei dela, que eu fiz o que eu pude e o que não pude”.

1.2) Enfrentamento de uma nova realidade: o segundo eixo de análise refere-se aos caminhos adotados diante do impacto causado pelo adoecimento e tratamento do seu familiar. Nos trechos seguintes evidencia-se o uso da espiritualidade como um suporte e alívio do sofrimento. “Eu tento ser forte por ela né. Ás vezes dá vontade de desabar, mas aí eu peço pra Deus me dar forças” [P2]. “O espiritismo te dá amparo para doença, para dor e para morte” [P3]. O acompanhamento psicológico e, por vezes, psiquiátrico também foram destacados nas entrevistas. A fala de P4 exemplifica esse tópico: “Eu voltei a fazer terapia ano passado pra conseguir lidar com isso, e isso me deu um bom apoio”.

2) Significados de ser o cuidador principal

A segunda categoria está vinculada à forma como as participantes entendem o fato de assumir a responsabilidade pelos cuidados e pelas decisões relacionadas ao tratamento e internação hospitalar do seu genitor. Abrange as relações identificadas pelas participantes para auxiliar nos aspectos que circundam o cuidado do familiar adoecido e propicia o desenvolvimento de dois eixos temáticos, sendo eles: A troca de papéis e Rede de apoio e suporte.

2.1) A troca de papéis: o primeiro eixo refere-se à maneira que as filhas se inserem neste lugar de referência para os cuidados do seu genitor. Visa descrever a experiência daquele que esteve na posição de ser cuidado durante a infância e/ou mesmo na adultez e que passa a assumir o papel de responsável, respondendo as demandas de quem clama por alguém que lhe proteja e lhe ampare. As participantes abordam a mudança ocorrida nos papéis, tal como aparece na fala de P3: “Agora ela é minha filha (risos). Não deixa de ser né. Os pais acabam virando filhos da gente também”. Ademais, o trecho a seguir, trazido por P5, expõe de que forma essa mudança ocorre. “É uma troca de papéis. Como é o cuidado e dedicação de mãe né, que no meu caso com ela, é troca de fralda, dar banho, higieniza, cuida, olha, dá comida, tudo né. Então há uma inversão de papéis ali que, como mãe, tu não podes deixar transparecer demais pra ela não se sentir menosprezada”.

2.2) Rede de apoio e suporte: o segundo eixo refere-se às relações significativas para lidar com questões práticas do processo de adoecimento, como os cuidados básicos e acompanhamento durante a internação. Fica explícita na fala de algumas das participantes a dificuldade para encontrar auxílio, realizando o cuidado de maneira solitária e acarretando em sentimento de sobrecarga, conforme consta na fala de P4: “Eu acho pesado. Às vezes eu fico esperando que venha alguém e diga: ah vamos junto, eu te ajudo, mas não tem ninguém. Quem sabe quando meu irmão chegar dívida um pouco, sabe”. A tomada de decisões também é sentida de forma mais solitária. O trecho de P8 ilustra essa constatação: “É um pouco difícil porque te sobrecarrega ser só tu e ter que tomar tantas decisões”. De acordo com o relato, a participante expõe o seu descontentamento diante da escassa rede de apoio, necessitando assumir sozinha a responsabilidade pela tomada de decisões quanto ao tratamento da mãe, como a limitação de medidas terapêuticas que não beneficiariam a paciente. Diante disso, dentre os familiares que as filhas denominaram como rede de apoio, ainda que escassa, estão os irmãos, tios e esposo. Somente três dos pacientes internados possuíam cônjuge, sendo que em apenas um dos casos este familiar auxiliava nos cuidados. Dentre os demais, um trabalhava e o outro também estava adoecido, gerando mais uma demanda para a filha cuidadora.

3) Mudanças na vida cotidiana

A terceira e última categoria trata das Mudanças na vida cotidiana da filha cuidadora em prol da presença constante no hospital. Essa categoria abrange o impacto no autocuidado físico e mental, assim como nas atividades de interesse e demais relações pessoais. Também, abarca a visão de futuro das cuidadoras na ausência do seu genitor. Desta categoria emergiram três eixos temáticos, sendo eles: Um olhar para si, O impacto da tarefa de cuidar e Perspectivas para o futuro.

3.1) Um olhar para si: o primeiro eixo refere-se à dificuldade das participantes em encontrarem espaços para si mesmas, havendo uma priorização total da atenção ao seu familiar. Abarca aspectos do cuidado com a sua saúde e bem-estar, como descreve a P1: “Hoje eu vivo a vida da minha mãe. Eu não sinto vontade de comer sabendo que minha mãe tá ali e não tá comendo. Se eu for pra casa eu também não como, eu não durmo direito de noite”. Percebe-se que há um esquecimento de si, como se todo o investimento de vida estivesse voltado para a mãe.

A falta de tempo é outro fator que aparece nos relatos, tal como no trecho a seguir: “A minha vida parou para atender ela” [P8]. Percebe-se também que as atividades de lazer não encontram mais espaço na vida das filhas. Quando encontram, são acompanhadas pela culpa por não estarem próximas do seu familiar, conforme traduz a mesma participante: “Meu marido diz: vai no salão, te cuida. Mas eu não vou, não sei, eu to me travando pras coisas e não faço. Eu não me permito fazer”. Até mesmo as atividades básicas não conseguem ser administradas, como menciona a P6: “Tempo, eu não tenho mais. Eu não tenho mais tempo nem pra fazer exame de sangue. Eu preciso de tempo pra ir numa consulta. Eu preciso de tempo pra tomar um banho”.

3.2) O impacto da tarefa de cuidar: o segundo eixo considera o impacto do adoecimento, tratamento e internação do genitor nas demais atividades e responsabilidades das filhas. Engloba as atividades laborais e de estudos, assim como as responsabilidades relacionadas aos demais familiares. Este eixo pode ser exemplificado na fala de P2: “A gente tem que se deslocar da cidade aonde mora pra buscar recurso aqui em Porto Alegre, longe da família, ter que deixar minhas filhas, esposo, casa né, meus gatinhos”. Percebe-se que a mudança impacta também na dinâmica familiar. Além disso, as atividades laborais são renunciadas para dar conta das demandas dos pais, conforme traz a P1: “Eu parei de trabalhar, me tornei dependente das pessoas né, não tenho como pagar aluguel, nem minha roupa, nem a comida”.

Nesse eixo existem percepções diferentes em relação às mudanças na rotina. Uma visão sobre a necessidade de abdicar de suas atividades aparece no relato de P3: “Tu tem que abrir mão de coisas pra poder ajudar do outro lado”. Tal depoimento sugere que a participante vê como a única possibilidade a reconfiguração da sua vida para ajudar a mãe em seus cuidados. Porém, uma percepção diferente é trazida por P4, quando esta diz: “Uma das coisas que eu resolvi pra mim é que não vou abrir mãos das minhas coisas, sabe. Mas eu não quero ter esse peso na consciência de não estar com ele. E não quero deixar de aproveitar o pouco tempo com ele. E eu entendo que eu tenho pouco tempo com ele. Então eu tenho que fazer o máximo que puder no tempo que eu tenho”. Neste caso, percebe-se que, por mais que exista o desejo de estar ao lado do genitor e prestar suporte, também permanece o investimento na vida pessoal, com vistas a perspectivas futuras, como complementa a participante: “Se eu abrir mão e ele falece, o que eu faço?”.

3.3) Perspectivas para o futuro: o último eixo da análise visa explanar os sentimentos expostos em relação a como os filhos encaram o rompimento de planos e projetos que incluíam o genitor, como refere a P6: “É bem complicado porque tu tem toda uma vida, uma vida planejada, uma vida que tu imagina. Tu planejar um casamento sabendo que a tua mãe não vai estar lá é bem difícil”. A percepção da participante aponta para a dificuldade em redimensionar as expectativas de futuro frente à perda iminente de sua mãe.

Outro relato que se enquadra neste eixo é o de P7: “Uma das maiores preocupações é como vai ser depois, mas eu não posso pensar em quando ela vai morrer se ela ainda tá viva. Depois que tudo acontecer eu vejo. Ás vezes eu me sinto culpada porque quando eu penso assim é como se eu não tivesse mais minha mãe”. Percebe-se que a possibilidade de refletir sobre um futuro na ausência do seu genitor vem acompanhada de um sentimento de culpa, como se estivesse antecipando a morte da mãe. Assim, evita-se pensar no futuro, procurando manter o momento presente, de cuidados ao familiar, como a via possível para enfrentar a realidade.

Os resultados obtidos através da análise do conteúdo das entrevistas possibilitaram uma compreensão de diversos aspectos associados à vivência de ser o cuidador do seu pai ou mãe em cuidados paliativos. A seguir, os dados advindos da pesquisa serão relacionados com outros estudos e substratos teóricos sobre o tema, com vistas a favorecer uma reflexão crítica deste processo.

Discussão

Em cuidados paliativos, a família é parte integrante e essencial no cuidado integral ao paciente. Ela se apresenta como um cuidador informal, um mediador dos cuidados profissionais ofertados, assim como uma importante referência durante todo o processo de adoecimento. Todavia, o cuidar nestas condições também pode trazer como consequência níveis elevados de depressão, ansiedade e estresse nos familiares, da mesma forma em que pode acarretar na diminuição da qualidade de vida (Almeida, 2012).

Os resultados deste estudo evidenciam repercussões de diversas ordens na vida das filhas. No que tange ao impacto emocional, percebe-se que os sentimentos de tristeza, impotência e medo da perda são presentes para a totalidade das participantes. Outros autores corroboram os dados ao definir que, dentre os sentimentos negativos mais prevalentes na vivência de cuidadores tanto de pacientes oncológicos quanto em cuidados paliativos estão, além dos anteriormente citados, o desespero e a culpa decorrentes da sensação de impotência ao perceber que, por mais que se dediquem aos cuidados, não vislumbram melhora no quadro do seu familiar (Cunha et al., 2018).

Contudo, percepções positivas também foram detectadas no presente estudo, na medida em que a experiência, para algumas participantes, estaria vinculada ao aprendizado e valorização da vida. O estudo de Levesque e Maybery (2013) vai ao encontro destes resultados, uma vez que identificou dimensões diferentes da experiência de ter um genitor com câncer: além do viés de dor e sofrimento emocional, também se percebeu aspectos positivos frente ao adoecimento, tais como fortalecimento do vínculo entre pais e filhos e mudança de visão da vida. Outros autores também citam a satisfação por prestar os cuidados ao seu familiar, a esperança e o crescimento pessoal como sentimentos positivos nos cuidadores (Duarte et al., 2013). McPhail et al. (2016), ao estudarem o impacto do câncer dos pais nos filhos, constataram que estes mantinham uma perspectiva mais positiva a partir desta vivência, bem como se sentiam mais maduros e fortalecidos.

Todas as participantes expressaram sofrimento frente à compreensão de gravidade do quadro clínico e iminência da perda. A proximidade com seu familiar, bem como o desejo genuíno de cuidar e a gratificação pela possibilidade de auxiliar o seu genitor até o fim da sua vida pareceu lhes trazer conforto e satisfação. Os dados da literatura reforçam essa constatação na medida em que afirmam que a qualidade e o tipo de vínculo construído entre pais e filhos estão relacionados à disponibilidade do filho para cuidar e à qualidade dos cuidados prestados, assim como das consequências disso para os próprios filhos (Silva, 2013). Alguns autores acrescentam que, ainda que se trate de uma tarefa árdua, a relação afetiva entre o cuidador e o paciente transforma o cuidado em um ato de amor e de prazer (Fratezi & Gutierrez, 2011).

Por sua vez, outros autores (Chappell & Funk, 2012; Funk et al., 2011) afirmam existir, por vezes, uma relação de obrigação de cuidado por parte dos filhos, sendo esta derivada de valores impostos pela cultura familiar e sociedade. Dessa forma, o cuidado passa a ser um dever moral na medida em que, quando eram crianças, os pais cuidaram dos filhos, instaurando a necessidade dos filhos cuidarem dos pais quando estes se tornam dependentes, sendo este sentimento perpassado pelas gerações (Oliveira et al., 2016). Ponte e Pais- Ribeiro (2014) trazem que, quando a relação anterior ao adoecimento era conflituosa ou distante, o cuidado se relaciona com o sentimento de obrigação e imposição como forma de evitar censura por parte dos demais membros da família e conquistar aprovação social.

Diante do impacto causado pela doença e tratamento do seu genitor, somado ao peso das responsabilidades assumidas, torna-se necessária a busca por maneiras para enfrentar este processo. Sendo assim, verifica-se que a espiritualidade e a fé destacam-se como importantes recursos para aliviar o sofrimento. De acordo com Moreno-González et al. (2018), existe uma tendência por parte dos familiares a buscarem respostas em algo divino, fazendo referência a um ser supremo, em quem confiam e depositam sua fé. Através da espiritualidade, os familiares encontram significados para a enfermidade, sofrimento e morte, bem como força para enfrentá-los. A pesquisa realizada por Costa et al. (2016) sobre a avaliação da estrutura familiar de pacientes em cuidados paliativos no domicílio, reforça a presença da religiosidade ao constatar que a maioria das famílias mantinha um vínculo espiritual.

O acompanhamento psicológico e psiquiátrico também foram citados entre os mecanismos encontrados pelas participantes como fonte de apoio e suporte. Diversos são os autores que explanam sobre os benefícios da psicoterapia no contexto dos cuidados paliativos para os familiares, tais como gerenciamento de conflitos e decisões, auxílio na elaboração do processo de luto antecipatório - em que a pessoa enlutada experiencia a perda antes que ela ocorra efetivamente, proporcionando a elaboração da realidade, bem como o encontro de novos significados, relações e identidades (Franco, 2014). Além disso, o acompanhamento psicológico contribui para a redução de sintomas psicopatológicos existentes e/ou auxilia na prevenção de incidência de sintomas futuros diante da perda iminente (Braz & Franco, 2017; Rezende et al., 2014).

Conforme mencionado pela maioria das participantes, dentre as repercussões familiares frente ao adoecimento, cria-se a necessidade de reorganização tanto da estrutura, quanto dos papéis e das relações afetivas (Farinhas et al., 2013). Assim, a troca de papéis surge na medida em que aquele que foi cuidado na infância e/ou mesmo na adultez, passa a ser responsável pelos cuidados básicos do seu pai ou mãe. Oliveira et al. (2016), ao se referirem à “prática maternal” assumida pelo filho, salientam haver uma relação de poder e submissão. Todavia, na presente pesquisa, o papel adotado de cuidador aparece como forma de prestar carinho e gratidão, e não vinculado à superioridade.

Ao se assumirem como referência de cuidado, a responsabilidade integral parece recair sobre as filhas. O sentimento de sobrecarga e, por vezes, de solidão diante das decisões a serem tomadas, repercute no estado emocional das familiares, intensificando níveis de estresse e tensão. Em pesquisa realizada por Delalibera et al. (2018), visando à caracterização do cuidador em cuidados paliativos, identificou-se que 65% eram filhos. Os familiares relataram insuficiência de apoio prático e emocional advindo de membros da família e amigos. Essa ausência de suporte pode estar relacionada a maiores níveis de ansiedade, depressão e somatização, segundo os autores. No presente estudo, muitas das participantes referiram fazer uso de medicação para depressão e ansiedade, o que pode estar relacionado com o empobrecimento da rede de apoio.

A pesquisa de Areia et al. (2018) sobre familiares cuidadores de indivíduos com câncer terminal em cuidados paliativos corrobora os dados encontrados, na medida em que se percebeu uma alta prevalência de sofrimento psicológico, depressão, ansiedade, somatização e luto antecipatório complicado nesses sujeitos. De acordo com os resultados dessa pesquisa, realizada com 112 familiares cuidadores, 66,1% dos familiares apresentaram altos níveis de sofrimento, 68,8% elevado risco de depressão e 72,3% risco significativo de ansiedade. Considerando o contexto de filhos cuidadores de pacientes oncológicos, a vivência em si pode desencadear estresse e ansiedade, bem como ser um potencial para sintomatologia depressiva, no momento em que os filhos passam pelas diferentes etapas da doença do genitor e confrontam-se não só com a possível mortalidade de um dos pais, mas também com a sua própria vulnerabilidade à doença e finitude (Amorim & Pereira, 2009; Mosher & Danoff-Burg, 2005).

A pesquisa evidenciou que a maioria das filhas tinha uma presença constante no hospital junto ao genitor internado. O investimento de vida, ao se restringir ao cuidado para com o seu familiar, retrata a renúncia das participantes em olharem para si. Diante do contexto da percepção de familiares/cuidadores de pacientes com diagnóstico de câncer terminal em atendimento domiciliar sobre cuidados paliativos, Oliveira et al. (2017) apontam que o cuidador modifica sua vida para lidar com o adoecimento e possíveis intercorrências. As anulações das vontades e desejos individuais em prol das necessidades do paciente foram percebidas. Ainda que esses autores se remetam ao cuidado no domicílio, também se verifica essa realidade no ambiente de internação hospitalar. Portanto, pode-se definir que "a linha tênue de divisão entre a vida do paciente e do cuidador desaparece, pois, o cuidador passa a experimentar a vida do seu familiar doente intensamente a fim de que nada lhe falte" (Freitas et al., 2008, p. 512).

A falta de tempo para administrar outras atividades que não relacionadas com as demandas dos pais é outro fator enfatizado pelas participantes. Um estudo sobre a sobrecarga e prevalência da sintomatologia psicopatológica dos cuidadores de familiares em cuidados paliativos, sendo a maioria filhos, evidenciou que 41,3% destes se dedicavam aos cuidados mais de 16 horas do seu dia (Delalibera et al., 2018). Na presente pesquisa, também pode-se perceber que, mesmo quando se apresentava um espaço para outros interesses, existia um sentimento de culpa subsequente, não autorizando que as filhas dedicassem tempo para si mesmas.

Nas entrevistas fica claro que metade das participantes referiu ter se afastado do emprego em virtude de assistência ao genitor, sendo que, da outra metade, apenas duas participantes seguiam ativas laboralmente, enquanto uma estava aposentada e outra exercia atividades no lar. Outros estudos corroboram os achados, na medida em que verificaram que uma parcela significativa dos cuidadores abdicou do seu ofício para dedicar-se integralmente aos cuidados do familiar. Também, descreveram que outros cuidadores diminuíram o tempo de trabalho para conciliar as demandas do paciente com demais atividades (Delalibera et al., 2018; Wasner et al., 2013).

Segundo Funk et al. (2011), o cuidado dos filhos para com os pais pode estar associado a um fator protetivo para o bem-estar dos cuidadores ou pode resultar em sobrecarga para os mesmos, na medida em que existe uma tensão para os filhos e filhas que necessitam de um nível de organização cada vez mais elaborado para cuidar dos seus pais e avós idosos, cuidar dos filhos e prover financeiramente a família (Rolland, 2016). De fato, essas constatações são reforçadas pelos resultados obtidos na pesquisa, em que a maioria das participantes referiu afastamento dos outros familiares, tais como filhos e cônjuge, bem como das demais atividades de rotina.

No que tange às perspectivas para o futuro, para a maioria das participantes, configura-se uma dificuldade refletir sobre a vida na ausência do seu genitor, considerando o vínculo e a inclusão deste familiar em seus projetos. No momento em que se permite pensar sobre essa realidade, o sentimento de culpa aparece na fala de uma das participantes como uma forma de sentenciar o anteceder a morte. Assim, sabe-se que o impacto que a ausência dos pais terá sobre a dinâmica familiar e a própria existência são temas que, ainda que possam ser pensados, seguem como um registro desconhecido na experiência dos filhos cuidadores. Além da perda da função de cuidador, que está intimamente associada à sua identidade, cogitar a sua vida sem a pessoa amada pode acarretar em intensa angústia (Lima & Machado, 2018).

Diante da posição assumida pelas filhas, de responsabilidade pelos cuidados e consequente proximidade com a dor e com a morte de seus pais, este estudo se aproxima da pesquisa de Scoz (2012), sobre o luto antecipatório de filhos adultos de pacientes com doença oncológica em progressão. A autora percebeu haver uma vivência ambivalente entre a elaboração das perdas (reais e simbólicas) e as decisões práticas, apelos por novas vivências e resistência a investir em outros contextos que não o de adoecimento do genitor. A experiência da relação intensamente íntima entre pais e filhos pode revelar aspectos do passado desta relação, bem como gerar impactos positivos ou negativos no futuro, considerando o pós-óbito do familiar.

Diversas são as publicações relacionadas aos cuidadores de pacientes oncológicos e em cuidados paliativos que apontam que os filhos estão entre os principais responsáveis pelos cuidados (Almeida, 2012; Areia et al., 2018; Delalibera et al., 2018; Gayoso et al., 2018; Oliveira et al., 2016). Apesar de trazerem dados significativos, parece existir uma invalidação cultural e social desta experiência, naturalizando-a, na medida em que a doença e a morte dos pais tendem a anteceder a dos filhos. Além disso, também se percebe uma banalização do ato de cuidar, como se fosse resumido a uma retribuição de favores, renegando as repercussões que essas responsabilidades impõem na vida de quem as assume. No presente estudo, foi possível identificar o intenso sofrimento por parte das participantes ao acompanharem o processo de adoecimento e as limitações impostas, que as confrontavam com a iminência da perda do seu familiar, convocando-as a sentir uma dor única e solitária, geradora de tristeza, mas também de aprendizado e possível crescimento.

Os sentimentos de gratidão e proteção foram vivenciados em meio às tantas demandas que permeiam este cuidado. Tamanho era o desejo de estarem próximas de seus familiares e, de certa forma, aproveitarem os últimos momentos, que o olhar para si e para as outras urgências inerentes à vida era, muitas vezes, renunciado. A proximidade da perda somava-se à obrigatoriedade de se rever os planos e projetos, nos quais essa pessoa estava incluída, legitimando a existência da finitude e a necessidade do encontro de um novo espaço internalizado para manter vivas as lembranças.

Esta pesquisa buscou compreender os atravessamentos da experiência dos filhos cuidadores de pais com doença oncológica avançada. Percebeu-se que as familiares mantinham o desejo de cuidar diante do vínculo de proximidade. Contudo, apresentaram sofrimento físico, psicológico, social e demandas espirituais, tanto em função das responsabilidades práticas, quanto em virtude da iminência da perda.

Durante o desenvolvimento do estudo, perceberam-se alguns vieses da pesquisa. Primeiramente, o fato de que algumas filhas já estavam em acompanhamento psicológico com uma das pesquisadoras anteriormente à coleta de dados pode ter influenciado as entrevistas em função do vínculo já estabelecido entre ambas. Salienta-se também que o estudo não estipulou um tempo mínimo de acompanhamento dos pacientes pela equipe de cuidados paliativos, o que pode ter gerado uma diferença no processo de amadurecimento ou elaboração das participantes com a perspectiva de finitude de seus pais.

Considerando a escassez de bibliografia sobre o assunto e a verificação do impacto desta experiência para a qualidade de vida e o processo de elaboração do luto do filho cuidador, pensa-se que mais estudos sejam realizados sobre a temática, a fim de ampliar o papel dos profissionais de saúde, principalmente do psicólogo, no cuidado tanto do paciente quanto dos seus familiares, subsidiando intervenções que auxiliem os filhos no enfrentamento deste processo. Ainda, sugere-se que sejam realizadas pesquisas sobre a vivência de filhos cuidadores em outros contextos para além da internação hospitalar, como por exemplo, no estabelecimento das práticas em cuidados paliativos a domicílio, o que se sabe ser de difícil implementação em nosso país.

Contribuição dos autores

Jade Rosa: Aquisição de financiamento, investigação, administração do projeto, recursos, redação do rascunho original.

Mariana Moreira: Análise formal, metodologia, supervisão, redação - revisão e edição

Sílvia Haas: Análise Formal, supervisão, redação - revisão e edição

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Recebido: 21 de Abril de 2020; Aceito: 22 de Novembro de 2022

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