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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versão impressa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.6 n.2 Porto maio 2006

 

Pedagogia da viagem. Arlequim, Mestiço, Híbrido, uma colcha de retalhos*

Adroaldo Gaya

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Porto Alegre, Brasil.

 

Parte: saí do ventre de tua mãe,

Levante: do berço esplêndido.

Segue o caminho do sol, do mar, da luz e do céu profundo.

Sai da sombra oferecida pela casa paterna

E as paisagens juvenis.

Vai ao vento e à chuva.

Lá fora, faltam todos os abrigos.

As tuas idéias iniciais não repetem senão palavras antigas.

Jovem: velho tagarela.

(Adaptado de Michel Serres)

 

A viagem dos filhos, eis o sentido pleno da palavra grega Pedagogia. Pedagogia, a viagem dos filhos, eis do que trato nesta breve intervenção.

O telemóvel soa e vibra sobre minha mesa de trabalho. Ao observar o painel luminoso, meu corpo se alegra. É de Portugal! É do Porto! Sendo assim, num lapso de tempo, revejo as probabilidades de quem está a comunicar-se da outra margem do Atlântico: 40% Jorge Bento, 30% António Marques, 20% minha filha Anelise, 8% José Oliveira, 2% alguma agradável surpresa.

Atento e na expectativa. Ouço a voz pausada, grave, sonora, quase sacerdotal. É o navegador dos sete mares. Jorge Bento. Nosso timoneiro. O maestro da sinfonia lusófona. Sinfonia que exalta em tom maior a solidariedade entre povos de cultura portuguesa que aprendemos a cantar.

JB me convida para participar deste evento - trinta anos da nossa FCDEF, hoje Faculdade de Desporto - e sugere (melhor seria, designa) a tarefa: falar sobre mobilidade estudantil.

Não dou qualquer chance ao superego. As reações fisiológicas do córtex não dão espaço à intervenção do neo-córtex. Neste momento, sou como um animal em perigo. Luta ou foge? Sou emoção e sentimento.

Lembro do poeta que canta com incrível lucidez:

Seja feliz enquanto a razão estiver distraída.

(Toquinho)

O convite me faz muito feliz. Não vou fugir. Vou aceitar tamanha responsabilidade enquanto a razão estiver distraída.

Aceitei o desafio. Aqui estou e creio ser desnecessário expressar tanta honra, tanto orgulho e a vaidade que faz meu corpo levitar neste momento ímpar. Muito obrigado pelo convite. Muito obrigado por esta honraria. Desejo muitos anos de vida e glória para nossa Faculdade de Desporto.

Mas passado o instante da emoção, após aceitar o honroso convite, seguiu a ansiedade da criação. A razão assume o comando das ações, evidentemente sem embaçar o brilho das emoções. E fico a imaginar: O que dizer sobre mobilidade estudantil? Relacionar os estudantes que do Brasil vieram a Portugal e que de Portugal foram ao Brasil? Ora! Isto os serviços administrativos de nossas instituições podem fazer com maior competência. Ressaltar aspectos pitorescos dessas aventuras? Isto exigiria uma etnografia que o tempo não permitiria. Contar a história sobre a concepção destes projetos? Isto é uma tarefa coletiva que deve ser realizada entre todos aqueles que, em algum momento, construíram estes programas.

Mas algo me incomodava. O que seria? Bem! Logo descobri. Era a expressão mobilidade estudantil. Ela soava em meus ouvidos como uma expressão fria, burocrática, sem brilho, sem emoção. Expressão muito longe de representar a “Caixa de Pandora” onde estão guardadas alegrias, tristezas, medos, desafios, curiosidades, aprendizagens, amizades fraternas, abraços, lágrimas... Mobilidade estudantil... não! É muito burocrático e sem brilho. Vamos transformá-la numa pedagogia. Sim, num discurso pedagógico. A pedagogia dos viajantes? Quem sabe a pedagogia de encontros e despedidas? Ou, citando Rui Veloso, a pedagogia dos cavaleiros andantes?

Volto à pedagogia no sentido atribuído pelas palavras do cientista, filósofo e poeta Michel Serres:

Nenhuma aprendizagem evita a viagem. Sob a orientação de um guia, a educação empurra para o exterior

Volto ao início:

Parte: sai do ventre de tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa paterna e as paisagens juvenis. Ao vento e à chuva: lá fora, faltam todos os abrigos. As tuas idéias iniciais não repetem senão palavras antigas. Jovem tagarela. A viagem dos filhos eis o sentido despido da palavra grega pedagogia.

(Michel Serres)

Viagem, pedagogia, pedagogia de encontros e despedidas: eis o mais profundo significado que neste discurso dou a expressão burocrática mobilidade estudantil.

Pedagogia na poesia de Vitorino:

Perguntei ao vento

Onde foi encontrar

Mago, sopro encanto

Nau da vela em cruz

Foi nas ondas do mar

Do mundo inteiro

Terras da perdição

Terras da perdição. Pedagogia de encontros e despedidas. Jovens que atravessam oceanos. São gaúchos, brasileiros, gremistas, que cantam e dançam o samba. Hoje jovens da cultura lusófona. Também, tripeiros, portugueses, portistas e que cantam o fado.

Tripeiros de Trás-os Montes, das margens do D’Ouro. Portugueses, enfim, que cantam nas tunas universitárias. Hoje, também, gaúchos, paulistas, manauaras, nordestinos que dançam forró e cantam pagodes.

São híbridos. São mestiços. Arlequins com seus mantos furta-cores. Meninos e meninas que atravessam o oceano, se tornam mestiços. Arlequins com retalhos multicoloridos. Uma colcha de retalhos.

Já falam em português do Brasil com sotaque lusitano. Falam português de Portugal com gírias e “ss” do Brasil. Colcha de retalhos. Pele tatuada pela experiência de uma nova cultura.

Não sou mais o mesmo brasileiro que um dia chegou neste país, nesta cidade, nesta Faculdade. Tampouco minha filha é a mesma brasileira que, em sua adolescência, estudou em Espinho e, na sua juventude, mudou-se para Portugal Não somos da mesma forma portugueses. Quem somos, minha filha? Somos mestiços, brasileiros que fomos tatuados por hábitos e costumes desta terra. Somos mestiços, arlequins, híbridos. Uma colcha de retalhos. Como alguns dizem por estas bandas, para o bem ou para o mal, somos “brasucas”.

Mas quem viaja, quem atravessa o oceano, leva consigo suas raízes. Jamais abandonaremos nossa cultura de origem. Ela está tatuada, indelével em nossa pele. Somos e sempre seremos brasileiros em Portugal ou portugueses no Brasil. Mas:

Depois de ter deixado a margem, permanece-se algum tempo muito mais perto de um do que do outro lado, mesmo de frente, pelo menos o suficiente para que o corpo se entregue a esse cálculo e diga silenciosamente que pode sempre regressar.

(Michel Serres)

Mas, feita a travessia, nos tornamos estranhos na outra margem. Costumes, hábitos diversos. Um outro mundo. E então, paulatinamente, se formos suficientemente inteligentes, aprendemos e apreendemos traços da nova cultura. Vamos tecendo sobre nossa pele uma nova tatuagem. Vamos nos transformando num arlequim de roupa multicolorida. Um ser híbrido. Uma colcha de retalhos. Enfim, um ser culto. Antes neto de uma índia Kaigang com um português, nascido em Esteio, criado em Porto Alegre, gaúcho, gremista, brasileiro; hoje também tripeiro, portista, português. Somos duplos? É claro que não somos duplos. Somos, isso sim, um ser por inteiro, mais humano, mais solidário, mais comunitário. Sou, sim, um gaúcho mais português, um sujeito mais universal, um ser mais humano.

Senhores e senhoras: Pedagogia. A viagem dos filhos, legítima aprendizagem.

Partir. Sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se em vários, enfrentar o exterior, bifurcar em qualquer direção. Não existe aprendizagem sem exposição, muitas vezes perigosa. Não existe aprendizagem sem errância.

(Michel Serres)

Lua, espada nua

Banha no céu imensa e amarela

Tão redonda a lua

Como flutua

Vem navegando o azul do firmamento

E num silêncio lento

Um trovador cheio de estrelas

(Tom Jobim)

Sim, navegando num silêncio lento. Um trovador cheio de estrelas. Um estudante cheio de sonhos e expectativas. Em sua bagagem muito é o que contar. Seu conhecimento científico, sua história, sua vida, sua cultura. Mas, no retorno, sua bagagem é muito mais pesada. Traz consigo suas aprendizagens da nova terra. Novos conhecimentos científicos, novas histórias, uma vida que, submetida ao desafio de uma nova cultura, adapta-se. É uma nova vida. Bifurcou. Aquele que foi não é o mesmo que volta. É um mestiço, arlequim, um híbrido, uma colcha de retalhos.

Assim como os estudantes portugueses colam em suas capas negras os escudos que representam locais, instituições ou algo que lhes é significativo, os viajantes tatuam em sua pele as experiências e histórias vividas nos diversos destinos. Enfim, somos arlequins, mestiços, híbridos. Viajantes. Uma colcha de retalhos. Somos, na partida, como cera, madeira, bronze, mármore bruto, onde se moldam as mais sofisticadas obras de arte. Carregamos, em nosso ser, um infindável caderno de folhas em branco sempre prontas a receber novos contos, poesias, histórias reais ou de ficção. Somos uma tela onde pintamos imagens e recordações. Somos uma pauta onde a canção da existência faz eterno o fado de nossas vidas

Pedagogia de encontros e despedidas.

Meu caro Jorge Bento

Mobilidade estudantil é uma expressão muito pobre para representar todo o significado da verdadeira pedagogia que nossas instituições subscrevem neste legado de amizade, solidariedade, companheirismo. Nesta aprendizagem sobre os valores culturais mais significativos de nossa existência. Repito. Somos arlequins, mestiços, híbridos. Uma colcha de retalhos. Pois, em cada regresso ao Porto cantamos:

Quem vem e atravessa o rio

Junto à Serra do Pilar

Vê um velho casario

Que se estende até ao mar

(Rui Veloso)

E quando retornamos, ainda no avião, ao avistar o Cristo Redentor, cantamos com Tom Jobim:

Minha alma canta

Vejo o Rio de Janeiro

Estou morrendo de saudades.

Mobilidade estudantil uma verdadeira pedagogia.

Uma pedagogia de encontros e despedidas.

Meu caro Jorge Bento

Peço-lhe desculpas se minha fala, de algum modo, frustrou suas expectativas. E, enfim, aos estudantes que já foram e voltaram, aos que ainda irão e aqui chegarão, dedico os versos de Milton Nascimento:

Tem gente que chega pra ficar

Tem gente que vai pra nunca mais

Tem gente que vem e quer voltar

Tem gente que vai e quer ficar

Tem gente que veio só olhar

Tem gente a sorrir e a chorar

E assim chegar e partir.

Mobilidade estudantil. A pedagogia dos encontros e despedidas.

Enfim, com versos de Pessoa e na música de Caetano Veloso, cantemos nossa pedagogia.

Navegar é preciso

Viver não é preciso

Navegar é preciso

Viver não preciso.

 

* Intervenção nas cerimónias comemorativas dos 30 anos da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, 6 e 7 de Março de 2006.