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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.25 Lisboa jan./jun 2013

 

O Difícil Processo de Definição de Fronteiras e Pertenças Político-identitárias no Debate de Cabinda

The difficult process of defining boundaries and political-identitarian belongings in the debate of Cabinda

 

Eugénio Costa Almeida*

*Centro de Estudos Africanos Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Lisboa, Portugal

elcalmeida@gmail.com

 

RESUMO

O presente estudo aborda as influências da colonização europeia na grande região da bacia do Zaire, em particular da região que vai da margem norte deste rio até à zona de Ponta Negra, onde, segundo os locais, começa o território efectivo de Cabinda. No estudo abordou-se os diferentes reinos iniciais e o seu espaço territorial e os tratados e acordos que serviram de base para as delimitações fronteiriças do atual Enclave de Cabinda e as reivindicações autonómicas. Analisou-se, ainda que um pouco sinteticamente, a economia de Cabinda e como ela está a ser pouco utilizada na vida social da província angolana.

Palavras-chave: Cabinda, Angola, delimitação de fronteiras, autonomia, pretensões autonómicas

 

ABSTRACT

The present study addresses the influence of European colonization in the great basin region of Zaire, in particular, the region extending from the north bank of the river to the area of Point Noire, where, according to the locals get the actual territory of Cabinda. In this study we dealt with the different kingdoms and their initial territorial space and the treaties and agreements that were the basis for the demarcation of the border today Enclave of Cabinda and the demands for autonomy. We analyzed, although somewhat briefly, Cabinda’s economy and how it is being underused in the Angolan province of social life.

Keywords: Cabinda, Angola, delimitation of borders, autonomy, autonomic claims

 

Os Acordos de Alvor, de Janeiro de 1975, que formalizaram o direito de a então colónia portuguesa de Angola ascender à independência, incluíram no espaço territorial angolano o enclave de Cabinda, tornando este numa manifesta província angolana. Há, todavia, quem defenda que o enclave de Cabinda constitui uma nação subordinada a um poder colonial de Angola e, como tal, não goza, ainda, do inalienável direito de ascender à independência. Um direito negado, segundo esses autores, que defendem a secessão do enclave, por uns iníquos acordos celebrados entre Portugal, que, como defendem, é a ainda oficial potência colonizadora, e os então movimentos de libertação de Angola: os Acordos de Alvor[1].

Evocam, como fonte primária para alicerçar a sua pretensão, a existência de um celebrado Tratado entre Portugal e dignitários de Cabinda, reconhecido por Tratado de Simulambuco, assinado entre um oficial da marinha portuguesa, o capitão-tenente Guilherme Augusto de Brito Capello, comandante da fragata Rainha de Portugal, que assumia ir a mando e autorizado pelo rei português Luís I, Sua Majestade Fidelíssima El-Rei de Portugal, quando na realidade, e como mais adiante se verá, foi a mando do Governador-geral de Angola, e dos príncipes, régulos e governantes e cavalheiros locais representando o Reino de N’Goyo (da tribo Woyo, antiga suserada do reino do Congo), em 22 de Janeiro de 1885.

O então Tratado foi rubricado porque Portugal temia perder alguns dos seus territórios africanos devido à partilha de África, ocorrida com a Conferência de Berlim de 1884/85 que, entre outros itens, exigia “a liberdade de comércio na bacia do Congo e seus afluentes”, “neutralidade dos territórios da bacia do Congo”, e “livre navegação no Congo e Níger” (Almeida, 2004, p. 47).

A assinatura em Simulambuco foi uma resposta portuguesa a todo um postulado da conferência e a toda uma avalanche de violações à soberania dos povos autóctones por parte do conde Sarvognan de Brazza[2], um italiano nacionalizado francês, sob protecção de canhoeiras francesas.

Quando foi celebrado o dito Tratado, ficou consagrado que todos os territórios dos reinos Loango, Cacongo e N’Goyo[3] – ou de Cabinda, compreendidos entre o Rio Congo (Zaire) e uma parte do sul do então Congo francês, ou seja até ao paralelo 5º Sul (ligeiramente a sul do rio Loémé, perto de Ponta Negra, República do Congo) – ficariam sob a protecção do reino lusitano, conforme determinavam os onze articulados do documento, que aqui não serão tratados exaustivamente; todavia, ressalvam-se dois artigos que são importantes sendo que, por causa deles, há a actual polémica.

No art.º 3º Portugal comprometia-se a manter a integridade dos territórios colocados sob seu protectorado.

No art.º 9º o Estado português comprometia-se a respeitar e fazer respeitar os usos e costumes do povo de Cabinda.

Como adiante veremos, isto acabou por não corresponder à verdade.

Enquadramento geral

O enclave de Cabinda foi, nos primórdios, um antigo protectorado de Portugal, estando hoje incorporado na República de Angola como província, de acordo com a actual Constituição angolana, de 5 de Fevereiro de 2010.

Apesar de ser, em termos africanos, um território de pequena dimensão, já que tem cerca de 7.000 quilómetros quadrados, é quase do tamanho da Gâmbia. Situada a 50 quilómetros a norte da foz do rio Zaire, a província está “encravada” geograficamente entre os dois Congos: o que foi colónia belga, actualmente denominado República Democrática do Congo, e o outro onde dominaram os franceses, a República do Congo. Não tem, por isso, qualquer fronteira física com a República angolana. Apesar do seu limitado espaço territorial, Cabinda tem uma costa expressiva, maior que a do Congo Democrático e similar à da República do Congo, realidade que se revelou, para o bem e para o mal, mais um empecilho nas jogadas estratégicas das potências coloniais. À época da exploração colonial, tal como ainda hoje, as potencialidades da sua floresta do Maiombe também emergiram como um motivo de avidez.

E se, até 1961, a realidade em matéria de potencialidades económicas do pequeno território estava na floresta e na pesca, por volta de 1964 (três anos após o início da guerra independentista em Angola), quando se deu início à exploração da enorme capacidade petrolífera de Cabinda, o cenário alterou-se, colocando o território na primeira linha dos interesses estratégicos regionais e mundiais.

Enquanto protectorado de Portugal, situação vigente de jure e já não tanto de facto até por altura da descolonização em 1975, Cabinda teria pouco mais de 70 mil habitantes. Tratava-se, no entanto, de um número flutuante porque – como é típico em África, onde a colonização e a repartição física do continente foi feita à régua e esquadro por via da Conferência de Berlim e dos interesses “evangelistas” de algumas potências – as populações dos dois Congos e de Cabinda não tinham fronteiras e circulavam por um espaço físico histórica e sociologicamente comum[4]. Graças à sua situação geográfica, sobretudo por estar relativamente perto do rio Zaire, Cabinda foi à época da Revolução Industrial um ponto de referência interessante para as grandes potências coloniais europeias.

No Século XIX, Portugal assumia o seu papel de “potência colonizadora efectiva” de todo este território e jogou os seus trunfos políticos contra as tentativas constantes da França e da Inglaterra que, fazendo uso de todos os meios, procuravam desalojar os portugueses ou, no mínimo, submetê-los aos seus interesses hegemónicos no continente africano.

Só que enquanto Portugal assumia o papel de potência protectora da região, a França, através de Sarvognan de Brazza, procurava assenhorar-se dos territórios compreendidos entre a margem esquerda do Zaire – na margem direita já flamejava o pavilhão erguido por Henry Stanley[5], em nome do rei Leopoldo –, a foz do rio Ogowé e a costa ocidental a norte de Landana (Silva, 1888).

Os interesses franceses foram mais fortes e em Março de 1883 uma canhoeira francesa, Sagittaire, mostrou-se nas costas de Ponta Negra e Loango e aportou a Saint Espirit de Landana, onde o comandante, em conferência com o superior da missão de Saint Espirit, decidiu ocupar os territórios costeiros entre Loango (reconhecido também como o território do Rei do Lombe, Ma-Luângu, do que derivou Maoimbe e Molembo (também reconhecido por reino de Kakongo/Cacongo). Note-se que o prelado, colocado em Landana por beneplácito dos portugueses e que ofereceram um estabelecimento comercial, era um feroz inimigo da presença e dos interesses portugueses na zona.

Por outro lado, quando os franceses decidiram ocupar a região era para fazê-lo sob a supervisão de Brazza, que acompanhava a Sagittaire numa outra canhoeira, a Auriflamme, que acabou por atrasar a chegada. Face aos desenvolvimentos locais e às investidas do prelado francês, o comandante da Sagittaire, Cordier, acabou por declarar toda a região como território francês. Para isso também contribuiu o facto de alguns reinos não serem propriamente amigáveis para com Portugal, situação essa que se reproduziu, nos idos de 1913-14, quando povos da região do antigo Reino do Congo se revoltaram por estarem a ser “recrutados” para Cabinda, porta de entrada para a região interior, como trabalhadores forçados (Wheeler & Pélissier, 2009).

Foi em 1876 que, entrando também na disputa ocupacional que já envolvia a França e a Inglaterra, o Rei Leopoldo II da Bélgica compôs a Associação Internacional do Congo, mais tarde, Estado Livre do Congo, que, à margem de Portugal, procurou o domínio da região através de métodos já à época considerados inaceitáveis. A exploração e recolha da borracha foi um dos motivos que levaram a críticas acentuadas da comunidade internacional pela extensiva exploração que o monarca belga fazia daquilo a que chamava de Estado Livre mas que, na prática, mais não era que uma coutada pessoal.

Vários morticínios levados a efeito por militares belgas foram perpetrados no Congo, ao ponto de o cônsul britânico Roger Casament ter elaborado um relatório, o Relatório Casament, de 1904, onde acusava os oficiais de Leopoldo II de serem responsáveis por diversas matanças durante expedições para recolha de borracha ocorridas no ano anterior.

Perante a visível e assumida resistência dos povos da região, nomeadamente de Cabinda, às incursões e violências das potências coloniais de então, Portugal resolveu tornear, politicamente, a matéria vigente através do reconhecimento público de algumas figuras locais, a quem outorgou títulos políticos e/ou militares. Exemplos são a atribuição do posto de coronel a Ranque Franque, ou o de barão a Manuel Puna.

Do Tratado de Chinfuma ao Tratado de Simulambuco

Num contexto colonial em que Portugal aparecia como mal menor, entre todos os que queriam ser detentores do espaço territorial que forma a actual província de Cabinda, os seus habitantes optaram por negociar com os portugueses, acreditando que a sua segurança e autonomia estariam salvaguardadas, apesar de a presença de Portugal na região andar a ser questionada quer pelos franceses, quer pelos britânicos ou, mais tarde, pelos belgas. Os britânicos, os velhos aliados de Portugal, questionavam a presença lusa na região, tendo levantado duas questões político-geográficas que ficaram conhecidas como Questão do Ambriz, a primeira, e como Questão do Zaire, a segunda.

Portugal já tinha apresentado perante a concorrência mundial da altura, nomeadamente aos britânicos que negociavam (impunham) com Portugal a delimitação dos seus territórios entre o já citado paralelo 5º e o 8º Sul, ou seja, até um pouco a sul de Ambriz e, note-se (registe-se) os territórios de Angola. Tudo por causa do mercado de escravos que os britânicos tinham abolido em todo o seu império, oficialmente em 1834, mas que permitiam e protegiam que os seus negreiros persistissem nos territórios de terceiros ou não efectivamente ocupados, como seria no caso dos territórios portugueses.

Recordemos que Cabinda não era um território português, mas sob protecção do soberano português, pelo que não poderia ser considerado como um território com efectiva ocupação perante a feroz rivalidade política e geográfica que se verificava na zona e que se viria a desenvolver ainda mais com a presença na região de Brazza, que desenvolvia movimentações políticas e sociais na região a favor da França e colocava em causa quer a presença portuguesa, quer o comércio negreiro britânico.

Se esta preocupante movimentação francesa permitiu a Portugal manter os territórios a sul do paralelo 5º 12’ até 8º Sul, o território cabindense ficou espartilhado entre a soberania franco-belga e a protecção portuguesa. Ou seja, Portugal, por via das movimentações territoriais francesas, conseguia resolver as suas duas questões com os britânicos: a do Ambriz, primeiro, e, mais tarde, a do Zaire, que definiu em definitivo a fronteira internacional na embocadura da foz do rio Zaire. Esta matéria acabou por ser importante para a delimitação futura das actuais fronteiras de Angola (Oliveira, 2010).

De acordo com Oliveira, a Inglaterra contestava a soberania portuguesa nos territórios ocidentais de África entre os paralelos 5º 12’ e 8º latitude Sul, ou seja, entre a margem direita do rio Zaire e o sul de Ambriz. Estas objeções colidiam com o Tratado assinado entre estas duas partes em Julho de 1817 que defendia como territórios “efectivamente possuídos” todos os que estavam compreendidos entre o paralelo 18º e 8º latitude Sul. Nestes estavam incluídos os de Molembo e de Cabinda, que iam do paralelo 5º 12’ e 8º latitude Sul. Só que este Tratado colocava os ditos territórios de Molembo e Cabinda na Costa Oriental de África, facto que provocou claros dissabores à diplomacia portuguesa. Este verbal mistake, como ficou depois consagrado nas relações luso-britânicas, só foi regularizado pela convenção adicional de Abril de 1819 (Oliveira, 2010).

Todavia, deve-se recordar que os territórios portugueses, pela convenção de Madrid de 1786, tinham início no paralelo 0º 36’, ou seja desde o Cabo Lopo Gonçalves – Lopez Cap, nas cartas inglesas – e não nos paralelos indicados pelos britânicos e que foram, habilmente, aproveitados pela França quando reconheceu como direitos soberanos de Portugal todos os territórios até Chiloango, ou seja, até ao citado paralelo 5º 12’.

Esta situação só ficou regularizada num acordo, denominado Questão do Zaire, assinado entre Portugal e Inglaterra em Fevereiro de 1884, onde ficou consagrado que esta reconhecia os direitos históricos de Portugal e o exercício, em benefício da Inglaterra e de Portugal, de um poder exclusivo de polícia e fiscalização no curso superior do Zaire e todos os territórios adjacentes. Este acordo seria fortemente contestado por franceses, germânicos, holandeses, espanhóis e norte-americanos.

Ao mesmo tempo que Portugal dirimia as suas posições geográficas na região com os britânicos, franceses e, mais tarde, com os belgas, os representantes portugueses na região procuravam celebrar acordos com os régulos e príncipes locais, nomeadamente com Tali-e-Tali, Regente do Reino de Kakongo (Cacongo), Mancoche de Muba, Rei do Encoche Luango, António Tiaba da Costa, Regente do Reino de Chinchôcho e representante da Rainha Samano, príncipe Mansange, do Massabe, Mangoge-Bembo da Costa, de Tenda, príncipe Mamimbache, do Kakongo e Mangoal, Regente do Mambuco, e seus sucessores, bem como os mais chefes dos territórios que do rio Massabe se estendem até Malembo, na costa ocidental de África. Destes singulares acordos resultou o Tratado de Chinfuma[6], celebrado e assinado a 29 de Setembro de 1883, no morro do mesmo nome, a norte do rio Chiloango. O local foi escolhido porque só por si corroborava o alcance do acordo. Assim, ficaram estabelecidos o protectorado e a soberania de Portugal sobre todos os territórios que se estendem do rio Massabi até ao Malembo, ou seja, os territórios de Lândana, Chinchôcho e Massabe.

Foram celebrantes, com assinatura e sinalização, do documento, além dos já citados, Brito Cappelo, os oficiais portugueses Cristiano Frederico Krusse Gomes, 1º tenente da armada, e Aquiles de Almeida Navarro, facultativo naval de 1ª classe, e mais cerca de 45 dignitários regionais (entre príncipes, cavalheiros, chefes e governadores) autenticados e certificados presencialmente por João José Rodrigues Leitão Sobrinho, negociante em Lândana, e testemunhado pelo comandante Robert F. Hammick, da canhoneira inglesa Flirt, e R. E. Demet, gerente da casa Hatton & Cookson.

Portugal, de acordo com o articulado do documento, comprometia-se a garantir a continuidade e integridade das áreas bem especificadas no âmbito do protectorado (Artigo 3º do Tratado de Chinfuma), situação corroborada também pelo auto de posse que foi autenticado pelo rei do Cacongo.

Pouco mais de um ano depois, a 26 de Dezembro de 1884, outros responsáveis da hierarquia social e política dos povos de Caio Chimisi, Suangili Mando, Buamongo, Guamongo, Chicambo Naeba e N’cula, consideraram favorável o Tratado de Chifuma, até então encarado como já tendo dado frutos no sentido da defesa dos interesses dos povos da região cabinda das margens da lagoa do Caio, e decidiram apostar na mesma estratégia, assinando, então, o Tratado de Chicambo[7], uma cópia fiel do de Chinfuma.

Mau grado estes Tratados e todas as garantias dadas pelas autoridades portuguesas em matéria de segurança, os cabindas continuavam a sentir-se sem segurança e sujeitos aos mesmos perigos protagonizados pelas outras potências coloniais. Confrontado com esta realidade que, inclusive, poderia levar a uma espécie de rebelião que anulasse os acordos anteriores, Portugal resolveu, com a anuência de um maior número de líderes de Cabinda, avançar para um outro Tratado mais amplo e abrangente que englobasse os anteriores e lhes desse outras mais-valias. Foi assim que, em 1 de Fevereiro de 1885[8], nasceu o Tratado de Simulambuco[9], assinado por Brito Capello, representando o reino português, e por príncipes, régulos e governadores locais representando o Reino de N’Goyo.

Na óptica de Lisboa, sob o reinado de D. Luís, este Tratado deveria ser importantíssimo, sobretudo no âmbito da Conferência territorial que se fazia em Berlim, sob os auspícios do chanceler germânico Bismark, depois de Leopoldo II da Bélgica ter ventilado a hipótese de realização de uma Associação Internacional Africana e subsequente conferência internacional que se deveria realizar em 1876.

Contudo, Portugal estava muito longe das questões cabindenses e continuava a assumir que as suas posses estavam garantidas. Os problemas que os franceses criavam na região só muito tardiamente chegavam a Lisboa. Por essa razão, e porque os comerciantes e oficiais portugueses que estacionavam na região de Cacongo-Massabi solicitaram apoio ao Governador-geral de Angola, capitão-tenente Ferreira do Amaral, que, vendo não vir uma resposta atempada de Lisboa, optou por enviar a corveta Rainha de Portugal, sob comando de Brito Cappelo, e celebrar acordos de protecção com os príncipes e régulos locais (Silva, 1888). Só mais tarde Lisboa tomou conhecimento destes factos e aproveitou-os para fazer valer os seus direitos na Conferência de Berlim.

A Conferência de Berlim, realizada entre 19 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885, teve como objectivo organizar a ocupação de África pelas potências coloniais e resultou numa divisão que não respeitou nem a história, nem as relações étnicas e, muito menos, as ancestrais relações familiares dos povos do continente africano.

A Conferência validou o Tratado de Simulambuco e reconheceu, como era desejado e condição sine qua non de Portugal, todos os direitos portugueses na região, com especial relevo para os já citados itens “a liberdade de comércio na bacia do Congo e seus afluentes”, “neutralidade dos territórios da bacia do Congo”, e “livre navegação no Congo e Níger”. A assinatura em Simulambuco – hoje integrado na cidade de Cabinda – foi a resposta portuguesa a todo o postulado abordado na conferência (Almeida, 2004).

Portugal adoptava então, quer perante os cabindas, quer perante o mundo, a obrigação de ser guardião, por todos os meios ao seu dispor, do novo Protectorado de Cabinda, que englobava não só os citados reinos de Loango, Kakongo e Ngoio e outros referidos, como os lugares conhecidos por Chinchocho, Luvula, Chilunga, Ombuco, Tenda, Muba, Bukameala, Mayumba, Pango, e Ganga-Muculo, todos a norte da foz do rio Zaire.

Dizem os compêndios de Ciência Política que Tratados são actos internacionais, através de acordos formais e escritos celebrados entre Estados e/ou organizações internacionais, que buscam produzir efeitos numa ordem jurídica de direito internacional. Sendo acordos, pressupõem manifestação de vontade bilateral ou multilateral. Mas a Ciência Política também refere que os actos internacionais além de Tratados podem conferir também Acordos, Convenções ou simples Actos internacionais diversos entre pessoas ou contratantes com cariz jurídico-institucional semelhante a Estados.

E, segundo as normas internacionais, só aos sujeitos de direito internacional se reconhece o direito a celebrar e assinar Acordos e Tratados conforme o direito convencional ou treaty-making power. Ou seja, apenas os Estados nacionais, as organizações internacionais (reconhecidas como tal), a Santa Sé – apesar de não ser um Estado, como é comummente aceite para estes casos, é assim reconhecido – e os beligerantes e insurgentes podem celebrá-los.

Recorde-se que não há conhecimento da existência formal de qualquer documento legal assinado pelo rei de Portugal a autorizar o comandante do Rainha de Portugal a celebrar qualquer tipo de contrato em seu nome com qualquer entidade – registe-se que, então, apesar de os navios representarem o Estado sob quem arvoravam o pavilhão, só depois de ratificado pelo Chefe de Estado e/ou ratificado nas Cortes/Parlamento um documento revertia em Tratado – nem, tão-pouco, os príncipes e régulos estavam mandatados pela rainha de N’Goyo, nem há conhecimento de que esta, bem como o kibanda do Reino, tenham ratificado o documento assinado em Simulambuco. Todos os actos deviam ser sancionados por estas duas entidades, o que ainda hoje persiste, ressalvando que a rainha é sempre uma descendente directa do Rei do Congo:

De acordo com as transmissões orais de alguns mais velhos, a história da entronização dos líderes e governantes não autóctones em Cabinda terá começado com a presença da princesa Mampuenha, filha do rei do Kongo, expulsa da região de Mbanza Kongo, há séculos atrás, por engravidar sem ter passado pelo rito da puberdade. Recolhida na região do N’Goio, que pagava vassalagem ao rei do Kongo juntamente com outras duas regiões (Kakongo e Luango) que formavam o antigo território de Cabinda antes da Conferência do Berlim, acabou de dar à luz trigémeos (uma menina, a mais velha, e dois rapazes). O rei do Kongo, ao receber a notícia através de emissários mandados pelo rei de N’Goio (Ntinu Ngoio), concedeu às três regiões uma espécie de independência, retirando-lhes a condição de vassalos do Manicongo, e indicando os seus netos para as governarem. A mais velha ficaria com o reino de N’Goio, a menor região; o segundo ficaria com o reino de Kakongo, a região considerada mais importante do ponto de vista político; e o terceiro ficaria com o reino de Luango, a região mais vasta. No dia da exaltação, a rapariga ficou impedida de ser entronizada por causa da menstruação que lhe surgiu, porque tinha de se retirar para a mata, segundo rezava o costume da época. Por isso foram entronizados os outros irmãos, pelo que ela ficou apenas como representante religiosa para dar o poder de governar aos irmãos, em cerimónia específica que ocorria na região do Morro de Chizo, nos arredores da cidade de Cabinda. A estória repetir-se-ia até ao desaparecimento dos tais reinados. Todavia, aquando da entronização do “actual rei de Luango”, em 2002, em Diossó (região de Ponta Negra), a delegação angolana que lá se deslocou pôde constatar in loco que o “novo rei” entronizado manifestou o desejo de se deslocar a Cabinda, para receber a referida “soberania religiosa” no Morro de Chizo. Também alguns dos últimos governadores provinciais nomeados por Luanda se deslocavam ao Morro de Chizo para serem oficialmente simbolizados (Domingos K. Nzau[10], comunicação pessoal, Janeiro de 2012).

Só um documento escrito por um habitante de Cacongo, José Emílio de Santos e Silva, nos relata os acontecimentos da época e nos mostra que foi a visão política de alguns comerciantes locais e do governador Amaral, aliada à discrição dos ingleses, que testemunharam os actos, bem como a necessidade dos príncipes locais travarem as investidas francófonas, que permitiram a assinatura do Tratado. Acresce que, segundo algumas fontes não autenticadas, quando foi assinado o documento os representantes cabindenses estariam sob efeitos de álcool gentilmente fornecido na véspera, e em barda, pelos oficiais do navio português. Como não há documentos fidedignos que comprovem esta acção lusa, mas tão-somente alguns escritos nesse sentido, não se pode afirmar que tal aconteceu.

Por outro lado, um Tratado só diz respeito às partes contratantes e deve ser ratificado e promulgado de acordo com as normas internacionais, no caso, vigentes à época. Actualmente os Tratados devem ser registados nas Nações Unidas para terem suporte jurídico desta organização supranacional, em casos de litígio.

Sobre os Acordos há quem considere que são actos internacionais com a mesma relevância de um Tratado, embora de menor impacto político. Outros há, no entanto, que admitem que os acordos podem ser assinados por países, organizações e outros, que não entidades soberanas, quando estão em causa interesses absolutos.

Mas, voltando ao documento, nele estava, e está, escrito:

Nós, abaixo assinados príncipes e governadores de Cabinda, sabendo que na Europa se trata de resolver, em conferência de embaixadores de diferentes potências, questões que directamente dizem respeito aos territórios da Costa Ocidental de África, e, por conseguinte, ao destino dos seus povos, aproveitamos a estada neste porto da corveta portuguesa “Rainha de Portugal”, a fim de, em nosso nome e no dos povos que governamos, pedirmos ao seu comandante, como delegado do Governo de Sua Majestade Fidelíssima, para fazermos e concordarmos num tratado pelo qual fiquemos sob o protectorado de Portugal, tornando-nos, de facto, súbditos da coroa portuguesa, como já o éramos por hábitos e relações de amizade. E, portanto, sendo de nossa inteira, livre e plena vontade que de futuro entremos nos domínios da coroa portuguesa para aceder aos nossos desejos e dos povos que governamos, determinado o dia, onde, em sessão solene, se há-de assinar o tratado que nos coloque sob protecção da bandeira de Portugal.

Também os portugueses escreveram e subscreveram,

Guilherme Augusto de Brito Capello, capitão tenente da Armada, comandante da corveta Rainha de Portugal, comendador d’Aviz e cavaleiro de várias Ordens, autorizado pelo Governo de Sua Majestade Fidelíssima, El-Rei de Portugal, satisfazendo aos desejos manifestados pelos príncipes de Cabinda, em petição devidamente por eles assinada em grande Fundação, concluiu com os referidos Príncipes, Governadores e Chefes abaixo assinados, seus sucessores e herdeiros (o que ficou consignado como o Tratado).

Perdurava, assim, reconhecido que todo o território do reino N’Goyo – ficava compreendido entre o Rio Congo e uma parte do sul da actual República do Congo (então Congo francês), ou seja até ao paralelo 5º Sul (ligeiramente a sul do rio Loémé, perto de Ponta Negra, República do Congo) – estaria sob a protecção do reino lusitano, conforme determinavam os referidos onze articulados do documento.

Para formalizar e autenticar este acordo foi decidido nomear um representante português para a região. Assim, após a assinatura foi criada a povoação de Cabinda e aqui instalaram-se as autoridades portuguesas, tendo sido nomeado como primeiro governador João António de Brissac das Neves Ferreira, que ali aportou a 14 de Julho de 1887.

Portugal e Cabinda de 1885 a 1974 e a definição de fronteiras

Se é verdade que Portugal cumpriu e honrou o articulado do documento entre 1885 e 1974, também é verdade que há dois artigos que devem ser ressalvados dado que, por causa deles, há a actual polémica. Ou seja, se Cabinda é território autonomizável, logo território sob administração colonial, ou uma das 18 províncias angolanas.

No art.º 3º Portugal comprometia-se a manter a integridade dos territórios colocados sob seu protectorado e no art.º 9º o Estado português comprometia-se a respeitar e fazer respeitar os usos e costumes do povo de Cabinda. Em ambos os casos, tal não se veio a verificar.

Portugal, à revelia do assinado com os régulos locais, e sempre que as forças políticas e as políticas das canhoeiras o forçavam, assinou acordos com as potências coloniais adjacentes redefinindo as suas fronteiras coloniais. No caso de Cabinda, a aceitação das fronteiras impostas pela França com a assinatura de acordos com régulos locais na zona de Ponta Negra, coagidos pela presença de canhoeiras francesas, ou do acordo com a Bélgica, a 5 de Julho de 1913[11], quando Portugal assinou, em Bruxelas, um protocolo onde Portugal aceitava dar provimento a uma reivindicação belga de ter uma saída do Congo para o Oceano Atlântico concedendo um corredor nos territórios ao norte da foz do Zaire, cortando, desta forma, o reino de N’Goio ao meio. Para o território de Cabinda ficava consumado o torrão ficar como um enclave.

Mas esta questão da definição das fronteiras do território cabindense continua a motivar a tentativa de outras redefinições fronteiriças, desta feita entre o Congo Democrático e Angola, na foz do Zaire, devido à exploração de hidrocarbonetos[12].

Entretanto, já em 12 de Janeiro de 1901, Portugal e França haviam assinado em Paris um protocolo interpretando e completando o artigo 3 da Convenção de 12 de Maio de 1886, relativo ao traçado da linha de fronteira franco-portuguesa na região do Congo. Estava assim consumada a divisão do Congo em três partes: belga, francesa e portuguesa, desprezando um dos artigos do documento que dizia que Portugal respeitaria e faria respeitar a integridade do território.

Ora, como se recorda, o território sob protectorado estava compreendido, em toda a sua extensão, entre os rios Loémé, a Norte, e a foz do Zaire.

Por isso, a questão do porquê de Cabinda ser ou não um território autónomo, como defendem alguns autores e alguns dirigentes cabindenses, ou uma província, como sustenta a Constituição angolana, está hoje a ser muito debatida, ao ponto de a própria União Africana ter nomeado um relator especial para analisar as queixas dos independentistas de Cabinda contra o Governo de Angola[13].

O compromisso assumido com os povos da região cabinda levou Portugal, em matéria constitucional e de acordo com o Acto Colonial de 8 de Julho de 1930, a incluir Cabinda na nação portuguesa de forma autónoma e bem diferenciada de outras situações coloniais.

Ao contrário das teses unilaterais de alguns dos dirigentes portugueses que defenderam e rubricaram a descolonização após a Revolução de 1974, no artigo da Constituição Portuguesa vigente até à de 25 de Abril de 1975, no concernente à nação portuguesa, sempre constou que o território de Portugal era, na África Ocidental, constituído pelos arquipélagos de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, Forte de S. João Baptista de Ajudá, Guiné, Cabinda e Angola.

Na Lei Orgânica do Ultramar de 1972 diz-se de forma clara que o território português se compunha das províncias com a extensão e limites que constarem da lei e dos tratados (onde se incluem, obviamente e se considerarmos como Tratados, os de Chinfuma, Chicambo e de Simulambuco) ou convenções internacionais aplicáveis.

Registe-se e recorde-se, que até meados do século passado, por exemplo, quem viajasse de avião ou navio e que desembarcasse em Cabinda passava por uma alfândega autónoma, o que só é entendível à luz de serem dois territórios distintos como defendem os autonómicos. Isto apesar de, em 1955, para facilitar a administração do território, o território de Cabinda ter sido considerado como um distrito de Angola. Embora reconhecendo que de facto se tratava de um mero expediente administrativo, Portugal reafirmava que Cabinda não era Angola, citando a esse propósito que se mantinha o articulado que constava da Constituição portuguesa em vigor.

Aliás, o Governador-geral de Angola ou um Secretário Provincial seu representante, nas comemorações anuais de Simulambuco, deslocava-se a Cabinda para presidir, junto ao monumento de Simulambuco, às cerimónias que reforçavam e validavam o que fora assinado pelas autoridades portuguesas de então.

Segundo o general Silvino Silvério Marques, que foi Governador-geral de Angola[14], entre 1962 e 1965, o então ministro do Ultramar, Silva Cunha, a propósito da preparação do Estatuto Político-Administrativo da Província de Angola de 1963, por ordem do chefe de Governo, António de Oliveira Salazar, tê-lo-á sondado no sentido de saber se concordava que Cabinda, administrada então como distrito de Angola, passasse a ter um estatuto especial de autonomia. Ouvido o Conselho Económico-Social de Angola, Silva Cunha recebeu uma resposta negativa, situação que assim se manteve durante os 13 anos da guerra colonial.

Ou seja, ficava visível que a administração de Cabinda, como um distrito de Angola, era uma situação meramente burocrático-administrativa, nunca tendo Portugal alterado o espírito e a letra do articulado de Simulambuco, no que foi ratificado nas Nações Unidas – quer na Assembleia Geral, quer no Conselho de Segurança – onde os territórios ultramarinos portugueses de Angola e Cabinda estavam a ser analisados como uma única entidade (Felgas, 1962).

Em tudo, aliás, a situação de Cabinda relativamente a Angola era na altura da Revolução de 1974 similar, ou até coincidente, com a dos protectorados belgas do Ruanda e do Burundi em relação ao Congo Belga. E estes acabaram independentes, apesar de os anos seguintes terem mostrado que a sua divisão política, sem contar com as diferenças étnicas, mostrou ter sido um erro colonial, que nunca procuraram regularizar.

Em 1961, altura em que se inicia a luta armada pela independência de Angola, em Cabinda e com cabindas como protagonistas, já existia apenas um movimento pró-autonómico que, porém, excluía a luta armada como meio para atingir esse fim. Para eles o diálogo com Portugal era a única arma existente.

O surgimento de movimentos emancipalistas cabindenses

Em 1958, destacados elementos da comunidade cabinda radicados em Leopoldville fundaram a AREC[15] (Association des Ressortissants de l’Enclave de Cabinda – Associação dos Originários do Enclave de Cabinda).

Os dirigentes da AREC afirmavam que, do ponto de vista político, Cabinda era um protectorado de Portugal, negando qualquer envolvimento activo, ou apenas simpatia, pelos movimentos angolanos que lançaram a luta armada pela independência de Angola. E nesse sentido, a 12 de Agosto de 1960, ou seja antes do início oficial das hostilidades armadas em Angola, a AREC escreveu ao então Presidente do Conselho português e ao Ministro do Ultramar, solicitando a independência de Cabinda.

Segundo um documento intitulado “O que quer a AREC”[16], a organização dizia que era chegada a altura de acabar com o protectorado consignado no Tratado de Simulambuco e assim chegar à independência de Cabinda e reafirmava, em Novembro de 1960, que nada tinha a ver com organizações angolanas como a UPNA/UPA (União dos Povos do Norte de Angola, depois UPA), a ALIAZO (Aliança dos Povos do Zombo), a NGWIZACO (Ngwizni a Kongo, “Entendimento do Congo”), e o MPLA.

Certamente, porque Portugal se mantinha indiferente à sua existência, tal como a maioria dos angolanos em geral, a organização liderada por Luís Ranque Franque começou a fazer elucidativos apelos à rebelião contra os portugueses. Um dos momentos altos desses apelos aconteceu a 20 de Dezembro de 1960, quando a AREC faz circular em Cabinda um manifesto anti-europeu onde, pela primeira vez, é adicionado, também, o nome do MLEC – Movimento de Libertação do Enclave de Cabinda, que, poucos dias depois, endereça um memorando a diversas entidades oficiais de Portugal reclamando a independência e dando, mais uma vez, como terminado o acordo de protectorado.

Numa tentativa, precipitada e inconsequente, com vista ao seu reconhecimento internacional, o MLEC aproveita o 1 de Fevereiro de 1961 (data das comemorações oficiais do Tratado de Simulambuco) para lançar o boato de que a comida à venda em Cabinda estaria envenenada, sem que com isso tivesse obtido quaisquer ganhos.

Outra data a assinalar foi a 23 de Março de 1961, logo após os primeiros actos armados da UPA (União dos Povos de Angola), em Angola, quando as autoridades portuguesas prenderam em Cabinda alguns dirigentes do movimento, entre os quais o barão Puna, tendo apreendido grandes quantidades de propaganda anti-Portugal. A acção de Portugal foi aproveitada pelo MLEC que, a 11 de Abril de 1961, paga a publicação de um comunicado no Courrier d’Afrique onde fala do que chama “os massacres de Cabinda”. Dado o exagero e manifesta falsidade da afirmação, a população de Cabinda teve uma reacção contrária, obrigando o MLEC a corrigir o alvo (Castro, 2011).

A 5 de Setembro desse ano, o MLEC decide regressar, aparentemente, à via pacifista e Henriques Tiago N’Zita assina um documento de análise às modificações implementadas por Lisboa em Cabinda, considerando-as insuficientes no âmbito do protectorado. Porém, a 15 de Novembro, o MLEC começa a revelar desentendimentos internos, aparecendo versões para todos os gostos e feitios, desde a independência ao protectorado, passando por uma consulta popular e até pela anexação a qualquer um dos Congos. Tudo surgia nessa altura como sendo obra do MLEC, mas não se registando nestes novos desenvolvimentos nenhuma posição favorável à anexação, ou simples ligação, a Angola.

Outro dos desenvolvimentos ocorreu a 24 desse mesmo mês quando o MLEC remeteu ao embaixador de Portugal no Congo ex-belga, com o pedido expresso que o encaminhasse para o governo de Lisboa, o que chamou de “Plano-Quadro do MLEC”. Desse plano ressaltava, sobretudo, uma declaração de amizade em relação a Portugal, a defesa do pacifismo e o pedido para ser recebido e reconhecido pelas autoridades portuguesas.

Ora, este documento não foi bem aceite por algumas partes do MLEC, que, um mês depois, em Dezembro, expulsaria do movimento Henriques Tiago N’Zita, facto que o leva a responder com a criação de uma outra estrutura política. Em Maio de 1962, o MLEC distanciou-se de tudo o que se passava em Angola, afirmando mesmo que o GRAE – Governo Revolucionário de Angola no Exílio[17], liderado por Holden Roberto, era algo que nada dizia aos cabindas.

Entrementes, N’Zita funda a Comissão de Acção da União Nacional dos Cabindas (CAUNC) e a 13 de Janeiro de 1962 garante que a sua organização visava unir a família cabinda e juntá-la a outra família, a do Congo, reafirmando que dado que Cabinda nada tinha a ver com Angola, exigia o fim dos tratados assinados com Portugal.

Perante o dédalo a que chegara a situação destes movimentos ou organizações, só em 8 de Julho de 1963 a CAUNC, o MLEC e a Aliança Nacional do Maiombe (ALLIAMA) chegam a um entendimento, tão precário na sua génese que ainda hoje dificilmente se encontra alguém que o explique e o entenda, para criar a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC).

A UPA, a primeira organização a abrir as hostilidades armadas em Angola contra a soberania portuguesa[18], liderada por Holden Roberto, nunca teve bases, nem mesmo temporárias, em Cabinda. A partir do então Congo Belga – depois Zaire e hoje República Democrática do Congo –, então liderado pelo ex-sargento Joseph Désiré (mais tarde marechal Mobuto Sesse Seko), fazia algumas incursões no território, muitas delas visando mais as populações indefesas do que qualquer dispositivo militar. E foi nesta estratégia da UPA que, em 12 de Abril de 1961, se registaram diversos ataques contra patrulhas militares no território de Cabinda, em particular na floresta de Maiombe, aproveitando as suas condições naturais. Todavia, o resultado prático foi mais o sacrifício dos povos de Cabinda do que qualquer impacto nos meios militares portugueses.

Os cabindas, temendo ser envolvidos, como foram de facto, numa guerra que não consideravam como sendo sua, optaram, muitos deles, por tentar sobreviver nos Congos. Para além dos cabindenses não se meterem, por regra, numa guerra entre angolanos e portugueses, mantiveram-se sempre alheados das questões emancipalistas que norteavam os movimentos angolanos: a UPA, que se limitava a ataques pontuais e inconsequentes pelas razões acima indicadas, ou o MPLA[19] que, tentando atrair os cabindas para a causa nacionalista, acabou por criar bases no território beneficiando do apoio da então República Popular do Congo (ex- Congo-Brazza e actual República do Congo).

Enquanto no território português de Angola a crise militar se desenvolvia, em Cabinda registaram-se alguns desenvolvimentos nos anos subsequentes, embora os mais relevantes se tenham verificado em Outubro de 1960 quando, na ONU, o vice-presidente e ministro das Relações Exteriores do Congo-Brazza, Tchichele, exigiu a independência total de Cabinda; ou quando em 4 de Agosto de 1963, sob os auspícios do presidente congolês, padre Fulbert Youlou, se verifica a fusão dos diferentes movimentos nacionalistas cabindenses na Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC); ou quando, no ano seguinte, a então Organização da Unidade Africana (OUA) colocou Cabinda no 39° lugar entre os países a descolonizar, distintamente de Angola, classificada no 35° e que viria a ser ratificada no seio das Nações Unidas – Angola e Cabinda eram, diferentemente, territórios sob dominação colonial e com direito a serem autónomos.

A FLEC na questão de Cabinda

A situação em Angola vinha a deteriorar-se progressivamente desde que em Alvor os três únicos e reconhecidos representantes nacionalistas de Angola assinaram o acordo que reconheceria a independência de Angola, de Cabinda ao Cunene, a 11 de Novembro de 1975. Nesta reunião, apesar de terem participado, oficiosamente, alguns régulos e sobas angolanos, não houve qualquer representação oficial, nem oficiosa, de personalidades cabindenses.

Os anteriores acordos elaborados e assinados pelos três movimentos nacionalistas angolanos, nomeadamente em Nakuru e Mombaça, tinham adoptado que Cabinda era parte integrante da futura nação angolana, apesar de Jonas Savimbi, enquanto líder da UNITA, ter reconhecido, mais tarde, que Cabinda “nunca fez parte integrante de Angola, nem antes nem aquando nem depois da retirada do colonizador do nosso país”[20].

Esta atitude de Portugal, enquanto potência, foi mal recebida pelos dirigentes autonómicos de Cabinda, que levaram a FLEC a autoproclamar a independência, em 1 de Agosto de 1975, e a iniciar as suas actividades armadas a 8 de Novembro deste mesmo ano, vésperas da independência de Angola, com o apoio do exército regular do Zaire (Brittain, 1999). A desilusão com Portugal, sobretudo a partir de 1974, pode ser resumida na afirmação de Agostinho Chicaia, presidente da extinta Mpalabanda, Associação Cívica de Cabinda: “Não vamos mais contar com Portugal. O Governo português tem interesses muito fortes em Cabinda, particularmente em Angola, e vai ser difícil pronunciar-se sobre uma eventual solução a favor do povo de Cabinda, porque o lado económico sempre fala mais alto” (Castro, 2011).

De facto, se o problema maior de Cabinda é a sua imensa riqueza petrolífera[21], florestal e mineral (pedras semipreciosas, diamantes e pepitas de ouro), segundo Carlos Alexandrino da Silva[22], uma correspondência a que teve acesso refere que um português chegou a obter uma concessão para exploração de pedras semipreciosas em Cabinda, no que terá sido assessorado por uma jurista angolana que, mais tarde, e durante a I República, ocupou diversas e importantes pastas ministeriais além de dar aulas de Direito da Família, na Universidade Agostinho Neto, de Luanda; afirmava-se que apesar das concessões de jazidas, segundo os Serviços de Geologia e Minas, serem para extracção de pedras semipreciosas, na realidade, o que mais vinham extraindo do subsolo cabindense, mas a título “particular”, eram diamantes da melhor qualidade e pepitas de ouro, às ocultas daqueles Serviços. A sede dessa sua empresa estava situada em Luanda, na então chamada Avenida dos Combatentes.

Politicamente, os dirigentes de Cabinda não se conseguem unir para fazer valer a sua voz, quer junto da comunidade internacional quer, e principalmente, junto do Governo de Angola, aquele que deveria ser o seu principal interlocutor, desde o momento em que Portugal abdicou das suas responsabilidades históricas, já anteriormente referidas. No caso da FLEC esta é representada por várias facções que se digladiam entre si, tal como aconteceu, e durante muitos anos, com os movimentos emancipalistas angolanos. Durante algum tempo coexistiram a FLEC-Ranque Franque, liderada por Luiz Ranque Franque, a FLEC-N’Zita, de N’Zita Henriques Tiago, e a FLEC-Lubota, dirigida por Francisco Xavier Lubota, ao mesmo tempo que, em Novembro de 1977, emerge o Comando Militar para a Libertação de Cabinda, e em Junho de 1979 aparecem, formalmente, em nome de um Movimento Popular de Libertação de Cabinda (MPLC), as Forças Armadas de Libertação de Cabinda.

Estas dispersões nacionalistas seriam claramente aproveitadas pelo então Governo da então República Popular de Angola, liderada pelo MPLA, para diminuir o eventual impacto das forças nacionalistas cabindenses no território. Facto mais tarde aproveitado aquando da criação do GURN, após o acordo de paz entre o MPLA e a UNITA e que aglutinou, também, alguns dissidentes da FLEC, agrupados no Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD) e liderados por Bento Bembe, que acabou como ministro sem pasta no Governo de Angola.

Contudo a posição da FLEC – ou das diferentes FLEC – no enclave de Cabinda teria, na década de 80, um apoio que tinha tanto de imprevisível como de surpreendente. A UNITA, com o auxílio do então Zaire, de Mobutu, dava a sua cooperação militar no combate ao MPLA, tentando fechar o cerco militar às então FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) e aos paramilitares cubanos. O MPLA tinha cerca de 15 mil militares bem armados e apoiados por forças motorizadas e aéreas em Cabinda.

É certo que Jonas Savimbi, inicialmente e como já tinha referido, aceitava que Cabinda não era uma parte inequívoca de Angola mas, no actual contexto internacional e porque a OUA já o tinha adoptado, como tal deveria gozar de um estatuto especial dentro da nação angolana, situação também aceite, na mesma altura pelo presidente José Eduardo dos Santos[23].

Entretanto, emergiam outros movimentos emancipalistas no Enclave ou que se arrogavam ser oriundos de Cabinda, sendo alguns dissidentes da FLEC, como o Comité Comunista de Cabinda (CCC), em 1988, liderado por Mohamed Kaya Yay; na década de 90, uma nova facção da FLEC resulta na União Nacional para a Libertação de Cabinda (UNLC), liderada por Luis Lumingu Gimby. Só que foram de pouca duração ou de nenhum impacto.

E, ainda na década de 90, a FLEC é reformulada em duas facções que ainda persistem: a FLEC-Renovada, cuja bandeira era branca com uma listra central, dividida em três cores (verde, amarelo e preto, com um anel vermelho no centro da bandeira); e FLEC-Forças Armadas de Cabinda (FLEC-FAC), usando o vermelho original, amarelo e com bandeira azul, e como emblema uma estrela branca sobre um triângulo verde circundado por um círculo preto a meio da faixa amarela. A FLEC-FAC arroga-se, actualmente, o direito de ser a única representante dos cabindenses e de defender a República de Kabinda.

Mas enquanto a FLEC se refunda nestas duas facções, em 1996, na Holanda, desponta mais um novo movimento sob a sigla FLEC. Desta feita, em vez de Enclave há Estado, ou seja, a Frente de Libertação do Estado de Cabinda, dirigida por uma personalidade de apelido Lopes, e que adopta como divisa o azul, amarelo e preto com o monumento Simulambuco no centro. As diferentes facções cabindenses têm mantido algum conflito militar com as actuais Forças Armadas de Angola (FAA) no Enclave de Cabinda, com algumas vitórias por parte das FAA, onde se destaca a captura de um dos líderes da FLEC-Renovada, em 2002, e que redundou em Agosto de 2006 num acordo de cessar-fogo entre esta facção e o Governo de Luanda.

No entanto, este acordo foi contestado por outras facções cabindenses, nomeadamente fora do Enclave, com a da FLEC-FAC a manter a sua atitude belicista e autonómica face a Luanda, ao ponto de esta organização ter solicitado, ainda em Outubro desse ano, uma intervenção da Comissão da União Africana de Direitos Humanos e dos Povos que só, muito recentemente, viu a actual União Africana (UA) nomear um relator especial para analisar as queixas dos independentistas de Cabinda contra o Governo de Angola.

Esta recente atitude da União Africana é o corolário de vários factos que, entretanto, foram ocorrendo no Enclave e que levou ao despertar de uma certa consciência internacional, nomeadamente em Portugal, na República Popular da China ou em França, sendo que nesta última, devida ao caso Angolagate, foi aproveitada pelos secessionistas de Cabinda, ou no próprio continente africano, durante a Taça das de Nações Africanas (CAN) de futebol, realizada em Angola em 2010.

Nos casos português e chinês sobrevieram os raptos dos seus cidadãos. Em Maio de 2000, a FLEC-FAC raptou três funcionários estrangeiros e um angolano que trabalhavam para um empreiteiro português, tendo sido libertados dois meses depois; em Março de 2001 a FLEC-Renovada sequestrou cinco funcionários portugueses de uma empresa de construção, só soltos três meses depois. Já em Maio de 2010 vários funcionários chineses foram atacados por uma nova fação da FLEC, entre as localidades de Liambo Liona e Weca, apesar de o acto ter sido negado quer pelas autoridades angolanas, quer pelos dirigentes chineses, que se limitaram a afirmar que os seus trabalhadores tinham sido objecto de um mero acidente por “distracção e pouca habilidade de um deles nas estradas secundárias de Cabinda” (Yola, 2009, ¶8). Esta FLEC denomina-se Frente de Libertação do Enclave de Cabinda – Posição Militar (FLEC-PM), cujo secretário geral é Rodrigues Mingas.

Mas o maior impacto aconteceu em inícios de Janeiro de 2010, quando um autocarro transportando jogadores do Togo que iam participar na CAN de Angola, escoltado por uma coluna militar das FAA, foi atacado, resultando na morte do porta-voz da equipa togolesa, do assistente técnico e do motorista do autocarro, bem como ferindo vários atletas togoleses. Este ataque foi reivindicado por Rodrigues Mingas da FLEC-PM, através de uma televisão francesa, a TVFrance24, e entretanto detido em França a pedido das autoridades angolanas, por actos de terrorismo. De apontar que Mingas tem nacionalidade francesa.

Entrementes, representantes da vida civil cabindense e alguns membros da FLEC, reunidos no Fórum Cabindense para o Diálogo, liderados por Bento Bembe[24] – e onde se incluíam, também, José Bamoquina Zau e André de Jesus Moda, que posteriormente integraram o GURN, com as pastas de vice-ministro do Interior e de vice-ministro da Agricultura e do Desenvolvimento Rural para a área dos recursos florestais, respetivamente; Macários Romão Lembe, como vice-governador da província de Cabinda; e o general da FLEC Maurício Amado Zulo, investido como vice-chefe do Estado-maior General das FAA para a área social –, assinaram, em Namibe, a 1 de Junho de 2006, um “Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação da Província de Cabinda”, visando a cessação das hostilidades em Cabinda que se registavam entre a República e os autonomistas cabindenses e, além disso, um dos subentendidos das conversações que levaram à assinatura do Memorando passava pela criação de um estatuto especial para Cabinda. Todavia, e apesar de o Memorando ter sido previamente debatido, em Cabinda, num Nokoto-likanda, algo semelhante a um parlamento tradicional, este acordo não foi, e continua a não ser, reconhecido por outros actores do Enclave, mantendo-se a situação em Cabinda como social e politicamente problemática, com detenções de algumas personalidades (políticas, jurídicas e eclesiásticas) cabindenses.

Não é em vão que, no final de 2011, o Chefe de Estado-Maior das FAA, general Geraldo Sachipengo Nunda, alertava para os problemas militares que se verificavam no Enclave – deserções de militares angolanos, confraternizações indevidas, captura de guerrilheiros independentistas – e anunciava que um dos objectivos prioritários das FAA era “a pacificação da província de Cabinda”[25].

Ora, se o território está social, política e militarmente estável, como nos dizem os governantes angolanos e, muito recentemente, Bento Bembe[26], então estas palavras do general Nunda parecem não fazer qualquer sentido. Acresce que os dirigentes da UNITA acusam o actual governador da província, general Mawete João Baptista, de falta de sentido de governação e de desrespeito relativamente à especificidade do Enclave, falta de execução e implementação dos investimentos aprovados para a província, no biénio 2010 e 2011, falta de justificação quanto ao destino dado aos cerca de nove mil milhões de Kwanzas orçamentados pelo Ministério das Finanças para o desenvolvimento do território e pelo facto de o quadro sociopolítico do Enclave ser “dramático”[27].

Exploração económica na base das críticas autonómicas

Se uma das razões para os secessionistas evocarem a separação e não concordância da incorporação de Cabinda na República de Angola, baseada no Tratado de Protecção de Simulambuco, e pelo facto de se considerarem dois povos diferentes[28], outros acrescem, também, razões económicas. De notar que Cabinda não é só petróleo ou madeiras preciosas como habitualmente é referenciado. A região do Maiombe, mais reconhecida pela sua rica floresta, é igualmente rica em minerais. Por exemplo, na década de 60, o então director provincial dos Serviços de Geologia e Minas de Angola e seu primeiro vice-presidente, o engenheiro geólogo Carlos Alberto da Costa Neves Ferrão, apresentava um folheto denominado Ocorrências minerais de Angola (Castro, 2011, pp. 25-27) onde, sobre Cabinda e, em particular, de Maiombe, constava:

A região aurífera do Maiombe, no distrito de Cabinda, estende-se por uma vasta área, interessando especialmente as aluviões da bacia hidrográfica do rio Luali. Muito embora se trate de uma região onde outrora incidiram numerosos trabalhos mineiros, os pesquisadores utilizaram sempre técnicas rudimentares, limitando-se à obtenção de ouro aluvionar. As aluviões auríferas localizam-se sobre o Complexo de Base, representado, nesta região, por rochas gnaissosas, em certos casos fortemente micáceas e atravessadas por grande número de filões de quartzo, nos quais, até ao presente, não foi encontrada mineração aurífera. As aluviões são, essencialmente, constituídas por calhaus siliciosos, englobados numa pasta detrítico-argilosa. O ouro aparece acompanhado de grande quantidade de magnetite e alguma ilmenite.

Mais adiante, o documento refere que as rochas fosfatadas “de Mongo-Tando e Chibuete, no distrito de Cabinda e as de baixa de Lucunga no distrito do Zaire, denunciaram presença de radioactividade anómala”, enquanto sobre as de origem marinha diz:

estes depósitos, que constituíram objecto de estudos aturados por parte dos Serviços de Geologia e Minas, não se encontram ainda em exploração. Tais estudos conduziram à determinação das reservas dos depósitos de Cabinda e da bacia do rio Lucunga, que se computam, respectivamente, em 15.000.000 e 12.000.000 de toneladas, como reservas certas.

Já sobre a grafite realça que “são muito antigas e vagas (…) [e o que] realmente se conhece como índices de grafite, são xistos grafitosos”.

Ainda relativamente aos depósitos minerais fosfatados, de registar que o estudo dos Serviços de Geologia e Minas adiantava que os principais depósitos estavam localizados em Mongo-Tando, perto da “povoação de Luango, nas margens do ribeiro Itombe”; Chibuete, localizado a cerca de “2 quilómetros para Oeste da povoação de Massabi” e com uma “extensão de cerca de 6 quilómetros”; Cácata, a pequena distância da povoação do mesmo nome, “nas margens do riacho Nhenha [onde] foi reconhecido um jazigo numa extensão de 2 500 metros”; Cambota, um jazigo descoberto na “margem esquerda do rio Sanzo, perto da povoação de Cambota” e com uma “extensão de cerca de 800 metros”, e Chivovo, “junto às margens do riacho Tuma, a pouca distância do rio Lubinda, cerca de 1 quilómetro para sul da povoação que lhe dá o nome”.

Ora que se saiba, estes depósitos minerais não estão devidamente explorados ou, se estão, não parecem reverter em benefício das populações; tal como não se sabe por onde andam os dividendos da exploração de pedras semipreciosas ilegitimamente prospectadas em Cabinda, como foi anteriormente referido. Todas estas situações menos claras na exploração económica do território, aliadas aos fracos dividendos provenientes do petróleo, reforçam as reclamações dos secessionistas.

Relativamente ao petróleo, entre Janeiro e Outubro de 2011 Angola produziu cerca de 501 milhões de barris[29], sendo que cerca de 430 mil barris/dia eram provenientes de Cabinda[30]. A maior parte do petróleo extraído nas plataformas offshore e onshore cabindesas, esta última muito menos, essencialmente em Malongo, é feita por companhias americanas e francesas em sociedade com a SONANGOL, empresa pública angolana, sabendo-se que nos acordos iniciais celebrados entre as empresas estrangeiras e a angolana ficou consagrado que cerca de um terço do bónus anual deveria ser investido em Cabinda[31]. As reclamações de falta de benefícios para as populações de Cabinda, provenientes da exploração do petróleo, são contínuas[32].

Ainda assim, destacam-se alguns projectos de desenvolvimento económico em Cabinda, na sua maioria resultantes dos fundos do petróleo, como as novas redes viárias que atravessam o território, a construção do Estádio Nacional do Chiaze, um dos locais onde se disputaram alguns jogos da CAN 2010, o complexo turístico da Floresta do Maiombe, no município do Belize, a modernização do aeroporto e do hospital de Cabinda, onde foram utilizados cerca de 400 milhões de dólares, ou o prolongamento do porto de Cabinda, apesar de ainda só estarem verdadeiramente utilizáveis 50 dos seus actuais 125 metros de comprimento[33], o que ainda leva muitos barcos costeiros a aportarem em Pointe-Noire, Congo, em detrimento do porto de Cabinda.

Em estudo estão o projecto Cabinda Link, que passa pela construção de uma ponte sobre o Rio Zaire, interligando o território de Cabinda e a cidade de Soyo através de algumas localidades do Congo Democrático, ou o antigo projecto da construção longitudinal de uma via férrea que ligaria Luanda às províncias do Bengo, Uíge, Zaire e Cabinda, numa extensão de 950 km, interligando-se depois com o Chemin de Fer du Congo Océan, na República do Congo (Kalukembe, 2011).

Ou seja, se no Enclave há certo desenvolvimento económico, devido a alguma redistribuição dos fundos do petróleo, a grande maioria destes é canalizada para o resto de Angola, pelo que esta situação é fortemente questionada pelos cabindenses e pelos autonomistas.

Conclusão

De acordo com Achille Mbembe, as fronteiras obtidas a partir da balcanização do continente conferidas pela Conferência de Berlim mais não fizeram que provocar uma expansão e contracção das suas actuais simbólicas fronteiras (Mbembe, 2000), numa pluralidade, disseminação e volatilidade de fronteiras[34]. Segundo esta análise, e tendo em consideração a territorialidade – ou efectiva falta dela – do Enclave, o problema de Cabinda perspectiva-se olhando para o mesmo quer como um “lugar”, quer como um “território” (Mbembe, 2000) autoadministrável, apesar da intransigente defesa da intangibilidade das fronteiras defendida pela OUA/UA; na realidade, pode-se dizer que o que aconteceu nos últimos dois séculos com o território de Cabinda, como se verificou ao longo do texto, foi um constante questionamento da territorialidade do Enclave. E foi por causa da confirmação da intangibilidade das fronteiras coloniais (Almeida, 2004a) que, tanto a OUA como as Nações Unidas, acabaram por reconhecer como fronteiras oficiais da República angolana as que incluíam o enclave de Cabinda.

Face aos enunciados anteriores há razões para perguntar, e provavelmente com alguma razão, se a situação de Cabinda deve manter o actual status quo e se nada há a fazer. As reivindicações autonómicas são evidentes e defendidas não só por cabindenses, a maioria fora do território, como também por angolanos. Por exemplo, Raul Danda, angolano, jornalista e deputado da UNITA, eleito pelo círculo de Cabinda, é um dos defensores da autonomia e da subsequente alteração constitucional.

Se constitucionalmente é defendido e sustentado que Angola é um nação una e indivisível de Cabinda ao Cunene, também há que reconhecer que a presente situação não poderá ser mantida, onde persiste uma contínua instabilidade e fruo indevido e desregrado de riquezas da província, com menor refluxo para a vida política e social desta, como é frequente serem acusados o Governo nacional e os representantes na província, pelos independentistas cabindenses, e, indiretamente, reconhecido por Bento Bembe em recentes declarações. Também, historicamente, se deve ver que a sua qualidade de enclave merece um olhar mais agudo e uma melhor qualificação na nação angolana; mas para que isso possa acontecer, há que se fazer uma alteração na actual Constituição.

Ou seja, Cabinda terá que ser contemplada como um território de possível autonomia com um estatuto especial dentro da República angolana, como foi recordado quer pelo antigo líder da UNITA, Jonas Savimbi, ou pelo presidente Eduardo dos Santos, na já citada entrevista gravada, cabendo aos líderes angolanos e cabindenses o estudarem, analisarem e rubricarem em cooperação com a sociedade civil dos dois lados.

Se Cabinda deve ser um Estado ou uma Região Autónoma dentro da República, com poderes legislativos próprios, autonomia financeira – gerindo ela própria os seus recursos – deixando a Defesa e as Relações Internacionais para o Estado Angolano, é o que os dirigentes devem ponderar. Aos investigadores e aos organismos oficiais como a ONU e a OUA/UA cabe-lhes, unicamente, analisar, assessorar e sugerir alguns caminhos.

 

 

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Recebido 27 de novembro de 2012; Aceite 25 de março de 2013

 

Notas

[1]     Assinaram o Acordo a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola, que aglutinou e substituiu a UPA), o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola).

[2]     Chamava-se, inicialmente, Pietro Paolo Savorgnan di Brazza e após tomar a nacionalidade francesa passou a chamar-se Pierre Paul François Camille Savorgnan de Brazza (1852-1905).

[3]     Conforme mapa em anexo.

[4]     Atualmente os cabindas são cerca de 300 mil habitantes, sendo que só cerca de um terço está no território. Dos restantes, 90% falam o francês e só 10% o português além das línguas autóctones (http://www.cabinda.net/Cabinda01.html).

[5]     Henry Morton Stanley (1841-1904), nascido John Rowlands, de nacionalidade inglesa, era um misto de jornalista, aventureiro e desbravador de matos que tentou ser um sucessor de Livingstone. Ofereceu os seus préstimos a Leopoldo II da Bélgica, após ter partido do Lago de Tanganica, onde se encontrava o Doutor David Livingstone (1813-1873), e mostrar ao mundo as riquezas do Alto Congo, até aí desconhecidas.

[6]     Boletim Oficial de Angola, nº 42/1883, pp. 733-735.

[7]     Boletim Oficial de Angola, nº 6/1885, pp. 81-86. Outros documentos dão como data da assinatura do Tratado 20 de Dezembro.

[8]     Apesar de a maioria aceitar, consensualmente, esta data como a oficial, outros há que defendem que o documento foi assinado a 22 de Janeiro.

[9]     Sobre os articulados deste Tratado, ver http://ccp.home.sapo.pt/Tratado_Simulambuco.htm ou Madureira (2001).

[10]   Professor no Instituto Superior de Ciências da Educação, na Universidade 11 de Novembro, Cabinda.

[11]   Este protocolo foi reafirmado no Tratado de Luanda, de 1927; cf. Eugénio Costa Almeida (1990, pp. 31-34), sob o pseudónimo Lobitino Almeida N’gola.

[12]   Este debate foi suscitado pelos dirigentes congoleses, nomeadamente pelo ministro Isekemanga Nkeka, que desejam uma redefinição das fronteiras da exploração do petróleo na foz do Zaire. Sobre esta matéria, ver entrevista do Prof. Dr. Belarmino Van-Dúnem ao semanário angolano O País, ou ver outros acessos como http://www.angonoticias.com/Artigos/item/21799 ou http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/rdc_alterou_as_fronteiras_com_prejuizo_para_angola

[13]   Cf. agência noticiosa IRIN (tutelada pelo Gabinete da ONU para Coordenação dos Assuntos Humanitários), que destaca que a crise cabindense caracteriza-se por ser “um dos mais antigos conflitos em curso no continente africano” e que a decisão da UA ocorre cerca de cinco anos depois de a FLEC, liderada por Henrique Nzita Tiago, ter apresentado a primeira de uma série de queixas contra Luanda (http://www.circuloangolanointelectual.com/?p=7533&mid=567).

[14]   Até então o representante da República portuguesa era denominado Governador-geral de Angola e de Cabinda; cf. Carlos Mário Alexandrino da Silva in http://www.portugal-linha.pt/200804141488/CABINDA-NAO-E-ANGOLA-PARTE-VI/menu-id-141.html

[15]   Formaram a AREC figuras destacadas como Luís Ranque Franque (Presidente), João Francisco Quintão, José Cândido Ramos, João Púcuta, José Puna e Telo Geraldo, quase todos descendentes directos dos nobres dignitários de Cabinda que subscreveram o Tratado de Simulambuco.

[16]   Neste documento a AREC reclamava a independência de Cabinda, estabelecia um aliciante programa de realizações e pedia a todos os povos cabindas que deveriam ter “... uma vontade inflexível de libertar o país da ocupação estrangeira a ajudar a AREC nos pagamentos e cotizações pois sem dinheiro nada se pode fazer...” (Cf. António Lopes Pires Nunes, A realidade de Cabinda, http://www.cabinda.net/Cabinda_Reality.htm).

[17]   O GRAE foi constituído a 5 de Abril de 1962, presidido por Holden Roberto, como primeiro-ministro, e incluía Jonas Savimbi, como responsável pelas Relações Exteriores.

[18]   A UPA iniciou os ataques a 13 de Março de 1961.

[19]   Movimento Popular de Libertação de Angola.

[20]   Cf. em http://www.cabinda.org/historia.htm

[21]   O contributo do petróleo de Cabinda para o PIB angolano, apesar de vir a decrescer desde a independência, ainda representa cerca de 10% a 13,4% do crude produzido pelo Estado angolano.

[22]   http://www.portugal-linha.pt/200804141486/CABINDA-NAO-E-ANGOLA-PARTE-IV/menu-id-141.html

[23]   Conforme documentação do jornalista Fernando Cruz Gomes com o Dr. Carlos Morgado e citado por Carlos Alexandrino Silva (portal Portugal em Linha), ou em entrevistas de Jonas Savimbi e Eduardo dos Santos em: http://rubelluspetrinus.com.sapo.pt/cabinda2.htm

[24]   António Bento Bembe, natural de Cabinda, aquando da assinatura do Memorando, entrou para o então GURN (Governo de Unidade e Reconstrução Nacional, onde já estavam ministros e secretários de Estado da UNITA) como ministro sem pasta (http://pululu.blogspot.com/search?q=Memorando+de+Entendimento).

[25]   ANGOP, 2011, ¶1 (http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/politica/2011/11/52/Pacificacao-Cabinda-dos-objectivos-2012-Estado-Maior-General-das-FAA,fb01ec86-58b1-46ef-a135-b8684399bc86.html)

[26]   Cf. Entrevista transmitida pelo programa Repórter da RTP-África, em Janeiro de 2012.

[27]   VOA, 2012, ¶4 (http://www.voaportugues.com/content/cabinda-01-04-2011-voanews-136678878/1261947.html).

[28]   Segundo um autointitulado Secretary of State for Foreign Affairs of Republic of Cabinda, Mangovo Ngoyo, e eleito pelo Conselho de Segurança Nacional da República de Cabinda, em Bruxelas, no dia 23 Outubro de 2010 (E. Almeida, comunicação pessoal, 6 de Janeiro de 2011).

[29]   Teve uma produção média diária de um milhão, 646 mil e 301 barris, conforme informação do ministro dos Petróleos, José Maria Botelho de Vasconcelos, em declarações à imprensa (cf. http://www.apostolado-angola.org/articleview.aspx?id=5494).

[30]   Cf. “Cabinda não beneficia da riqueza petrolífera”, in: http://www.angoladigital.net/digitalnews/index.php?option=com_content&task=view&id=969&Itemid=40

[31]   http://www.flecnoticias.com/index.php?option=com_content&task=view&id=17&Itemid=93&lang=pr

[32]   Cf. “Cabinda não beneficia da riqueza petrolífera”, idem.

[33]   Quando estiverem completos os trabalhos de melhoramento, o cais passará a ter uma extensão de 500 metros, com uma profundidade média de 9 metros, onde poderão operar navios porta-contentores e de carga geral até às 12 500 toneladas. O cais terá capacidade para albergar até 4 500 contentores em simultâneo (Kalukembe, 2011).

[34]   “Plurality, dissemination and volatility”, segundo Armando M. Guedes (Guedes et al., 2007, pp. 18-19, citado em Bembe, 2011, ¶6).

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