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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versão impressa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.6 n.2 Porto maio 2006

 

Nota Editorial

Diário de bordo - Ventos alísios

Jorge Bento

 

VIAGEM

Aparelhei o barco da ilusão

E forcei a fé do marinheiro

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

(Só nos é concedida

Esta vida que temos;

E é nela que é preciso

Procurar o velho paraíso

Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida, a revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

 

1. Preocupam-me os excessos do futebol. Tal como as claques que se assemelham a hordas de selvagens, sem cultura e sem alma, por dentro vazios de princípios e valores, mas cheios de instintos bárbaros e primários. Assusta-me que haja gente que esgota a vida a brigar por uma equipa. E que se entrega ao futebol a ponto de se esquecer da sua vida, de outra vida, com outro sentido e elevação.

Sim, essa forma de extremismo e fanatismo religioso dá que pensar e temer. Mas assusta-me muito mais a comissão liquidatária da alma lusitana - escarolada, limpa, laboriosa, íntegra, proba, séria e honrada – que se instalou entre nós. As marcas nobres dessa alma, os traços essenciais e ancestrais que a perfazem e exaltam estão a ser abatidos e entregues ao desbarato pelo despudor neoliberal.

O pensamento filosófico, na antiguidade como no presente, viu e vê na ilusão o alimento preferido da felicidade. Tudo quanto seja fonte multiplicadora de encantamento e ilusão leva a modalidades superiores de configuração da vida e portanto abeira da felicidade ou, no mínimo, oferece momentos e oportunidades de concretização desta utopia. Não podemos, pois, deixar de ver o desporto em geral e o futebol em particular como um campo de sementeira fértil de ilusões e, por via destas, de vivência de situações únicas e renováveis de felicidade. Ora é isto mesmo que o Mundial de Futebol constitui para tantas pessoas em todos os recantos do globo, para mim e milhões de portugueses. O apego ao futebol traduz descrença no resto. É a única tábua de salvação à vista de um povo à deriva. Por isso também tenho medo dos tempos seguintes à conclusão do certame. O vazio promete alastrar. Aonde iremos buscar a ilusão que sustenta a vida?

2. A hora é estranha. É como se a mortalidade flutuasse no ar e vivêssemos um intervalo, num lugar que não mais nos reconhece. Como se a sabedoria, a decência e lucidez voassem pela janela, à medida que a crise se adensa. Todavia no fundo do nosso íntimo vive a convicção de que o homem volta sempre às suas próprias necessidades de beleza, verdade e discernimento. Mais, acredito que na escrita, no ensino e aprendizagem da vida só perdura aquilo que obedece a três critérios: esplendor ético e estético, força intelectual, sapiência.

Mas é uma crença desmentida pela conjuntura. Este é o tempo de Dom Quixote: de beirar a transcendência e simultaneamente de sucumbir à desilusão, como se apenas houvéssemos de alcançar a apoteose no silêncio tranquilo e amargo do aniquilamento e resignação. Aceitemos, pois, os limites das possibilidades, sem esquecer as palavras de Hilel: “Onde não houver homens, esforçai-vos para agir como um homem”. E tendo também em conta a advertência de Tarphon: “Não sois obrigados a concluir a obra, mas tampouco estais livres para desistir dela”.1

Mantenhamos vivas as convicções ganhas num trajecto esforçado, suado e limpo. E continuemos a iluminar as noites e dias da dúvida opressora com este clarão de Mário Quintana: “A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa”. Para os guardar e cumprir.

Sei que eles caíram em desuso. Porém é mister que sigamos o rumo traçado, para não cairmos na farsa e mentira. Os enganadores têm o castigo de ser o que são; não são nada, falta-lhes identidade. Eis porque devemos passar de cara erguida, leves e orgulhosos de nós, por entre a multidão desfigurada.

Sim, devemos preferir a dificuldade dorida do dever porfiado à vantagem indevida do dever contornado. Até porque o homem que a dor não educou não passa de uma criança. A dor torna-nos mais fortes e por certo mais sábios, cépticos e prudentes, embora também pessimistas e solitários.

3. Quando olho a conjuntura e as circunstâncias, vem-me à memória o poeta russo Maiakowski. O poeta acreditava piamente na revolução e que dela sairia um mundo melhor, mais justo, fraterno e solidário. Pouco a pouco foi percebendo que os líderes do seu país tinham perdido a alma. O desrespeito e os atropelos brutais à dignidade física e moral das criaturas eram a regra vigente. Desiludido e sem esperança, em 1930 rendeu-se e saiu de cena, pondo um fim trágico à sua vida.

Também hoje vivemos tempos dúbios e tristes. Muitos de nós já sentem angústias e desalentos próximos aos do poeta. Perdemos a confiança em gente que se afirmava ciosa do bem comum, apostada em combater iniquidades e diminuir as desigualdades sociais. Tudo o que traduz solidariedade, atenção e respeito do outro, do semelhante, é destruído sem apelo nem agravo. O doente, o necessitado e o desvalido são erigidos em privilegiados e como tal vilipendiados e execrados na praça pública. Por isso vai alastrando uma onda de suspeição, descrédito e desesperança, em relação aos políticos e ao seu jeito tão baixo de fazer política. Contudo ela não gera revolta; pelo contrário, redunda em passividade e desistência, o que é deveras preocupante.

Só que eu sou professor, pertenço à profissão da palavra e da obrigação de a dizer alto. Não procederei como Maiakowski, nem tampouco fico calado, à espera que me tirem a voz da garganta e já não possa falar.

Não deixemos que o silêncio dos melhores seja cúmplice do alarido e desvergonha dos piores! Não percamos a alma, nem permitamos que nos roubem o direito de sonhar, a vontade de viver melhor!

Sim, é tudo isto que causa dor em mim e em muitos portugueses. Não foi tão presente enquanto a nossa Selecção esteve no Mundial. Depois veio o pesadelo a toldar a nossa visão sobre um horizonte onde já não se descortina a ilusão. Da terra emerge uma cruz com um epitáfio: “Aqui jaz a alma portuguesa. Vendida e perdida por…” Recuso-me a continuar a ler, porque é longa a lista dos que a vendem e perdem.

4. Somos poucos e sem peso económico, mediático e comercial, mas fomos longe no Mundial de Futebol. Na Europa não há admiração pelos feitos desmedidos da nossa história, mas na Alemanha sentiu-se o vento lusitano. Esse sopro universal que insufla a inquietação de Portugal, tão bem dito por Miguel Torga, que é o de não ter medo senão da pequenez, “medo de ficar aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura”.2

O papel que nos tocou desempenhar na história da Humanidade ri-se da soberba europeia. A via-sacra da nossa aventura ingente deixou-nos na pele uma nova tatuagem e o sudário de uma condição desgarrada; transformou-nos em arlequins de roupa multicolorida. Somos híbridos, mestiços, polimorfos, ubíquos, divididos e perdidos na lonjura e na distância. Uma colcha de retalhos e estilhaços, a revelar a unidade da espécie humana. Antes tínhamos só as marcas do agro originário; hoje temos traços de outras culturas, somos também africanos, asiáticos, angolanos, brasileiros, cabo-verdeanos, goeses, guineenses, macaenses, moçambicanos, timorenses etc. Temos a pátria aumentada e gememos por todas as suas parcelas no desespero duma opção impossível. Somos duplos? É claro que não somos duplos, somos isso sim um ser por inteiro, mais humano, mais solidário, mais comunitário. Somos sim um sujeito mais universal, um cidadão global e planetário. Como um Cristo de amplos braços. A isso chama-se ser português.

No decurso da nossa peregrinação e errância houve desencontros com os povos que connosco se cruzaram. Mas também houve encontros, aproximações, paixões, amores e sexo insubmissos a pudores da epiderme e a arrogâncias biológicas, redundando em casamentos que misturaram o sangue e geraram laços e afectos. Por isso somos Sísifos com as pernas escanchadas sobre o oceano, apostados em secá-lo e unir as suas margens.

Estava em Cabo Verde quando Portugal jogou com Angola. Alegrei-me com a vitória, mas não entrei em excesso de festa e euforia. Talvez os angolanos precisassem mais do que nós de ganhar para porem uma pincelada de alegria em cima da espessa camada de agrura e incerteza que cobre o seu dia-a-dia. Para Angola vai, pois, uma saudação de estima e apreço pelo feito realizado, tal como a minha profunda sintonia com o entusiasmo que varreu o povo angolano.

Em Cabo Verde senti a identificação com Portugal. Ela mantém-se viva, apesar das vicissitudes da política e do poderoso cortejo de interesses económicos que tudo fazem para destruir laços antigos e, em seu lugar, colocar outros mais superficiais e surdos à voz dos afectos. A nossa Selecção também é a de muitos cabo-verdeanos, mas o Brasil também conquista cada vez mais corações naquelas paragens. Este facto dá-me satisfação, por ser prova insofismável de que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa tem raízes fundas no sentir dos povos que a perfazem. Ela é uma realidade bem mais sólida e visível nas atitudes das pessoas do que no cenário político.

Igualmente de Goa, do Brasil, Timor e outras bandas recebi testemunhos da intensa comunhão lusófona e do apoio activo às selecções do nosso idioma. Foram deveras comoventes os telefonemas que chegaram de Goa, de Manaus, de Porto Alegre, de São Luís do Maranhão, de São Paulo e do Rio de Janeiro, a transmitir a corrente de solidariedade, quer no início, quer após os jogos. Nos locais mais recônditos do globo havia bandeiras do Brasil e de Portugal a ondular ao vento do amor, da veneração e admiração. E erguia-se no ar a chama resplandecente da alma lusófona, grávida e acrescida de sonho e futuridade.

O nosso lugar certo e natural é portanto na imensidão lusófona. É nela que podemos encontrar arrimo e lamber as feridas provocadas pelas mordeduras dos canzarrões que defecam no Mundo. Por isso mesmo é que me dói ver responsáveis políticos, inclusive na área desportiva, exibirem um ar de riso desdenhoso quando se fala na lusofonia e na sua comunidade. A cara dessa gente não engana; a sua alma tem os ferros das ganadarias dos mares do norte. Viva o Portugal multicolorido! Viva a pátria lusófona!

5. Como disse atrás, estive recentemente no meio do Oceano Atlântico, em Cabo Verde. Ao contemplar aquelas ilhas e o esforço titânico das suas gentes para dobrarem o destino e a rudeza das circunstâncias, dei-me conta de que não podemos ser todos iguais; a dimensão telúrica do local do nascimento condiciona o ser e a obra das criaturas. A grandeza da alma e da autenticidade e ternura humanas que se derramam na sua face. Realmente a gente de Cabo Verde é incomparável no tamanho e limpidez da alma e do coração, dos sonhos, do afecto e generosidade, da alegria de dar, de ser fraterna e de se sentir lusófona. Aberta ao mistério, à fé e ao milagre da vida, faz brotar das cinzas e fragas vulcânicas as plantas, flores e frutos que incendeiam de riso, harmonia e festa o cântico sofrido e magoado da existência. Na falta de água, rega a seca e o chão com lágrimas de saudade e emoção.

Isto leva-me a considerar irrelevantes as razões e o teor deste texto. Talvez o devesse deitar fora e escrever de novo. Eis uma sugestão para algo mais lato e abrangente: para recomeçar o texto da vida e reinventar as margens que o seu curso deve seguir. Afinal a vida é uma viagem; é nesta que a aprendizagem acontece e a pessoa amadurece. O saber vem-nos do sabor que a viagem oferece. Estamos e somos em trânsito, num mar salgado e fundo de vivo encantamento e ácida desilusão.

Cabo Verde e o exemplo, a música, a fé, a persistência e a diáspora das suas gentes vão comigo até ao fim da viagem, envoltos na toalha da memória doce e da sentida gratidão. Bem hajam!

 

1 BLOOM, Harold (2004): ONDE ENCONTRAR A SABEDORIA? Editora Objetiva Ltda., Rio de Janeiro.

2 TORGA, Miguel (2002): Ensaios e Discursos. Círculo de Leitores.