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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versão impressa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.9 n.2-3 Porto  2009

 

Ensaio sobre a cegueira: danos colaterais, mentiras e perversões

 

Jorge Bento

 

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

 (Livro dos Conselhos, in: Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago)

 

A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão.

Miguel de Cervantes, 1547-1616

 

1. Nos últimos anos, nomeadamente durante a invasão do Iraque pelos EUA, entrou no nosso vocabulário uma nova e esquisita terminologia, a propósito de algumas baixas nos palcos da guerra. Trata-se dos putativos danos colaterais, ocasionados, na maioria dos casos, por fogo amigo, querendo com isso dizer que são secundários e provocados sem intencionalidade, mas antes por acaso, por fatalidade ou por erro, como se fossem uma consequência lamentável, porém não imaginada e premeditada. Logo são desculpáveis, devendo portanto ser desvalorizados, ignorados e subestimados. No entanto sobejam razões para suspeitar que o recurso a tal terminologia e a invocação do argumento nela contido têm por objectivo negar ou encobrir a cegueira ética, condicionada ou deliberada. Por isso temos o direito de desconfiar da ‘bondade’ da expressão; e temos a obrigação de pôr em causa aquilo que ela esconde, a começar pela sua refinada desfaçatez e hipocrisia. [1]

Acresce que os teatros bélicos da actualidade não são todos feitos de aviões, de bombas e tanques à vista. As formas da guerra são diversas, umas manifestas e outras camufladas, sub-reptícias e bem mais funestas. O campo de batalha está hoje em toda a parte, impulsionado pela ‘lógica’ e pelos interesses de um mercado e negócio que não são nada ingénuos ou inocentes; sustentam-se precisamente no avolumar crescente de vítimas e danos colaterais, não negligenciáveis, mas, ao invés, contabilizáveis por serem o índice evidente do lucro e sucesso obtidos.

A linguagem política desta era justifica a acusação de George Orwell; afigura-se destinada a fazer com que as mentiras soem a verdades, os crimes e atropelos à lei e à moral pareçam actos respeitáveis, louváveis e confináveis no acervo dos direitos, garantias e liberdades individuais, enaltecedores e afirmativos da livre iniciativa. Deste modo a ‘política’ (ainda merecerá este nome?) tornou-se uma tragicomédia sem fim e sentido entre montes de meias-mentiras (que jamais chegarão a ser meias-verdades!), de omissões propositadas e maldosas e de intervenções conflituantes e exacerbadas, imprópria para gerar consenso na denúncia das aleivosias intencionalmente maquinadas e perpetradas pelo modelo social vigente. Num contexto de relativismo ético e legal, os principais políticos e interventores mediáticos surgem apostados em cantar as virtudes da versão prevalecente do mercado, em branquear as suas perversões e esconder que os danos colaterais são calculados, programados e produzidos de modo absolutamente objectivo, frio e racional.

Sejamos ainda mais claros e assertivos, sem rodeios na linguagem e sem medo das palavras e posições: a mentira e a propaganda políticas e mediáticas visam a conformação total e abrangente de todas as esferas da vida humana a modelos de organização e funcionamento favoráveis e indutores da produção, em larga escala, de vítimas ou danos colaterais. Estes são a expressão real e fidedigna das vantagens e dos resultados almejados e conseguidos com actos intencionais. Mais ainda, a produção de danos colaterais, abandonados e acumulados ao longo da trilha do progresso triunfante do mercado neoliberal e financeiro, transformou-se numa espécie de filosofia-padrão que inspira, irriga, ordena e baliza o discurso apologético das reformas em todos os campos da actividade. São o alvo a atingir, o fim procurado, pouco ou muito encoberto ou manifesto, o fio condutor e norteador das estratégias e medidas. Onde eles não aparecerem em número significativo, aí estamos perante um caso de falhanço, de desvio e quebra da norma reguladora do funcionamento da sociedade nos nossos dias.

Os danos colaterais vêem-se em todo o lado e em todos os sectores, já que tudo se encontra sujeito às receitas impostas pela trama do paradigma produtivista neoliberal: são as pequenas e médias empresas que não resistem ao garrote dos potentados do dinheiro; são as editoras e livrarias, as casas do mais variado comércio obrigadas a fechar portas por não lograrem competir com as grandes superfícies; são as unidades de prestação de serviços, bem como as universidades e faculdades de menor dimensão, sem tamanho para os arautos e reféns de uma gestão de bitola curta e de vista míope; são os clubes desportivos locais, regionais e nacionais, incapazes de cumprir as exigências monetárias ditadas pelas circunstâncias; são os ludibriados pelas fraudes dos banqueiros que contam com a cumplicidade dos políticos e a protecção de um sistema judicial feito por encomenda; são os cidadãos com salários em atraso ou reduzidos e com trabalho aumentado, os desempregados, os diplomados sem expectativa de trabalho decente, os emigrantes ilegais, os frágeis, os pobres, os sem-tecto, mendigos e pedintes, os adolescentes avessos à escola, os gangs de jovens, os ladrões de rua e viciados em droga; são, enfim, os que não entram no topo da pirâmide cada vez mais estreito, ocupado só pelos ricos e poderosos, definidores do que conta e vale.

Todos são marginais e pertencem ao mundo subterrâneo, à escuridão nebulosa e sem forma que envolve os que caem fora da hierarquia e ordem vigentes. Todos são danos colaterais calculados e intencionais, uma sub-classe sem papel social, falhada e inútil, que nem sequer atinge o estatuto de sócio menor desta sociedade estribada na aldrabice e insensibilidade. Não têm valor de mercado; e por isso não recaem sobre eles os olhares do apreço e consideração, da sensibilidade desperta e inquieta. Não contam; são coisas ou ainda menos. Será deturpação, exagero ou ficção? Antes fosse!

2. Se olharmos em redor e prestarmos a devida atenção, veremos que a nossa era está enredada numa teia de manipulações e mistificações, demências e mentiras. Este ambiente crepuscular e de limbo, despido de inteireza, nobreza e hombridade, em que habitam os princípios e valores, [2] é propício a que aprendamos, como diz, Arnaldo Jabor, de cabeça para baixo, a partir do que é negativo e execrável, porque “os canalhas são mais didácticos que os honestos. O canalha ensina mais (…) As tramóias e as patranhas de hoje são deslavadas; não há mais respeito pela mentira. Está em andamento uma ‘revolução’ (…) na cara da população com o fito de nos acostumar ao horror”. Nunca se aprendeu tanto de cabeça para baixo! Aprendemos que a corrupção, a farsa e demais iniquidades não são “um ‘desvio’ da norma, um pecado ou crime; são a norma mesmo, entranhada nos códigos, nas línguas, nas almas (…) Aprendemos a mecânica da sordidez; a técnica de roubar o Estado”, a maneira de fazer “esgotos à flor da pele”, “orgasmos” e o emocionante “sarapatel entre o público e o privado”. “Querem nos acostumar a isso, mas poder ser (oh Deus!) que isto seja bom: perdermos o auto-engano, a fé. Estamos descobrindo que temos de partir da insânia e não de um sonho de razão, de um desejo de harmonia que nunca chega”. [3]

“Até que enfim – acrescenta Arnaldo Jabor – nossa crise endémica está sujamente clara” e nos mostra uma “prodigiosa fartura de novidades imundas”, oferecendo temas deliciosos para teses de “doutorado sobre nós mesmos”!

Obviamente no desporto - notoriamente no futebol - também se mente. Mas ele é, sobretudo, expressão do quanto nos mentem os protagonistas deste tempo e do quanto assenta na obscenidade e no mais descarado fingimento a força que os sustenta.

Sim, os sintomas da alienação e loucura reinantes nesta era foram nítidos nas aquisições do Real Madrid, na enchente do seu estádio para a apresentação de Cristiano Ronaldo, tal como na exploração mediática do evento e nas absurdas cláusulas de outras transferências. Porém são outros os principais sujeitos da cegueira e insanidade. São os que fazem com que a utopia da democracia se transforme em dura desilusão. Os que usam todos os ardis para encobrir a indecência do modo de ser e estar, de exercer o poder para impor, por via legal, decisões abjectas e reprováveis pela moral. Os que alargam o fosso da cada vez maior separação entre a lei e a ética. Os que arrotam, medram e respiram bem na palhaçada hedionda e pérfida da quadratura do círculo de interesses sujos que nos governam. Os abjectos corruptos e os seus aliados, defensores e encobridores. Os desavergonhados autores e beneficiários da promiscuidade entre a política e os negócios. A mixórdia asquerosa de mentirosos, negadores, vigaristas, defraudadores, trampistas, intrujões, chupistas, golpistas, tartufos e embusteiros. Os amorais que reclamam para si privilégios, intocabilidade e honorabilidade e espezinham a dignidade e humanidade dos outros. Os que tratam as pessoas como meras e rebaixadas coisas e lhes roubam os requisitos de uma vida própria. Os prepotentes que condenam os trabalhadores por conta de outrem, os humildes e pequenos ao esbulho dos seus direitos e ao infortúnio e desdita. Os que pairam acima do desencanto e desolação desta época putrefacta e se recusam a ver o chão juncado de danos colaterais. Os que censuram, perseguem, proíbem, reprimem ou vetam o pensamento divergente, ditam sempre mais exigências, obrigações e restrições para os outros e para si desenham um mundo de fraude, mentira, impunidade, deleite e regabofe. Os insensíveis e indiferentes ao sofrimento alheio, avessos a reconhecer nos outros a condição de seus semelhantes. Os que se situam a si na casta dos entes superiores e aos ignorados restantes na sarjeta dos dejectos inferiores.

Esta choldra, que de tudo faz negócio imundo, cria um asfixiante vazio ético e moral, obrigando-nos a procurar o oxigénio existencial em qualquer sítio, onde a nossa fome de ilusões possa ser aquietada e sobreviver. É por isso que nos voltamos para o futebol. Para nos encontrarmos com muita gente que sente como cada um de nós e se vê desmotivada para expressar indignação e revolta perante o desvario que marca o nosso destino e ignora as aflições e aspirações, dramas e agruras das pessoas de bem, honradas, sérias e laboriosas.

Vamos ao futebol, como quem procura pão para a boca. Por isso ansiamos sempre pelo começo das novas temporadas. Nós, os adeptos, investimos nele a paixão não correspondida na política e nas actividades que a deviam merecer, por serem determinantes da nossa vida. Devemos salvá-la e alimentá-la, para que não se perca e possa ser mobilizada para pleitos nobres e transcendentes. Para tanto o futebol não devia cometer traição; mas, infeliz e amargamente, está a trair nesta hora, pela mão dos seus agentes e branqueadores mediáticos.

3. A propósito dos atropelos que abalroam e ferem o sentido de humanidade e pervertem a razão na hora que passa, podemos certamente apontar o contexto sócio-político mais lato para justificar a avaliação negativa e o nada animoso estado de espírito; mas é bom observar o terreno que pisamos na Universidade e no dia-a-dia das respectivas organizações, porque reproduz os mesmos estigmas e sintomas.

Garcia Arocha, Reitora da Universidade Central da Venezuela, disse recentemente numa entrevista ao jornal El Universal, a propósito de uma lei voltada para o controlo do sector universitário através do termo de eleições nas Faculdades, que “as Universidades jamais vão estar ao serviço de nenhum governo”. [4] A expressão “jamais vão estar” vale como renovação do imperativo que obriga a Universidade: não estar ao serviço de nenhum governo, de nenhum sistema ideológico, de nenhum poder, seja ele sagrado ou profano.

Assim devia ser. Mas não está sendo assim e, ao fazer esta acusação, não tenho o pensamento fixo na Venezuela ou num tempo passado. Estou a pensar no intento de domesticação das Universidades europeias que não tem parado de crescer desde que Margaret Tatcher meteu mãos à obra e apadrinhou o processo. Mais, tenho sobretudo presente a política oficial em vigor e o rosário de medidas, apregoadas como ‘reformas’ (p. ex. o RJIES e a sua inspiração na doutrina do centralismo e do neoliberalismo), que tem atingido a universidade portuguesa. E, ainda mais concretamente, não sou cego à ‘orientação’ imprimida, nos anos recentes, a instituições universitárias, alinhando-as de modo incondicional pelo reformismo governamental (através da aceitação acrítica do RJIES, do método de eleição do Conselho Geral e da composição deste, da subtracção de representatividade nos órgãos de topo às unidades orgânicas mais pequenas, da nomeação do Reitor e dos Directores das Faculdades, do regime fundacional e do regulamento dos servidores não docentes); e colocando-as, de maneira mais ou menos manifesta ou encoberta, nos trilhos neoliberais, obsoletos, imbecis e imorais, como se na heterodoxia da caduca cantilena de tal doutrina houvesse mágicas capazes de sublimar os estragos provocados pelas forças e interesses do mercado. No fundo há como que um envernizamento das suas teses visando ressuscitar uma ideologia responsável pela destruição das instituições de solidariedade e dos laços sociais, pelo descalabro moral e económico e pela perda de sensibilidade e responsabilidade em relação ao outro.

Sim, também se mente, pratica perversão e comete traição na Universidade. E muito! Quando dela se assenhoram admiradores, filiados ou representantes de corporações e oligarquias alinhadas pelo pensamento neoliberal dominante. Quando esses agentes, animados por uma mentalidade e vocação primárias, obstinadas, fanáticas e jihadistas, porfiam em implementar, obsessivamente e a todo o custo, aquele pensamento na sua versão mais crua e dura. Ou seja, quando a missão essencial da Universidade é assim diminuída e rebaixada à função reprodutora do senso comum actualmente vigente – um estranho, mas real e gravoso paradoxo! Quando, por essa via, a Universidade é festiva e enfaticamente conformada à lógica empresarial e à panóplia de negócios próprios de um supermercado. Quando tem que vender cursos e cursinhos por grosso e atacado, a toda a hora criados, modificados e adaptados às ordens do mercado, como quem vende e muda de camisas ou sapatos. Quando isto se inscreve no programa e centro das suas obrigações cimeiras! Quando, através dos mecanismos e medidas da subvalorização e depreciação avaliativas, abdica de contribuir para a vida criativa, espiritual, intelectual, ética e moral dos cidadãos e da sociedade e para a reflexão acerca das vias em que esta transita. Quando isto acontece e está a acontecer cada vez mais, o ambiente torna-se deprimente, inquietante e irrespirável. E é por conseguinte difícil, para não dizer impossível, desmentir esta tese de José Saramago: “A mentalidade antiga formou-se numa grande superfície que se chamava catedral; agora forma-se noutra grande superfície que se chama centro comercial. O centro comercial não é apenas a nova igreja, a nova catedral, é também a nova universidade”.

Portanto igualmente nas várias frentes e vertentes da Universidade se vão amontoando os danos colaterais da estagnação, regressão e arcaísmo do pensamento e da razão. Sobre ela abateu-se uma brutal e encarniçada cruzada destruidora da sua autonomia e liberdade, ardilosamente disfarçada sob um espesso manto de opacidade, de oportunismo, cinzentismo e golpismo que paulatinamente lhe toldam o espírito e olhar, mudam e substituem o nome, tolhem os passos, desfazem a alma, desfiguram o rosto, calam o clamor da indignação e do protesto, congelam o ânimo e a vontade de acção e intimam à passividade e resignação.

Tudo o que releva do humano está a perder nela o lugar central, o seu habitat natural; está a ser atirado para o caixote das coisas inúteis e prejudiciais, carecidas de remoção, por serem lixo contaminador, pernicioso e perturbador do ‘novo’ regime jurídico e fundacional. Também nela as causas, os ideais, princípios e valores de teor humanista são hipotecados e calcados com a bota escura da prepotência e pesporrência neoliberal. Também nela se faz ouvir, tem assento e dá conselhos e ordens a voz do dono deste tempo de mercado financeiro depravado e apodrecido, cego, mudo e surdo às dimensões mais genuínas e relevantes da dignidade humana. Também nela o vírus da nova gripe A (H1N1) alastra e sofre metamorfoses!

A desmontagem da Universidade, como instância de referência para balizar os caminhos da ascensão do humano, está em curso, tal como a extinção dos mestres eminentes na generosidade das ideias e na palavra limpa e flamejante, críticos e lúcidos, frontais e cristalinos, criadores e idealistas, projectistas e anunciadores do futuro. Rareiam e definham nela os intelectuais contra-poderes e livres-pensadores, enquanto sobem de tom os doces e pios avisos e as amigas e calorosas ‘sugestões’ e insinuações para que os inconformados e ‘renitentes’ às ‘inevitáveis’ e ‘necessárias’ mudanças sejam ‘realistas’, não se prejudiquem, não respeitem muito séria e sinceramente a consciência, dêem mostras de ‘abertura’, ‘flexibilidade’, ‘bom senso’ e ‘pragmatismo’, resignem e se adaptem, vendam e desqualifiquem, aquietem e contentem com o papel de castiçal e enfeite das mesas do poder. [5]

4. A fidelidade ao optimismo impõe a resistência. É isto que manda perguntar pelo substituto da Universidade na missão de elaborar e levantar símbolos, condições, pressupostos, advertências, proibições e restrições como setas indicativas das direcções e roteiros de bom senso e sensatez a tomar pela sociedade. Numa altura em que é fragoroso o clamor do mundo por orientação, face à iminência e gravidade do declive e naufrágio, a Universidade acomoda-se a forças que desvalorizam e querem riscar essa tarefa na ementa do novo figurino.

Obviamente a Universidade não tem a possibilidade, nem deve cultivar a pretensão de ser uma bússola e traçar um rumo para o presente e futuro da sociedade. Mas isto não significa que deva aceitar os destinos impostos pelo abjecto e sórdido sistema financeiro, [6] pelo mercado e consumo de matriz neoliberal ou que deva incensar e venerar os líderes desses campos e ajoelhar-se perante outros interesses, poderes e forças de idêntica natureza. Ela tem a obrigação de não encobrir o desconcerto e o constrangimento que tomaram conta do mundo, de não se acocorar perante os seus autores, de “dar nome aos bois” em todas as coisas, de pôr a nu e discutir todos esses caminhos e intuitos, expostos ou ocultos, e de alertar para os perigos que eles acarretam para a maioria das pessoas. Deve mover-se pela causa do bem público e não se mancomunar com ninguém estranho a esse horizonte.

Numa conjuntura em que são patentes e deveras sentidas as consequências da desindustrialização e esta lega como herança o desemprego estrutural e permanente para uma fracção crescente da população, é correcto e decente que a Universidade se remeta ao silêncio? A Universidade não tem nada a dizer, quando estamos a assistir ao falhanço clamoroso de um tipo de acumulação desenfreada e gananciosa - ainda por cima hipocritamente defendido em nome de balizas pretensamente ancoradas na ética do trabalho e noutras referências ‘morais’! - que produz ininterruptamente uma ampla sub-classe em contínua expansão e diversificação de indivíduos empurrados para as franjas de um modo de vida sem valores comuns? Não lhe compete pronunciar-se, quando isso é o produto colectivo principal da actividade e do parasitismo do ignóbil sistema económico-financeiro?! Quando parcelas enormes da população são ignoradas e destinadas à exclusão, sem nenhum tipo de estatuto de sujeitos e, para cúmulo, não têm sobre isso qualquer controle ou influência, nem tampouco voz, então a Universidade cala-se?! [7]

Numa altura em que a política foi objecto de privatização, isto é, não está mais ao serviço da comunidade, mas foi colocada às ordens de lobies e grupos poderosos, delapidadores e usurpadores da coisa pública (eis uma triste constatação decorrente da fria e objectiva examinação dos factos, aqui e em toda a parte!), quem levanta a voz da razão pela gente que engrossa a legião dos danos colaterais? Quem acenderá o lume da inquietação, descongelará a frieza e acordará para esta medonha realidade a sensibilidade adormecida da ‘sociedade’ bem sucedida, cómoda e principescamente instalada, dos mandarins e nababos, dos ricos e abastados, afogados na diversão? Quem se insurgirá em face do largo espectro, sempre em crescimento, de indivíduos incapazes e proibidos de circular nas avenidas do mercado de consumo e mantidos fora da fronteira e da norma que esta traça?

Perante o embuste, propalado de forma cavilosa, de que o presente modelo de ‘estruturação’ social oferece a cada um a possibilidade de reger a sua vida e de escolher o que há-de ser e de que o fracasso, a pobreza, a marginalização etc. são apenas o corolário de escolhas erradas, de aprendizagens, competências e habilidades não adquiridas, de responsabilidades não assumidas e de vontades não exercidas, quem apontará e desmontará o dolo e a pulhice, as petas e tretas de semelhante e despudorado sofisma?

Quem questionará a imoralidade e falácia da modernização inaugurada por Margaret Thatcher e estendida a todos os sectores pelo zelo ‘modernizador’ dos trabalhistas ingleses e dos seguidores nos outros países, incluindo o nosso, da profética e tão apregoada terceira via? Para todas as ‘reformas’ foi dada a explicação “não há alternativa”, que tudo ‘explica’ e tudo e a todos desculpa, para calar a necessidade de se explicar e a impossibilidade de se justificar. E para tentar tornar invisível a mão suja do mercado neoliberal e das tropas escuras que o animam. Lá fora e cá dentro, todas as leis e medidas ditas de ‘modernização’ e ‘reforma’ têm servido activamente o fito da “decomposição e fragmentação contínuas dos vínculos sociais e da coesão comunal…” e do triunfo da ordem do egoísmo e do “consumismo desenfreado” sobre a economia social e a sociedade moral. [8]

(Abra-se aqui um parêntesis para integrar o texto no contexto. O termo ‘reforma’ significa uma mudança ou alteração para melhor. Todavia o afã reformista tem tentado arrasar tudo quanto encontra na sua passagem e que não se encaixa no ideário neoliberal. Para tanto entregou-se à produção de uma parafernália de leis, por grosso e atacado, para dar a impressão de uma transformação em grande escala. [9] Abatem-se políticas sociais para montar campos de negócio em todos os sectores. Eis aonde chegamos: a política deixou de estar ao serviço do interesse público e passou a ser mandada pelos patrões dos negócios. Não é a economia quem mais ordena; é tão-somente o desprezível sub-mundo da especulação financeira, das negociatas e afins.

Em favor dessa gula foi necessário produzir pacotes de leis que diminuíssem a participação e abertura democráticas e acentuassem o centralismo e o controle burocráticos, em todas as áreas. O poder está cada vez mais concentrado nas oligarquias e no cume das instituições. À imensa maioria dos indivíduos é destinado o papel de figurantes num filme com enredo e final ardilosamente definidos muito acima e bem longe deles. O corporativismo, o lobismo, o populismo e o caudilhismo estão vivos e sadios; venha o diabo e escolha).

Fechado o parêntesis, regressemos à indagação. Quem falará dos indivíduos como portadores de direitos e não apenas como contribuintes e entes de deveres? Quem advogará e dará o exemplo de aplicação do estado social, extensivo a toda a comunidade, como amenizador da desventura individual? Quem clamará pela reconversão desta sociedade - cada dia mais abstracta e fictícia – numa real “comunidade sentida e vivida” que substitua a “ordem do egoísmo” geradora de “uma atmosfera de desconfiança e suspeita mútuas, pela ordem da igualdade que inspire confiança e solidariedade”? Quem despertará o interesse no benefício comum, numa “rede de instituições compartilhadas em que se pode confiar”, como um seguro abrangente e capaz de providenciar a defesa esclarecida “contra os horrores gémeos da miséria e da indignidade” e contra a brutalidade da desesperança e a ignomínia da infelicidade? [10]

Sem esse seguro, sem esse amparo e protecção, os impiedosos desafios da vida não funcionam como a oficina em que se forjam a autoconfiança, o senso de dignidade humana e a auto-estima. Sem ele, não se pode esperar das pessoas a disponibilidade para o engajamento que alimenta a democracia. Sem ele, a democracia perde a razão de ser, afunda-se e destrói-se em todo o regime político que não seja ou recuse ser um estado social.

Dito de outra maneira, é o estado social que sustenta a democracia e defende a sociedade dos ‘danos colaterais’, fatalmente ocasionados e multiplicados, sem tal controle e garantia, pelo mercado de consumo neoliberal. Zygmunt Bauman explicita assim a interdependência entre os direitos políticos e os sociais: “Sem direitos sociais para todos, um número grande e provavelmente crescente de pessoas vai achar que seus direitos políticos são inúteis ou indignos de atenção. Se os direitos políticos são necessários para estabelecer os direitos sociais, estes são indispensáveis para manter os direitos políticos em funcionamento. Os dois tipos de direito precisam um do outro para sobreviverem”. [11]

Não há outro método para “evitar a erosão da solidariedade humana e o desaparecimento dos sentimentos de responsabilidade ética”. [12] Sem estado social a ideia de comunidade queda-se ao nível da abstracção e não conhece o solo da sua concretização institucional. [13]

Ou seja, a democracia inspira-se e realiza-se na concretização do estado social, visando atender as fragilidades dos mais fracos; se renunciar a este, renuncia a si mesma, torna-se dispensável e inútil. Por isso mesmo importa ressuscitar o significado original, inicial e essencial da ‘democracia’, que fez dela a bandeira, o fervor, o grito, o entusiasmo e o lema da batalha com que os indivíduos explorados, excluídos e sofredores lutaram por direitos políticos e sociais. 

Defender a democracia e avivar-lhe as tonalidades sociais não será tarefa da Universidade? Julgo que sim e julgo também que uma universidade atenta contra isso ao privilegiar os fortes (sejam eles unidades orgânicas ou pessoas), ao restringir os direitos dos seus servidores, nomeadamente os não docentes, tratando-os como sujeitos menores e como se fossem estranhos e até nocivos ao seu bom funcionamento. No mínimo, exemplifica como se colabora na destruição da democracia e do congénito estado social.

5. Em síntese, a Universidade parece imersa num sono, não se apercebendo do perigo de estar a ser arregimentada e deformada. Já afloram os alicerces da sua desfiguração como escola técnico-profissional. A ciência é desvirtuada e despromovida a técnica e a investigação subordinada aos ditames de uma alienante e idiota competição ou luta pela sobrevivência, destinada a alimentar e sustentar servilmente a absurdidade consumista e voraz dos rankings, focalizando-se nisso a sua finalidade suprema e despindo-se da inspiração filosófica, humanista, imagética, poética, sagrada e transcendental. [14] O que conta é o imediato e mero fazer, entendido este na acepção simplória do operacional, desprovido do fundamento da palavra lógica e racional, ética e estética, da consciência inquieta e vigilante acerca dos meios e dos fins, da apetência e competência para ligar o acto e o pensamento, para intervir, criticar e questionar, para divergir e propor opções e rupturas, tomar partido, assumir posições e compromissos, criar e renovar utopias, ser livre e senhor. O conhecimento de orientação, que funda o saber, o sabor e o sentido da vida, é desconsiderado, abandonado e até combatido, ridicularizado e perseguido. Ah!, este dano não é colateral, mas central e de proporções e ilações assaz funestas, ainda não inteiramente imagináveis, a requerer, com todo o cabimento e urgência, um ensaio sobre a cegueira; antes que a poeira do abandono se adense e soterre o que teima em respirar e resistir.

A Universidade não deve pôr de lado a prudência e a lucidez de pensar a longo prazo; nem inebriar-se com o seguidismo em moda e passar apressadamente para as fileiras do modernismo, reformismo e do ‘egoísmo’ neoliberais, sem coração e sem alma; tampouco deve enterrar o legado recebido como se fosse o indesejado e pesado fardo de um passado frustrado e sem futuro. Nenhum Reitor devia cair na tentação de lidar com ela e tudo fazer para a configurar, como se estivesse a conjecturar e costurar o projecto de si mesmo no leito do encantamento pela miragem neoliberal.

Esse projecto apenas vinga num clima de apatia e desencanto face à política e de falta de disponibilidade para o compromisso e o envolvimento nos assuntos públicos e institucionais. Qualquer cúpula universitária tem o dever de se incomodar com esta realidade e apostar na sua alteração, em vez de tirar proveito dela. Se o não fizer, o seu triunfo é soturno e trágico; é o das mentes retrógradas que sempre tentaram amordaçar a Universidade, domesticá-la e conformá-la aos seus desejos insaciáveis. Ademais não se distancia das balelas e do arrazoado do pensamento único e vulgar do senso comum, difundido e generalizado pela máquina de propaganda mediática, controlada e manipulada pelos diversos poderes e correntes do mercado neoliberal. É esta a função substantiva da Universidade? Não lhe compete elaborar um discurso de contraponto? Compraz-se no desempenho do papel de cabo de ordens?

Contra isto a memória convida a lembrar que os golpes decisivos do avanço social na história humana nunca surgiram do lado da submissão e sujeição aos potentados e receitas vigentes. Questionar a ordem estabelecida, o estado das coisas, as verdades feitas e as esparrelas e soluções montadas, propaladas e impingidas – eis uma peça inalienável do património universitário. A missão da Universidade não é produzir quadros que engrossem as fileiras da demissão cívica e do ‘activismo do consumo’ aparentemente apolítico. Produzir quadros com as exigências, marcas e virtudes que o conceito de cidadão reclama – isso deve continuar a ser a sua meta cimeira.

Retomo Arnaldo Jabor: “Só nos resta a praga. Meu desejo é maldizer…” Contudo, além do aprumo cristão me proibir a queda nas maldições, “sou um otimista inveterado; fico procurando algo de bom…” em toda esta impingidela, depredação e deprimência. Mas não espero que isso surja espontaneamente, sem a acção correspondente. “A esperança (passiva e demissionária) tem de ser extirpada como um furúnculo maligno. Através deste escracho, pode ser que entendamos a beleza que poderíamos ser!” [15]

Assim creio que, um dia, o futuro terá outro semblante; a cerração deste tempo, de festa e riso para uma minoria e de angústia, decepção, desilusão e inquietude para a maioria, não durará para sempre. Para tanto requerem-se esforços e tomadas de atitudes, visando A Implosão da Mentira, título de um extenso poema de Affonso Romano de Sant’ Anna, do qual deixo aqui o Fragmento 1:

Mentiram-me. Mentiram-me ontem

e hoje mentem novamente. Mentem

de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente

Que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes. Alegremente

mentem. Mentem tão nacional/mente

que acham que mentindo história afora

vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases

falam. E desfilam de tal modo nuas

que mesmo um cego pode ver

a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil

e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade

pela mentira, nem à democracia

pela ditadura.

 

[1] BAUMAN, Zygmunt (2008): Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, p.149-190. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.

[2] “Sem valores não se pode construir nada”, Lech Walesa, in: Jornal Público, p.3, 01.09.2009.

[3] Arnaldo Jabor: Aprendemos de cabeça para baixo, Jornal do Comércio, Caderno C, p.6, Recife, 25 de Agosto de 2009.

[4] In: Diário de Pernambuco, Recife, 15 de Agosto de 2009.

[5] Repare-se nesta deprimente constatação, que é simultaneamente uma pesada acusação vinda de fora do terreno universitário: “Tempos houve em que os intelectuais eram verdadeiros contra-poderes. Hoje (…), os intelectuais servem apenas para enfeitar os poderes.” – João Pereira Coutinho, jornal Correio da Manhã, Lisboa, 25 de Julho de 2009.

[6] “A maneira como os bancos ganham dinheiro é tão simples que é repugnante”, segundo o insuspeito economista norte-americano John Galbraith (1908-2006). In: Jornal Público, P2, p.3, 2 de Setembro de 2009.

[7] Segundo o relatório Education at a Glance, referente e 2007 e da autoria da OCDE, o desemprego de longa duração afecta 51 por cento dos desempregados portugueses com diploma universitário e idades entre os 25 e 34 anos. Nos restantes países da OCDE esta taxa é de 42 por cento. (In: Jornal Público, p. 2, 8 de Setembro de 2009).

[8] BAUMAN, Zygmunt, ibidem, p.183.

[9] O ponto da situação é exactamente igual ao resumido, deste modo, por Tácito no seu tempo (cerca de 55-120): Plurimae leges, pessima republica – muitas leis, péssima república.

[10] BAUMAN, Zygmunt, ibidem, p.177-178.

[11] Ibidem, p.179.

[12] Ibidem, p.181.

[13] Atente-se no modo como o Partido Socialdemocrata sueco se distancia da política neoliberal inaugurada por Margaret Thatcher, prosseguida por John Major e consolidada pelos trabalhistas de Toni Blair e por todos os pregoeiros da dita terceira via. No programa de 2004 pode ler-se esta exaltação dos benefícios da solidariedade humana e nas respectivas instituições: “Todo mundo é frágil em algum ponto do tempo. Precisamos uns dos outros. Vivemos nossas vidas no aqui e agora, juntamente com outros, envolvidos de forma involuntária pelas mudanças que ocorrem. Seremos mais ricos se todos pudermos participar e ninguém for deixado de fora. Seremos todos mais forte se houver segurança para todo mundo e não apenas para uns poucos”.

O mesmo é dizer que a justiça e a solidariedade sociais, por um lado, e a eficácia económica e a aptidão para a modernização, por outro lado, não precisam de ser colocadas em oposição ou desacordo. Pelo contrário, como sublinha a proposta social-democrata dos suecos, a procura da coesão social “é a pré-condição necessária para a modernização por consentimento”. (Ibidem, p.179-180)

[14] “A ciência sem consciência destrói a alma”, disse Rousseau (1712-1778). (Não é isto que está a acontecer?) E Teixeira de Pascoaes (1879-1952) disse o mesmo, de outra forma: “A essência das coisas é de natureza poética, e não científica”; é isso que as espiritualiza e abeira da alma.

[15] Arnaldo Jabor, ibidem.